(ENSAIO) - GERMINAÇÃO DAS ORIGENS – UMA LEITURA DE VERGÍLIO FERREIRA, ESCRITOR EXISTENCIALISTA PORTUGUÊS - Manoel Ferreira


Vejamos, em primeira ins-tância, o que Vergílio Ferreira escreveu em Espaço do Invisível, ao abordar o tema de “o homem à sua face”, que está diretamente ligado com o tema de Aparição, tema que, como demonstro, só se configura completamente em Estrela Polar, e logo a partir do título do romance. Façamos então uma análise do que entre “o homem à sua face” e o título de Estrela Polar pode ser confrontado ou relacionado.
Espaço do Invisível: “Mas o primeiro ato na recuperação de nós próprios deve ser o abordar a íntima e original irrupção de nós mesmos, se não o coincidirmos instantâneamente com esse puro aparecer da luz que somos. Essa é a distância máxima da vida à morte, esse o meio de se equacionarem os dados-base da reconquista para o homem de um lugar no Universo”.

Estrela Polar: “Chamo-lhe apenas ‘Estrela Polar’, porque sou mais corajoso ou o desejo parecer. Luz breve, que existas, onde? Fugidio indício que me anuncie o meu lugar na vida...”

Como se pode observar, é simples a relação dos trechos de Espaço do Invísivel e Estrela Polar, um ensaístico, outro ficcional. Entre “o homem à sua face”, confrontando-se no puro aparecer da luz que o é, marcando uma distância onde se equacionam os dados do seu lugar no Universo, e a posição desse homem marcando numa estrela um ponto de referência que lhe anuncie o seu lugar na vida, o que vale dizer no mesmo Universo, existem laços temáticos coerentes. Alberto e Adalberto só se sentem existindo como pontos de referência a eles exteriores, com os quais se possa conferir e avaliar. Por isso a sua relação com os outros é uma função estruturadora da narrativa; as pessoas com que se confrontam são significantes narrativos, na medida em que da reciprocidade dos gestos e das palavras se retiram os significados dos romances.
A continuidade existente entre determinados romances de Vergílio Ferreira é particularmente perceptível, principalmente em nível temático, entre Aparição e Estrela Polar. A seqüência, aliás, já se prenuncia em Aparição na velada sugestão do título do romance seguinte, implícito num diálogo travado entre Alberto e Sofia, a céu aberto, numa noite estrelada, depois recordado pelo protagonista à distância dos anos:

“Deitamo-nos numa rocha, olhando os astros. Eu falava das estrelas, das gigantes vermelhas, das anãs brancas, das novae, da medição das distâncias, das nebulosas, da nossa galáxia, cuja distância máxima, de extremo a extremo, é de cem mil anos-luz, da Andrômeda, a mais próxima, a um milhão de anos-luz, dos montões de galáxias, algumas à distância de quinhentos milhões de anos-luz, das grandezas relativas, da E do Cocheiro, que é maior do que a órbita de Saturno, dizia nomes de um sabor terrível para mim, Arcturus, Capela, Aldebaran, Rigel, Betelgeuse, Altair, falava do aspecto da Ursa daqui a cem mil anos, contava de textos indianos em que se falava de uma certa polar, o que só poderia Ter acontecido há x milhares de anos, contava do movimento de precessão”... (...O e que há 120 séculos a nossa polar não era a estrelinha que sabemos mas a Veja; e que daqui a outros 120 séculos sê-lo-ia Veja outra vez”.

Idêntico procedimento em outros romances que anunciam os títuos do livros vindouros afasta a hipótese de uma casualidade. Quanto ao tema de Estrela Polar ou a sua problemática fundamental, o próprio Vergílio Ferreira, também numa dimensão ensaística, tal como o fizera em relação a Aparição a explica em Invocação ao meu Corpo:

