#LÚCIFER PERNÓSTICO - ROMANCE# - GRAÇA FONTIS: PINTURA/Manoel Ferreira Neto: ROMANCE



CAPÍTULO III - II PARTE


A avó estava internada com problema de pressão alta. Sonhara Credólio Cruzilis: estava no cemitério, assistindo ao coveiro abrir a sepultura da família. Fora encontrada a cabeça. O coveiro lha entregou em mãos. Olhou-a. Acordou de imediato, o medo fora ininteligível. De manhã, na hora do café, dissera à mãe que a avó não iria sobreviver, em três dias iria morrer. Morrendo, estaria livre de ouvir a mesma história da desgraça encarrapitada na galha do abacateiro.


Tivesse ódio, raiva, nojo dela – devido a mascar fumo e cuspir a todo tempo... Daí, desejar a morte da avó não era coisa que se devesse.


- Filho, não se deve desejar a morte das pessoas, muito menos de sua avó...


- Não estou desejando... Sonhei. Abriram a sepultura da família, o coveiro me deu, no sonho, o osso da cabeça, era o da vovó... Posso garantir ter sido a cabeça dela. Os dentes estavam muito brancos. Já ouvi dizer que o fumo de rolo é excelente para limpeza dos dentes.


- Sonho não é realidade, Credólio...


- Veremos... – disse-o, apanhando de sua pasta de objetos escolares, estava na hora de ir para o colégio, cursava a terceira série de ginásio.


Teria Credólio Cruzilis neste dia um exercício de redação. Maria Galla, a professora, de quem gostava muito, mas achava esquisita a sua mania de ficar balançando a língua de um lado para o outro, cotovelo sobre a mesa, mão amparando o queixo, enquanto esperava os alunos fazerem os exercícios ou as provas, já havia sugerido que escolhesse sobre o que os alunos iriam escrever. Cada um podia escrever sobre o que desejasse. Tinha decidido falar do hábito da avó de mascar fumo, ter visto a desgraça encarrapitada na galha do abacateiro, o sonho que tivera. Tinha ouvido tantas vezes Maria Galla dizer que ele tinha uma imaginação muito fértil. Chegara o momento de colocá-la em prática.


Poderia escrever uma redação sobre a avó estar de vestido, pernas abertas. Não usava calcinha neste dia. Credólio e dois de seus primos estavam perto da árvore onde a desgraça fora vista, brincando de atirar pedrinhas redondas de bodoque numas latas. Emílio estava olhando não de muito longe a avó de pernas abertas, sem calcinha. Ninguém esperava que lhe atirasse uma pedra, pequena é claro. A avó deu um grito ensurdecedor, começando a chorar e com o vestido levantado, passando a mão no lugar. Cinco dias de toalhinhas molhadas para desmanchar a rouxidão, e ela dizia não haver sido tão forte o toque da pedra. A mãe dele apareceu e quis saber o que havia acontecido. Emílio jogara-lhe uma pedra. A avó saiu da rede, fora para o seu quarto. Por que fizera aquilo? Respondeu-lhe que aquilo estava a fazer-lhe careta. Emílio tomou uma surra daquelas. Pela atitude e pela piadinha. Mas isto não poderá contar. Se a mãe, mexendo na sua gaveta de trabalhos escolares encontra essa redação, tomará uma surra por escrever coisas de família que devem ser trancadas a sete chaves.


Escrevera sobre o sonho segurando a cabeça da avó, não se esquecendo de sua visão da desgraça encarrapitada na galha da árvore. Fora a melhor redação. Convidado para lê-la diante da turma, hesitou um pouco, mas aceitou. Não houve quem não caísse na gargalhada. Uma sátira daquelas. Não tinha consciência de haver escrito sátira. O horário das aulas terminarem era onze e meia da manhã. Neste dia, devido aos risos de todos, era só olhar para Credólio Cruzilis, a professora não teve outra alternativa senão dispensar os alunos às dez e meia.


Não mais dissera qualquer coisa. Sabia, contudo, que a situação da avó não melhorava, ao contrário, piorava, teve momentos de recuperação, mas de imediato, novas crises. No terceiro dia, aos quinze para sete, mesmo horário em que dissera, a notícia de seu falecimento, só com a diferença de ser domingo. Domingo não é o descanso da humanidade inteira? Dia de passar com a família, usufruir prazeres e alegrias. Enfim, era o descanso da desgraça, a sua história não seria mais contada, seria esquecida vez por todas.


A lembrança disso fora revelada por o carroceiro mascar fumo e cuspir a todo momento. A carroça, o asno, o carroceiro o atraíram para lhe fazer lembrar da avó, pensar nisso do ódio, da raiva, do nojo... Era imprescindível que se conscientizasse de seus sentimentos profundos. Contaram-lhe que a avó não aprovou mesmo o casamento de seu filho com a mãe; quando da gravidez, não dizia outra coisa senão rogar praga para a criança nascer aleijada, com problemas de toda a ordem. Se nascesse normal, teria uma doença qualquer e morreria. A velha não gostava do neto de modo algum, odiava-o. “Se isto crescer, não vai dar em nada”. Credólio Cruzilis não dava atenção, pouco se lhe importava se gostasse dele ou não. O ódio, a raiva nasceram de a avó sempre inventar coisas contra ele com o pai, e este surrar-lhe, colocar-lhe de castigo. Nada do que dizia era verdade, e o pai sabia disso, mas se não o fizesse, a mãe falaria todo o tempo no seu ouvido, não estava sabendo criar os filhos direito, quando Credólio Cruzilis crescesse, veria o traste que criara. E ele devia mesmo ensinar o filho a ter respeito por ela.


