#LÚCIFER PERNÓSTICO - ROMANCE# - GRAÇA FONTIS: PINTURA/Manoel Ferreira Neto: ROMANCE



CAPÍTULO III - III PARTE


Nas férias escolares, costumava ir para a fazenda de amigos de sua família passar alguns dias. Não passava perto das patas traseiras de boi, vaca, cavalo, burro, tinha muito medo de levar um coice – conforme o lugar que acertasse, poderia morrer. Caíra de cavalo por correr no pedregulho, a sela afrouxar-se, ficara dias sem poder andar por causa da queda no pedregulho.


Não seria necessário retornar à praça, sentar-se, continuar observando. A cena era a mesma todos os dias. Sem novidades. Não esperou para saber a que horas o carroceiro levantaria do degrau da escada, fechando a porta, indo dormir; como o asno dormiria. Provavelmente, em pé.
Demorasse muito e Hécuba Cruzilis iria chamar-lhe a atenção, então fora até ao Mutirão para investigar a vida do carroceiro no final do expediente, o que ele faz, e o asno como está, se comendo, se relinchando. Continuasse com essas atitudes, teria de interná-lo, mesmo que tivesse de prometer dormir com o diretor do manicômio pelo resto da vida, sustentar-lhe de almoço e janta por toda a sua existência.


“É isso que você deseja para o corpinho que você ama tanto?... Não tenho dinheiro para internar você, Credólio. Trate de mudar seus comportamentos e hábitos esquisitos”. Soubera que o psiquiatra está também querendo fazer isto, investigar a vida de Lúcifer Pernóstico, está tentando obter um apoio de órgão federal.


- Não é possível, Credólio... Já estou cansada destas suas atitudes estranhas. Perdeu a fé nos homens, não acredita mais que tenham alguma utilidade no mundo, tudo bem, embora eu particularmente não lhe dê razão. Mas por isto se interessar por asnos é um disparate. Larga disso ou vou ter de internar-lhe. Você sabia que no passado havia uma outra carroça aqui, o burro puxou-a anos a fio. Velho e quase inútil de todo, o dono dele soltou-o no mato. Adquiriu outro. Pois o burro velho não acompanhava a carroça? Foi assim até morrer. Daqui a pouco, estará você andando ao lado do asno, com o tempo será substituído por ele. Credólio Cruzilis, o puxador de carroça!... Está rindo de quê? Ah, como odeio quando falo alguma coisa e você ri a bandeiras soltas. Isto é sério, Credólio... Há coisas que acontecem nesta cidade que até Deus desconfia se é obra do “tinhoso”, coisas horrorosas... Não ria, por favor!...


- Hoje só é possível sabermos dos homens, o que eles significam no mundo, se passarmos a investigar a vida dos asnos. Isto não é coisa excêntrica, coisa de doidos e malucos. É a nossa modernidade.


- Sabe por que se tornou um homem solitário? Credólio, você só tem a mim no mundo. Você se tornou este homem solitário devido à sua mania de criticar a todos, ver-lhes as mazelas em tudo quanto há. Quem suporta conviver com alguém que não vê outra coisa nos homens senão defeitos? Ninguém. Você precisa aprender a ver coisas boas nas pessoas, elogiar-lhes os méritos. Assim é que se conquista as pessoas, torna-se uma pessoa querida e amada. Parece que deseja ser odiado por todos. O ódio dá-lhe prazer, alegria. E você não é essa pessoa, tem muitos valores sensíveis, humanos. Não entendo isto, Credólio Cruzilis. Por que é homem tão indesejável com as pessoas? Sei que com alguns de seus amigos, os únicos que continuam ao seu lado, não é assim. Por que não ser com todos?


Dera-lhe um beijinho, indo encostar-se à amurada de madeira na sacada de sua resistência, olhando para um lugar não muito distante, arborizado, além árvore uma luz, e no inverno torna-se ainda mais linda com a neblina que cai.


E como aquela Medéia que com a trégua de um dia alcançou o rei Cronos, toda sua casa e sua filha com o mesmo rei queimou em vivas chamas, assim esta, com suas imprecações infernais, que dentro de um sepulcro fez e procurou, depende que a bêbada me contou, todos os vizinhos da cidade encerrou em suas casas com a força de seus encantamentos, que em dois dias não puderam romper as fechaduras, nem abrir as portas, nem perfurar as paredes, até que uns outros se admoestaram e juraram de não tocá-la nem lhe fazer mal algum, antes, dar-lhe toda ajuda e favor saudável contra quem um pouco de mal pensasse-lhe fazer.


Resta saber se nos seus sonos sonha comendo a cenoura – dera-lhe um beijo no rosto, descera as escadas, indo para o escritório, pensando. Acorda ansioso, esforçando-se ao máximo para a abocanhar, sendo-lhe impossível. Só no sonho era-lhe possível comer a cenoura. Que delícia!... Nada há de mais delicioso. Após a bela refeição, hora de deitar no chão, espreguiçar-se, sentir o prazer do descanso.
Tem horas que as suas idéias são em absoluto estapafúrdias, só lhe resta cair na gargalhada, rir até doer-lhe a barriga. A questão é se o animal sabe quando está dormindo, está acordado. Até que acordado é possível saber por ser quando desembestado pelas ruas e alamedas leva e trás os seus fretes. A não ser quando, está dormindo.


Por volta de nove horas, levantou-se do banco. Acendeu um cigarro. Olhou pela derradeira vez o carroceiro, quadrúpede. Foi embora. Estava satisfeito com as informações obtidas. É de olhar rápido, de letras pujantes, assim lhe disse alguém de suas relações pessoais, o que não concordou com todas as sílabas. A mulher mesma reclamava sempre que ele não prestava atenção em nada. “Passar perto de uma rosa tão maravilhosa e não a ter visto, isto é inconcebível, Credólio. Você não tem olhos para nada”. Fosse depois do asno, isto é, a observação Hécuba Cruzilis faria era que não tinha olhos para nada, diria ela ter olhos apenas para o asno da carroça.
Se, durante o dia, a carroça chamava a atenção de todos, alguns não chegavam à janela da casa por se deprimirem com a passagem da carroça, sem compreenderem a razão desse estado de espírito, outros tomavam três branquinhas de um só gole até a carroça desaparecer, à noite, hora de descanso, tudo se resumia em tédio.


Tédio do asno. Asno do tédio. O carroceiro não apresentava qualquer estado de espírito: limitava-se a mascar fumo de rolo, cuspir no chão.


Quem sabe o desejo do asno não seria de descansar, mas continuar pelas ruas da cidade, desembestado?! Poderia desembestar-se sozinho. Mas tinha de velar o sono de seu companheiro. Tinha dó só de pensar nele sozinho dentro de casa, dormindo.


(#RIODEJANEIRO#, 29 DE AGOSTO DE 2018)


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