“ Porque um “tu” é um “eu” que estamos vendo em alguém, um “eu” fugitivo, inapreensível e todavia tão presente que nos perturba de inquietação. (...) No contraste radical entre um corpo morto e a necessidade de que alguém o estivesse vivendo é que se aflora a misteriosa entidade do “eu” que vive no “tu”, a estranha realidade viva que no dia-a-dia se não vê quando se vê apenas o “tu” a viver e não o “eu” desse “tu” que através dele o está vivendo, o está sendo, presente, inquietante, necessário. Contei em Estrela Polar a experiência desse “tu” – Valerá a pena recontá-la? Imagina que te encontras com alguém que já não vias há muito. Recordas com ele um passado comum. Todos os elementos de um acerto mútuo estão aí, desde os fatos  que ambos recordais até a face desse alguém, aos seus gestos, à sua voz. Percorrestes pela memória mil acontecimentos comuns, recuperaste-vos totalmente e mutuamente nesse encontro. Mas eis que ao despedir-vos, esse teu amigo te diz que ele não é esse teu amigo mas sim um seu irmão gêmeo. Imediatamente uma alteração profunda se instalou nas vossas  relações. Mas se te perguntares em quê, não é fácil responderes. Naturalmente dirias que esse teu amigo não era ele, que era outra pessoa. Mas outra em quê? O corpo é igual nos mínimos pormenores, igual a face e os gestos e a voz e os olhos. Iguais as idéias, os  sentimentos, as recordações, o todo integral da sua vida e ao que ele é. Se percorreres todos os pormenores, encontrá-los-ás em hipóteses absolutamente iguais. Começa onde quiseres, examina cada minúcia que constitui o teu amigo, progride até ao mais extremo limite e verficarás que nada escapa a uma integral igualdade. Mas se isto é assim, deveria ser-te indiferente seres amigo deste como eras amigo do outro. Pois se uma pessoa e aquilo que ela nos é, se uma pessoa e aquilo que a manifesta, se aquilo que nos define e aquilo que somos e esse alguém que encontramos em nada difere, em hipótese, do alguém que esperávamos encontrar, nenhuma razão havia para que as relações com ele se perturbassem. Mas elas perturbam-se, porque esse alguém não é o outro. Em quê, porém, não é o outro? E eis que se levanta agora flagrante essa coisa obscura que determina o “tu de alguém. Não é nada. E é tudo. Porque toda a sua pessoa está naquilo que a diz – e no entanto não está. Toda a sua pessoa se revela no que vem à superfície ou aí se anuncia, e no entanto alguma coisa ficou ainda atrás, indizível e inacessível, fugidia e flagrante – início puro e categórico, intocável e nula realidade, e no entanto fulgurante e categórica realidade”.
A descoberta do outro é, pois, fundamental na vida humana.  Tornar-se como que parte integrante do outro e fazer dele uma parte integrante de si. Depois de longa luta, com armas que não são materiais nem de destruição, poderá dizer que este outro é a "metade de sua alma".
A inspiração "eidética"  e  "erótica"  da metafísica impede o pensamento de toda a superação até ao Outro. A transcendência onto-teológica que o realiza não é senão a absolutização do Mesmo. O modelo secreto que anima a reflexão é o do "subjectum"  e  do  "objectum". O objeto representado é uma objetivação do "subjectum": o homem concebido como sujeito autônomo transfere para o objeto os seus próprios caracteres e valoriza-o em função das suas exigências. Inversamente, o homem-sujeito é interpretado segundo o modelo subsistente. O pensamento, fechado no círculo representativo do sujeito e do objeto, não pode sair de si-próprio: está condenado a refletir o Mesmo sem nunca poder chegar ao Outro. Oscilando entre o sujeito e o objeto, a reflexão não encontra, por todo o lado, senão a sombra trazida por si-própria. Esgota-se a analisar as suas próprias condições de possibilidade, a refletir-se sem fim, a menos que consiga realizar a adequação perfeita entre o representado objetivo e a representação subjetiva.
Assim hipoteticamente colocado o tema de Estrela Polar, a situação humana nele representada, embora dotada de uma lógica inegável apresenta-se raiada de uma atmosfera de absurda irrealidade algo semelhante ao que de insólito e brumoso possui o universo romanesco de um Kafka.
Esse absurdo, essa irrealidade, revelam-se muito mais francamente quando se analisa a experiência vivenciada dessa colocação hipotética, que é, afinal, a própria situação nuclear de Estrela Polar, cuja efabulação se pode descrever resumidamente? Adalberto apaixona-se por Aida, que tem uma irmã gêmea (?)  chamada Alda, extraordinariamente parecida com ela. A tal ponto vai a semelhança que ele não consegue distinguir uma da outra, estabelecendo-se certa confusão, que o leva, algumas vezes, a trocar Aida por Alda e vice-versa. A essa confusão segue-se uma espécie de jogo tacitamente aceito entre os três que permite a Adalberto relacionar-se com as duas irmãs ao mesmo tempo, sem saber em cada vez com qual delas está e que por isso mesmo passam a ser denominadas no romance de Aida-Alda como se as duas se fundissem  numa só pessoa. Entretanto, de forma lenta, muito longinquamente algo começa a se definir neste relacionamento de Adalberto com  as duas irmãs e a paixão ou o interesse  do protagonista se desloca de Aida para Alda, embora ele continue sem saber distinguir uma da outra. Certo dia, quando passeavam de barco numa temporada de praia, as duas sofrem um naufrágio e Alda morre afogada. Adalberto, porém, mais uma vez as confude e acredita que Alda era a sobrevivente. Aida deixa-o permanecer no equívoco e os dois casam-se. Mais tarde, o engano desfaz-se, Aida revela a sua verdadeira identidade e Adalberto acaba por matá-la, porque apesar da extraordinária semelhança que em todos os níveis existia entre ambas, Aida e Alda não eram a mesma pessoa e Aida era exatamente alguém que Adalberto há muito aborrecera e que se lhe gastara.
A direção do pensamento implícita em Estrela Polar praticamente já se revelou, embora de forma excessivamente resumida, através da rápida descrição da fábula do romance e no que de continuidade ele possui em relação a Aparição. Entretanto, há interesse ainda em acompanhar alguns lances da trajetória existencial de Adalberto. Ainda no início do romance, exatamente ao terceiro capítulo, ele diz:
“A minha vida entendo-a na iluminação em que me sinto,  me estou      vivendo, me sou. E é possível por isso que a todo o meu passado eu o esteja coordenando sem saber, eu o esteja reiventando sem saber, como se ele fosse inimaginável fora de como o estou vivendo. E a que propósito o afirmo, agora, aqui – não aqui, lá?   

Se bem que a perspectiva literária não ofereça ainda um horizonte onde possamos distinguir as conseqüências da obra de Vergílio Ferreira nas letras portuguesas atuais, duas questões devem, no entanto, ser colocadas neste estudo. Qual a influência de Vergílio Ferreira nos seus contemporâneos? Criou ele, como romancista, discípulos que tivesse aproveitado a lição do “ciclo existencial”? A resposta parece ser apenas uma: sem dúvida que sim.
É sempre ingrato apontar influências. Acontece muitas vezes que os autores ‘influenciados” não conheciam as obras que os “influenciaram”. Há alguns casos destes na literatura portuguesa, a começar por Eça de Queiroz. Os autores negam a influência, recusam-na com sinceridade, porque muitas vezes nem deram por ela. É isso que permitiu a Vergílio Ferreira dizer que “acasos de biografia, de leituras, de encontros e decerto de tendências, acabaram por cristalizar em mim os temas que mais importam”. Eis, portanto, o que acontece com os escritores de uma ou duas gerações consecutivas. Por essa razão podemos detectar a influência do autor de Mudança em alguns dos mais destacados representantes da ficção portuguesa contemporânea. Um Infinito Silêncio (1970), de Antonio Rebordão Navarro, por exemplo, acusa a leitura da experiência de Alberto Soares, até por certa semelhança das situações. Assim como a escrita também parece confirmá-lo. A leitura do romance de Rebordão Navarro leva-nos a evocar o espaço de Aparição: em Viamonte, o personagem-narrador executa igualmente o milagre da visitação de si a si próprio e, simultaneamente, o exercício memoralista de Estrela Polar.