Não havia qualquer dúvida: estava ficando louco. Como chegar perto da mulher, dizendo que estava ficando louco, precisava urgentemente de uma consulta com um psiquiatra? A pergunta mais do que óbvia: “Por que tem certeza de que está ficando louco? O que prova esta sua certeza? Quais são os seus argumentos?”. Mesmo que explicasse, diria que não era loucura, era o gênio esquisito e intratável. Ainda que aceitasse, pensasse assim ou assado, chegado à conclusão de que estava sim necessitando de um psiquiatra, a sua idéia fixa de investigar o asno era um dislate. Dizer ao psiquiatra: “estou com idéia fixa de investigar a vida do Lúcifer Pernóstico, o asno”. Diria ele: “Você não está com idéia fixa coisa nenhuma; até eu estou com vontade de fazer isso”. «Oh Aristómenes! Não sabe
você as voltas e rodeios da fortuna e seus instáveis movimentos e alternadas variações.» E dizendo isto, com sua túnica surrada cobriu a cara, que, de vergonha, estava vermelha, de maneira que descobriu o umbigo acima.


Justificativa ou não, a verdade é que residira em São Paulo por quase quatro anos e as relações são assim, diz-se o que se pensa e pensa-se o que se diz, não há qualquer meio-termo; a questão não é esta, é que ele não consegue se relacionar com as farsas e hipocrisias, a autenticidade consiste em dizer o que se pensa. Isto de dar atenção a tudo o que se diz é sobremodo sério, perde-se por inteiro ou ensandece de vez, a autoconsciência é imprescindível. Sabe e investiga dia após dia a sua interioridade, a exterioridade de que se serve para criar o pano de fundo de sua obra, mas algo acontecendo na alma. Eis o porquê de as pessoas não lhe suportarem: diz abertamente, não escolhe lugar ou situações. Por que não se tornar um homem agradável, generoso, tem consciência de suas coisas; não se sente sozinho, isto pode garantir a troco de entregar o que lhe é de mais caro, a cabeça à forca.
O asno mantinha os olhos fixos num lugar. Por vezes, acreditou olhasse para a cenoura. Triste, desesperançado. Quando é que iria conseguir abocanhar a cenoura, ter o prazer de a mastigar lentamente, sentindo-lhe o gosto?! Esses pensamentos só serviam para aguçar o desejo de a comer. Por que está sendo tão difícil? Não era falta de se desembestar. Se fosse inscrito pelo seu dono num concurso no clube dos cavalos de corrida, não haveria um sequer que conseguisse ganhar dele, receberia todas as espécies de honras ao mérito. Mais fácil ganhar uma corrida de cavalos do que, correndo, abocanhar a cenoura. Não lhe fora possível saber o lugar para onde olhava.


O asno estava na carroça. Não era tirado. A idéia genial de seu dono tinha as suas conseqüências. Impossível tirá-lo da carroça sem desfazer o varal. Desfeito, tinha que pagar para reinstalar. Não tinha dinheiro suficiente – pagaria todas as manhãs. Dia e noite permanecia na carroça. Não aprenderia a fazer isto, por mais que tentasse, os dons pedagógicos do mestre fossem geniais, acostumado e habituado que estava a depender unicamente do trabalho do asno para sobreviver. Dia e noite permanecia na carroça. Havia um coxo com capim e água perto dele. O varal não impedia a sua alimentação.


"Neste vale caiu em ladrões, que lhe cercaram e roubaram
quanto trazia alimentação na cela, duas marmitas, a de almoço, a de jantar, trotando na leveza de bicho-preguiça; eu escapei roubado, e assim, meio morto, pousei em casa de uma taberneira velha, chamada Meroe, um pouco sabida e faladeira, a qual contei as causas de meu caminho e roubo...", era o que estava Lúcifer Pernóstico zurrando intimamente, relinchava de suas origens de puxador de carroça, Credólio Cruzilis querendo saber o que faço nas horas em que não estou pelas ruas da cidade levando e trazendo fretes, como é que passo a noite.


Comia. Terminado de comer, por vezes, permanecia imóvel, olhando a cenoura; outras, olhava o seu dono sentado na escada de entrada da casa, de modo trigueiro. Creu os olhos denotassem ódio, raiva por haver tido a ideia genial de colocar varal e cenoura dependurada a uma distância que nem o focinho pode encostar-se nela. Outras, fixava o olhar à distância.


Passar perto das patas é correr risco de morte, o coice é fatal, é de se imaginar um animal desse com raiva e ódio de alguém, tem de correr o mais que puder, tendo a certeza de que ao fim de suas forças, o coice com todo o bom grado, e o relincho, arregaçando os beiços, mostrando os dentes sujos de feno. Não lhe é dado sentir isso de amor ou ódio, é-lhe dado estranhar algo de diferente à sua natureza. Um asno intelectual - eis como a si coiceia e zurra em harmonia com a sua cachola vazia de razões e certezas.
Manoel Ferreira Neto
(FEVEREIRO DE 2005)


(#RIODEJANEIRO#, 29 DE AGOSTO DE 2018)


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