“... um dia, recordarei Viamonte sem exaltação, sem repugnância, sem saudade lerei talvez estes apontamentos sem me aperceber de que esta primeira pessoa do singular fui eu num dado tempo, numa vila a nordeste que, aos poucos, se despovoava, o som perderá o seu significado ou ganhará um outro, todos os sons evoluirão assim, significarão diferentemente palavras que são nomes de pessoas: Miguel João, Tomàzinho, Olímpia, perguntar-me-ei se existem, se existiram, se existirão ali ou noutro qualquer lugar, perguntarei se existe Viamonte com a sua igreja, o pelourinho, o tribunal, as ruas enlameadas ou poeirentas, os cafés, a estação dos Correios, o Hospital, o casarão amarelo dos Bombeiros Voluntários”.

Quem, ao ler este fim de romance, não evocará as linhas finais de Estrela Polar, com a memória de Penalva, de Ainda e Alda que aí habitavam ou habitam? E quem não evocará também o solitário professor que abandonou Évora, marcado para sempre pela ‘anunciação da evidência’? 
Mario Sacramento coloca, portanto, Vergílio Ferreira entre os fatores que ocasionaram a evolução literária de Fernando Namora, levando depois o problema para o terreno meramente histórico, quando pretende traçar as delimitações do Neo-realismo, dividindo-o em duas fases, colocando o que ele chama de segundo Neo-Realismo a partir de 1950, historicamente condicionado a um sentimento de angústia ou de tensão universal originado pela chamada “guerra fria”, que instaurou sobre o mundo a eminente ameaça de um conflito nuclear.
Vergílio Ferreira, como se poderia ver depois pela perspectiva de distanciamento cronológico e pela própria seqüência  da obra do romancista, não representaria apenas uma mudança de enfoque neo-realista ou uma abertura para o aproveitamento de novos temas ou o ensaio de novas técnicas romanescas. Na realidade, o romance, apesar dos elementos que ainda explorava e que eram próprios da ficção social, implicava uma mudança bem mais radical: significava a ruptura do escritor  com um movimento e uma geração literária, era o início de um caminho que Vergílio Ferreira percorreria solitariamente. Mas essa ruptura iniciada pelo escritor de maneira lenta e paulatina lançou certa ambigüidade no âmago de Mudança, o seu romance-limite, ambigüidade que não permitiu à crítica da época, descobrir, de imediato, as verdadeiras intenções do romancista e o integral significado do seu livro. É comentando este aspecto da obra que Eduardo Lourenço afirma:

“Por isso se pode dizer que Vergílio Ferreira não escreveu nunca melhor romance neo-realista do que “Mudança” – e os críticos neo-realistas assim o entenderam – e ao mesmo tempo que nas suas páginas agoniza já a forma habitual desse neo-realismo. Todavia, esta leitura que torna “Mudança” não só o mais ambíguo dos romances do autor, como o romance da ambigüidade nascente que será, em seguida e em toda a plenitude, a criação específica e a orignalidade indiscutível de Vergílio Ferreira, é o futuro só que a instaurará fazendo pender a balança naquele sentido que em “Mudança” é apenas potencial”.
Diz-nos Vergílio Ferreira, em o Mito e a sua Mitificação:

“Mas entre o gesto e a obra, a unidade quebrou-se – restabeleceu-se. Sabemos agora que as linhas dessa obra são a condenação do nosso gesto. Sabemos agora que as linhas da esperança que alienamos, do medo que desce sobre nós, passam no exato limite em que passou a nossa mão. Sabemos que para lá de nós estamos nós ainda. E porque o sabemos, o mito se nos desterrou para o ídolo que recusamos. Da obra que modelamos e era mais do que nós, sabemos que é apenas o mais que somos”.
Entre estes dois polos, o do “realismo” e o do Mito, inscreve-se “Mudança”.
“Mudança” é em si próprio um romance limite na medida em que representa uma síntese não só da evolução da obra ficcional de Vergílio Ferreira, mas do próprio gênero romântico, sendo isto possível de verificar tanto em nível técnico-temático quanto no plano das funções das personagens. Se, por um lado, a problemática social – um mundo em mudança – satisfaz à pressão epocal, por outro, o desajuste dos dois protagonistas estruturadores da ação – indica temperatura no do termômetro das reações humanas, temperatura que seria, mais tarde, também uma conseqüência do tempo histórico.
O problema da modificação da personagem dentro das inovações da estética romanesca faria lembrar ainda Dostoiévski, porque é com ele que essa metamorfose se inicia, com as suas personagens, que, mais do que a fotografias, se assemelham a retratos expressionistas em que a indefinição dos contornos e a fragilidade da luz quase absorvida pela sombra, sugerem – e com muita eloqüência e significação – muito mais do que dizem. Foi certamente isso ou algo parecido que Bakhtin encontrou na sua leitura crítica do romancista russo, o que o levou a dizer que o herói interessa a Dostoiévski, não enquanto fenômeno na realidade, possuindo traços caracterológicos e sociológicos nitidamente definidos, nem enquanto imagem determinada, composta de elementos objetivos com significação única, e sim, como ponto de vista particular sobre o mundo e sobre ele próprio, como a posição do homem que busca a sua razão de ser e o valor da realidade circundante e da sua própria pessoa.  É evidente que esta é uma posição  existencial do herói romanesco em que está implícita a própria concepção fenomênica do mundo, os próprios questionamentos interiores do romancista.
A nova concepção do mundo, comum a Vergílio Ferreira e ao protagonista de “Mudança”, não é, finalmente, mais do que o despertar para uma problemática muito mais séria, muito mais profunda, do que a do jogo de interesses do Ter ou não Ter e que se refere à própria descoberta ou conscientização do ser no mundo, à circunstância da passagem do homem por um universo de contingências.
Estudando a evolução do romance num painel analítico que parte de Flaubert e dos herdeiros do seu realismo e a que comparecem, entre outros, Dostoiévski, Proust, Virgínia Woolf, André Gide e James Joyce, Erich Auerbach observa que na transição do romance realista para as manifestações contemporâneas de tal gênero literário, o escritor, como  narrador de fatos objetivos, desaparece quase que completamente; quase tudo o que é dito aparece como reflexo na consciência das personagens do romance. Na medida das transformações que lhe são impostas pelas novas experiências literárias, a narrativa de ficção vai-se transportando do plano objetivo para o nível da consciência, verificando-se a diluição da ação romanesca e a quebra cronológica da matéria narrada. O tempo adquire uma nova dimensão de importância, passando a ser considerado e utilizado como valioso elemento ficcional, e adquirindo, além da sua concepção meramente física, um grau de subjetividade que o vincula à problemática existencial largamente tratada pelo romance moderno.
Toda a nossa vida, desde o primeiro despertar de nossa consciência, é qualquer coisa como este discurso indefinidamente prolongado. Sua duração é substancial, indivisível enquanto duração pura.           A análise psicológica mostra-nos na memória planos de consciência sucessivos, desde o “plano do sonho”, o mais distendido de todos, no qual se esparrama, como sobre a base de uma pirâmide, todo o passado da pessoa, até o ponto, comparável ao topo, em que a memória não é mais do que a percepção do atual com   as ações nascentes que a prolongam.
No romance “Mudança”, esta ‘descoberta’ é vista através  do amadurecimento da consciência de Carlos Bruno, consciência que, paulatinamente, cresce de tal modo dentro das dimensões da obra, que praticamente, a partir de certa altura, passa a ocupar todo o espaço do romance. O despertar da consciência das personagens para as questões da sua própria existência e seu relacionamento com o mundo.
Para o senso comum, o objeto existe para um espírito, como o queria Berkeley... Mas, por outro lado, surpreenderíamos da mesma maneira este interlocutor dizendo-lhe que o objeto é totalmente diferente do que ele percebe... Logo, para o senso comum, o objeto existe em si  mesmo e, por outro lado, o objeto é, nele mesmo, pitoresco como o percebemos: é uma imagem, mas uma imagem que existe em si. Como uma doutrina que se punha assim no ponto de vista do senso comum pode parecer tão estranha? Explica-se isso facilmente quando seguimos o desenvolvimento da filosofia moderna e quando vemos como ela se orientou desde o início para o idealismo, cedendo a um impulso que era o mesmo da ciência nascida de pouco. O realismo se colocou da mesma maneira; ele se definiu por oposição ao idealismo utilizando os mesmos termos  que este; de modo que se criaram entre os filósofos certos hábitos de espírito em virtude dos quais o “objetivo” e o “subjetivo” eram divididos quase da mesma maneira para todos, qualquer que fosse a relação estabelecida entre os dois termos e a escola filosófica a que se estivesse ligado.
Uma literatura classista, denunciante, reivindicatória e recortada sobre uma estética realista, surgida entre os anos 20 e 40, do século XX, com as resistências que se organizam contra os regimes de força instaurados em diversas partes do mundo, fatalmente adotaria uma perspectiva marxista, tanto no plano político quanto no artístico. No ensaio O Estatuto Ambíguo do “Neo-Realismo” Português, Eduardo Prado Coelho, para demonstrar a convergência do Neo-Realismo para um posicionamento marxista, utiliza, do Livro III de O Capital, de Marx, os conceitos de reino de necessidade e de reino de liberdade, colocando assim o seu pensamento: 

‘Para uma teorização realista, toda a arte se situa no limite oscilante entre o reino da necessidade (da escassez, da privação, da incompletude, da subordinação dos meios ao fim)  e ao reino da liberdade ( da plenitude, da lucidez, da harmonia, da reconciliação, da soberania dos meios tornados fins multiplicando-se num jogo infinito). Enquanto no reino da necessidade o homem se transforma em instrumento dos outros ou de si mesmo, alienando-se em nome de exigências de rendimento e de produtividade, no reino da liberdade, o homem inventa a face solar, autonomiza-se na sua dimensão mais profunda, abrindo-se ao universo do jogo, do consumo inútil e do prazer”.


A transposição dos conceitos marxistas para o campo do literário feita por Eduardo Prado Coelho remete-nos às idéias de Northrop Frye, que, em O Caminho Crítico, lança mão de conceitos idênticos: o de mito de interesse e o de mito de liberdade, aos quais praticamente condiciona ou reduz todo o relacionamento da literatura com o contexto social. Mas continuando o estudo da problemática neo-realista, no esforço de situar com clareza o que na realidade representa tal movimento, vale citar ainda o ensaio de Eduardo Prado Coelho:

“O ‘neo-realismo’ português foi, em primeiro lugar, uma arte de combate, intimamente ligada ao progresso duma classe: o proletariado. Os seus objetivos primeiros eram muito simples: contribuir de qualquer modo para a aceleração de todo o processo histórico que deveria conduzir à vitória do proletariado. A arte deveria ser denúnica, desmistificação, exaltação. O ‘neo-realismo’ era um súbito alargamento de realidade ( a todas as zonas e temas que a idelogia das classes dominantes censurava), uma adesão ao nosso humanismo (designação quase sempre utilizada para dizer “marxismo”) e uma expressão de um novo grupo social: o operariado”.

Do ponto de vista do conhecimento, a fissura entre objeto/sujeito – assim preferimos identificar, pois que a colocação de “e” vem mostrar uma separação. Jean-Claude Brisville, crítico e biógrafo de Albert Camus, entrevistando-o em 1959 fez-lhe a seguinte pergunta: “Você escreveu um dia: “O segredo do meu universo: imaginar Deus sem a imortalidade da alma’. Pode precisar o seu pensamento?” Albert Camus respondeu: “Posso. Tenho o sentido do sagrado e não creio na vida futura. É tudo” Portanto, esta relação objeto/sujeito está sob visão de absurdo, uma contradição estúpida e mesquinha, do ponto de vista de alguns ensaístas acerca do pensamento de Camus, mas que não deixa de ser uma verdade. É imaginar o objeto sem a imortalidade da razão.
O sentido, expressão do logos verdadeiro, é aquele que traduz a verdade do ser em verdade para-o-sujeito, abrindo-o assim à universalidade do bem. Portanto, todo enunciado verdadeiro de sentido exprime alguma forma de correspondência com o ser. A alternativa que se oferece a essa primazia do ser na gênese do sentido somente pode apresentar-se como tentativa de “desconstrução” da sua estrutura ontológica pela substituição da aparência ao ser e do simulacro à verdade.  A inelutabilidade dessa alternativa foi definitivamente demonstrada por Platão no diálogo Sofista. Essas páginas célebres, ao mesmo tempo em que estabelecem as articulações lógicas elementares de uma ciência do ser, levam a seu termo a longa querela que vinha opondo o filósofo  segundo Platão ao sofista. Este é então retirado da sombra do não-ser onde se refugiara, para ser definido, à luz da ciência do ser, como artífice de aparência. Tal a demonstração decisiva, que se eleva no pórtico da cultura ocidental e estabelece, com irrefutável necessidade, a referência do sentido ao ser, circunscrevendo o não-sentido ao domínio da aparência, cujo lugar dialético é justamente a imanência absolutizada do sujeito.
Esta experiência intelectual típica da modernidade grega conserva um caráter exemplar para a compreensão da crise da nossa própria modernidade. Com efeito, nela podemos descobrir a lógica inelutável que transforma a produção humana do sentido em fábrica da aparência e do não-sentido, no momento em que, tendo rompido seu vínculo essencial com o ser, passa a constituir-se paradoxalmente em matriz do não-ser.
Mas a exemplaridade da experiência grega do não sentido, sobretudo na leitura genial que dela faz Platão, não deve ocultar a profunda originalidade e mesmo a novidade que caracterizam essa mesma experiência na modernidade ocidental. O que era lá exercício teórico de alguns sofistas, que seduzia apenas a jovem aristocracia ateniense desencantada com a crise e o declínio político da sua cidade, torna-se, aqui, um fato universal de civilização e um estilo emblemático de ser e de viver. A refutação platônico-aristotélica do relativismo sofístico acabou por inspirar, como é sabido, as grandes correntes de pensamento da antigüidade clássica. Ao invés, o que prevalece nos tempos modernos é a ampla elaboração teórica da lógica da aparência, que recebe um estatuto gnosiológico extremamente sofisticado nas diversas versões da teoria da representação, e uma poderosa instrumentação epistemológica nas diversas formas do modelo poético do conhecimento. Desta sorte, a racionalidade moderna se edifica e se exerce tendo como horizonte último o mundo dos fenômenos. Na sua gênese tem lugar a aparição histórica do sujeito típico da modernidade, que se opõe como correlato intencional ativo do inesgotável fluxo dos fenômenos oferecido à sua poiésis, à construção de um mundo que se propõe ser enfim plenamente humano.O sujeito apresenta-se, assim, como o hypokeimenon, a substância primeira que sustenta todo o edifício simbólico da cultura moderna. Nessa, a primazia incontestada é atribuída ao modelo poiético do conhecimento. Ele guia o sujeito na imensa construção da tecnociência, na invenção de uma nova ciência da natureza e na reformulacão, segundo novos pressupostos, dos antigos saberes sobre o homem e a sociedade.
O conhecimento intelectual ou científico do Eu é uma impossibilidade porque o sujeito não pode objetivar-se totalmente. O real conhecimento do Eu, segundo o Zen, só se realiza na subjetividade absoluta: “O eu é comparável a um círculo sem circunferência, é sunyata, o vazio. Mas é também o centro desse círculo, que se encontra em toda parte e em toda a parte do círculo. O Eu é o ponto de absoluta subjetividade, capaz de transmitir o sentido da imobilidade ou tranqüilidade. Entretanto, como esse ponto pode ser movido para onde quer que o desejemos, para lugares variados, não é realmente um ponto”.
Eu é imóvel (sempre presente em nós) e móvel (mutante de um momento a outro). Por isso ele é designado pelo mestre Rinzai Gigen (século IX) como “o homem verdadeiro sem posição”. E, não se pode deixar de lembrar aqui o mestre Thich Nhat Hahn, o sentido do homem em verdade real, ou seja, a sintonia e harmonia do homem em todas as suas dimensões, quando a mente se harmoniza com o cotidiano, a mente cotidiana.
A atitude na meditação é exatamente a oposta. Lembre-se do relacionamento entre a luz do sol e a folha verde. Quando iluminamos uma coisa com nossa consciência, ela muda, ela se mistura e se funde com a consciência. Por exemplo, quando você tem consciência de que está feliz, você poderá dizer: “Estou consciente de que estou feliz”.          
“O reino da subjetividade absoluta – escreve Suzuki – é onde habita o Eu. “Habitar não é aqui o termo correto, porque sugere apenas o aspecto estático do Eu. Mas o Eu está sempre a mover-se ou a tornar-se. É um zero e uma estaticidade e, ao mesmo tempo, um infinito, a indicar que se move o tempo todo”.    
Isto está presente e ausente em toda a obra de Vergílio Ferreira -   não condena o pensador ao círculo vicioso da procura de uma ‘objetividade’ situada fora do sujeito, nem à pressão de uma subjetividade alheia à realidade do mundo exterior. Desemboca ao contrário na síntese que permite integrar, superando-a, a clássica oposição entre ‘subjetividade’ e ‘objetividade’. Do ponto de vista existencial, nas palavras de Heidegger, ‘toda objetividade é, como tal, subjetividade’.
Mas se os princípios neo-realistas não permitiam ou pelo menos não aconselhavam que dentro de um romance se desse destaque a determinada personagem, Vergílio Ferreira, ultrapassada a sua primeira fase de produção literária, já em Manhã Submersa – romance que se seguiu à publicação de Mudança – e a apartir do breve texto inicial em que, através de um recurso de técnica narrativa exercita a ficção dentro da ficção quando coloca Antônio Santos Lopes escrevendo sobre Vergílio Ferreira e referindo-se a Vagão “J”, embora sem lhe mencionar expressamente o título, revela claramente uma ampla viragem na sua linha de execução romanesca substituindo a problemática coletiva pelas indagações individuais de uma personalidade marcada pela angústia e por certas dúvidas que são já próprias de um contexto existencial. Não que o cenário social esteja totalmente ausente de Manhã Submersa. Na realidade, ele é basicamente o mesmo de Vagão “J”, mas diluído pela experiência vivida por Antônio Santos Lopes no Seminário, que é na verdade o assunto nuclear do livro. Manhã Submersa é o romance do despertar da consciência de um adolescente para os grandes problemas da existência: Deus, a vida, o sexo, a família, a morte, a religião, a liberdade, o amor, são interrogações questionadas pela mente perplexa de Antônio Lopes. Trata-se, portanto, de um romance construído a partir da própria percepção ou do próprio pensamento da personagem e assim uma obra de recorte psicológico- existencial e conseqüentemente de cunho eminentemente individualista. Aliás, o individualismo de Manhã Submersa é revelado já no texto introdutório do romance, assinado por  Lopes, em que ele diz que durante algum tempo pensou em realizar a hipótese levantada por Vergílio Ferreira no final de um dos seus livros e escrever a história da sua gente. Efetivamente, nos últimos momentos de Vagão “J”, o romancista pergunta:

“Quem vem por um fim à história dos Borralhos? Ela não acabou ainda e mal se percebe já onde foi que começou. Talvez, Antônio Borralho, tu a escreva um dia. Tu ao menos descobriste que tinhas inteligência, tu sabe o que sois, o que sempre tendes sido”.

Se o romancista Vergílio Ferreira não conseguiu evitar as contingências históricas e deu início à sua obra dentro dos parâmetros do movimento neo-realista, Vagão “J”, apesar de deliberadamente escrito a partir de uma perspectiva social ou antes socialista, é já um romance que apresenta determinadas inovações ao nível da escrita e da estrutura romanesca  que não são comuns ao Neo-Realismo mais autêntico. Dentre essas inovações, percebe-se de imediato, a um simples folhear do livro, a estrutura monolítica do romance, construído num só bloco, sem a tradicional divisão em capítulos, intencionando alcançar um maior dinamismo interno. No plano da linguagem já se pressente a formação do estilista, ou, talvez mais precisamente, a preocupação do escritor em criar ou trabalhar um estilo capaz de sugerir o diapasão da temática tratada. Representa isto também uma novidade dentro do contexto neo-realista, cuja ficção mais ortodoxa, sabe-se, pouco ou nada se preocupou com problemas estilísticos.
O estilo de Vergílio Ferreira assumiria papel de preponderante importância na sua produção romanesca de temática existencial, onde o escritor cria variações estilísticas em função das variações temáticas dos seus livros. E a propósito de temática existencial, certos problemas desta ordem afloram já, embora muito embrionariamente, em algumas passagens de Vagão “J”. Não evidentemente, uma visão existencial ao nível da náusea, da revolta ou da angústia, que são muito mais conseqüências da percepção intelectual do que da experiência do viver, mas uma problemática da existência que se poderia dizer primitiva, representada da existência que se poderia dizer primitiva, representada pelo ódio e pela violência do homem de jorna, que traz no peito a raiva surda que a vida desgraçada acumulou.  Esta colocação existencial é praticamente decorrente da própria ess6encia do Neo-Realismo, visto que reside na questão mais primária da estratificação das classes sociais. O homem de jorna, o trabalhador alugado, odiava o patrão e a vida porque nada tinha de seu: Toda a gente possuia qualquer coisa para afirmar a sua existência; - o homem da jorna tinha apenas o seu ódio. Encontram-se no romance outros indícios da temática existencial levemente aflorada e representada por outras vias, como por exemplo, a do imenso amor à vida repentinamente descoberto por Chico Borralho – um inutilizado que vegetava preso a uma cama- quando posto em contato com uma natureza exuberante:

“Nos campos a vida grita uma plenitude de sangue fresco, o céu é azul. Por isto custa morrer. Sempre em torno rebenta a esperança dos que começam, a vida renova-se, as crianças nascem, abrem os olhos, completam-se, músculos novos, enquanto outras crianças vão nascendo e levam os olhos da gente que vai envelhecendo e vê a vida renovar-se. Por isto custa  morrer. A vida é sempre um primeiro dia, a hora, o minuto primeiro, não o momento e a hora que se somaram a outras horas e minutos. Por isso custa morrer e Chico Borralho sofre”`.

Vergílio Ferreira, como toda a geração neo-realista preocupou-se de tal modo com a reproduçào da realidade, que Vagão “J” chega a beirar o documental. É importante lembrar que grande parte da ficção neo-realista portuguesa não foi ou quase não foi além do documentário. Isto, aliás, por preocupaçào dos próprios escritores, a quem só a realidade palpável interessava. Preocupaçào que nasceu com o primeiro romance neo-realista português, Gaibéus, de Alves Redol, que traz este texto à guise de epígrafe:

‘Este romance não pretende ficar na literatura como obra de arte. Quer ser, antes de tudo, um documentário humano fixado no Ribatejo. Depois disso, será o que os outros entenderem”.

A propósito deste livro e da vocação da geração neo-realista para o documentário, importa também saber que Gaibéus, antes de ser realizado como romance, foi concebido por Alves Redol como um estudo etnográfico que o escritor pretendia fazer sobre um grupo de ceifeiros que vendia o seu trabalho nos arrozais do Ribatejo: a gente da Glória, tão diferenciada no vestuário como nos hábitos de vida e de trabalho dos outros alugados dali.
Alves Redol não consegue criar personagens complexas, reais. Se aqui e ali elas manifestam algo de individual, isto se dilui logo em seguida, perde-se no coletivo. Este é o seu verdadeiro personagem: o coletivo. O ser humano que ri, pensa, chora, sente, ou seja, o ser humano real, não tem lugar no seu “realismo”.
A estória que o romance nos conta é a de um grupo de gaibéus – vale explicar: trabalhadores de outra região contratados para o trabalho no Alentejo. O romance não trata das pessoas que foram o grupo, mas do grupo em si, enquanto realidade social. O narrador tenta revelar-nos, em perspectiva, a vida dura dessas pessoas, fruto da injustiça social. Às vezes, ele se aproxima mais de alguma personagem, tenta sondar o seu interior, o que nos mostra, entretanto, não é propriamente uma pessoa, mas um tipo.
O ceifeiro rebelde, outra personagem de quem o narrador procura aproximar-se, revela-se menos ainda pessoa. É simplesmente alegoria das idéias de libertação do narrador, e mesmo do autor. Ele não sente o mundo, não experimenta o mundo, simplesmente o analisa a partir de categorias sociológicas, disfarçadas de idéias e emoções de um gaibéu que, depois de mergulhar na vida, decepciona-se com ela e comeá a desenvolver a consciência crítica. Se o narrador tivesse conseguido acompanhar este processo, teria conseguido criar uma grande obra, mas ele não consegue, já apresenta-o numa leitura pronta, acabada, de fora.
É importante frisar aqui que não se trata de negar uma verdadeira, e mais que legítima, simpatia do autor para com os trabalhadores pobres e injustiçados. O que me parece é que este procedimento – de sobreposiçào de idéias – não valoriza e respeita a vida e cultura destes mesmos trabalhadores, pessoas, representadas por aquelas personagens.
O ceifeiro rebelde – representante autorizado do narrador e do autor – como um herói intelectual iluminista, tem o saber libertador e quer, ‘generosamente’, doá-lo ao povo que vive na ignorância, vítima da ideologia imposta pela classe dominante. Nunca passa pela cabeça deles que este povo também tem o seu saber, que ele também tem o que ensinar, que na sua cultura também existem germes libertários.
Podemos ver isto claramente no modo como o narrador trata a linguagem – parte essencial e principal forma de expressão de uma cultura – dos seus personagens. Pensemos, primeiramente, na linguagem do próprio narrador. Trata-se de uma linguagem direta, objetiva. Busca-se descrever a realidade exterior de uma forma fiel. Este modo de ler/descrever a realidade mostra-nos a realidade opressiva em que vivem os pobres. Por trás da linguagem aparentemente objetiva do narrador podemos, entretanto, sentir seu olhar comovido. Isto, evidentemente, não é negativo, não compromete de forma alguma a obra. Ele simpatiza com as personagens de quem está falando e tem todo o direito, inclusive esteticamente falando, de gritar o seu protesto. O problema se dá na hora de passar a palavra para eles. – e esta idéia chega a ser externalizada pelo ceifeiro rebelde – não sabem o que falar. Este é o preconceito de fundo que compromete não só ideológica mas também formalmente o romance. Na prática do texto, fica implícito que els nào sabem não apenas o quë, mas nem ao menos sabem falar. Algumas das palavras dos pobres que entram na narrativa, ou algumas reproduçòes de sintaxe ou fonética, não chegam a articular a suamlinguagem. Não revelam a sua cultura. Têm quase um caráter exótico. Revelariam, no máximo, a sua não-cultura, sua pobreza também neste nível.
Mas será esta a verdade? Será a cultura do pobre também uma cultura pobre?
Herdeiro ou continuador da escola realista, o Neo-realismo tem em si algo que o poderia ligar também a um certo Naturalismo. Aliás, em Portugal, Realismo e Naturalismo de certo modo se confundiram numa fusão de tendências. Evidentemente que não é pelo espírito ou pelo aprendizado científico positivista exageradamente presente na obra literária que se dá a semelhança entre Neo-Realismo e Naturalismo, visto que naquele o que predomina é a observação do social, basicamente em seus aspectos políticos e econômicos. O que de certo modo sugere alguma semelhança entre as duas tendências literárias, além da filosofia materialista comum a ambas, é a inclinaçào que, cada uma a seu modo, têm para o patológico. O Naturalismo preocupou-se com a patologia humana e suas conseqüências na sociedade através dos fatores históricos, ambientais ou genéticos e nào se pode negar que muitas vezes foram exagerados os resultados ou conclusões da aplicaçào das teorias científicas à literatura. O Neo-Realismo volta-se para um outro tipo de estado patológico? Preocupa-se objetivamente com a patologia social, com um estado mórbido da sociedade originado por uma estrutura sócio-político-econômica defeituosa e injusta que permite o progresso – mesmo ilícito – das classes dominadoras à custa da degradação e do sacrifício das camadas inferiores. Não se podem negar exageros cometidos em nome do movimento. Como defendesse uma literatura de objetivos sociais e mesmo intervencionistas (falou-se muito de uma intervenção neo-realista), a pretexto de literatura social, principalmente durante a primeira fase do Neo-Realismo surgiram – para felizmente logo desaparecerem – inúmeros escritos muito mais próximos do panfleto propagandístico do que do trabalho literário.     
Em ‘Apelo da Noite’, o protagonista nega a crença religiosa mas aceita a idéia de santidade:

“Há santos ou pode havê-los  em todas as religiões, em todos os partidos. São os que assumem...”

Linearmente traçada a fábula de Apelo da Noite, observa-se que o romance se constrói a partir de uma açào subjetiva que da consciência de sua principal figura, Adriano Mendonça, é transposta para o plano objetivo de uma efetiva ação – armada, inclusive – com finalidades políticas de que é protagonista o próprio Adriano. Como Carlos Bruno, o herói de Mudança , Adriano Mendonça vem de Coimbra, onde cursou engenharia e paralelamente cultivou uma herança do pai: o gosto pela literatura e o questionar ideológico. A conclusão do seu curso coincide com o término da guerra, e o regresso a Évora, à terra natal, com a repentina morte da irmã, Lídia.

“Visitava-o a morte agora pela primeira vez, o seu absurdo, a sua violência como um estampido”

Este desenvolvimento inicial do romance em tudo se assemelha ao de Mudança, salvo no que se refere às certezas dos seus protagonistas, visto que Bruno regressa de Coimbra acreditando ainda em todos os valores materiais que sempre lhe sustentaram a existência, enquanto que Adriano, ao invés dessa crença, já traz instauradas na consciência indagações e dúvidas marcadas por certo amargor de angústia. Os seus valores, já postos em questào, sucumbem totalmente ante o absurdo da morte, a extrema fragilidade da vida, representada pelo imprevisto falecimento da irmã, que patenteia a falência da ciência humana. A partir desse primeiro encontro com a morte, registro do desmoronamento de frágeis valores existenciais, tal com a Carlos Bruno impõe-se a Adriano Mendonça encontrar novas razões que justifiquem a vida, mas, ao invés do protagonista de Mudança que mergulha longamente numa extrema lassidão e inapetência, Adriano, após breve período de depressão, tem um lampejo de revolta contra o desespero que a morte infunde e encontra na atividade política uma razão para continuar vivo?

“Levanta-te, morto antecipado, a hora volta, a esperança volta – brusco de coragem e remorso, desatou a fazer projetos, de novo a vibração política o transformou, abalou o país! Eleições livres! Ele as dá de novo, as teve de dar!”

“E em outubro confirmou-se o boato das “eleições livres”. Por influência da América, por influência da Inglaterra, por imposição da História. Longos anos de sangue e de ruína, as emissoras estrangeiras prometiam a liberdade e a paz, campos de concentraçào, horrorosos crimes da noite – vinha aí a luz da manhã, eles falavam já no “desmanchar a feira”. Adriano ergueu-se ao clamor e durante um mês, em Portalegre, Coimbra, Évora, outra vez em Portalegre e em Faro e em Beja, conferências, organização de listas, passava as madrugadas redigindo manifestos, Gabriel pedia artigos para jornais clandestinos, Torres mandava rifas, exigia novas traduções”.

Na ação de objetivos políticos imediatos, colocou Adriano, equivocadamente, um valor absoluto que ansiava por alcançar. Equivocadamente porque os resultados dessa ação, quando alcançados, depressa se esgotam ou se ultrapassam, caindo portanto no relativo ou no contingencial da dinâmica histórica. Para Adriano, tanto quanto para Aires, era válido e possível resumir a vida numa ação decisiva Por isso, em busca desse absoluto, ele parte para Lisboa, juntar-se à clandestinidade de um grupo de intelectuais revolucionários, alguns já conhecidos dos seus tempos de Coimbra. Do relacionamento de Adriano com seus perplexos e inquietos companheiros, vai surgir, como contraponto da ação política investida de absoluto, o valor da idéia como fator capaz de superar os resultados da açào. Forma-se assim a tensão essencial do romance, que é o conflito pensamento/ação, e, como quase todos os componentes do grupo clandestino são escritores (alguns são intelectuais voltados para outras áreas: médicos, professores, jornalistas), as discussões são conduzidas para o campo da literatura, questionando-se a função social da obra literária. Este direcionamento do romance permite a Vergílio Ferreira praticar um autêntico ensaísmo dentro da ficção, um ensaísmo por vezes essencialmente literário, como o que subjaz nos trechos em que se questiona o Neo-Realismo e suas finalidades sociais imediatas veiculadas através da literatura. A certa altura há memso uma referência à ortodoxia neo-realista , à qual se opunha o romance de Adriano Mendonça, Viagem sem Regresso. Há também a declaração de Gabriel, diretor de uma revista literária em decadência que o grupo clandestino pretende fazer ressurgir e para a qual planejam traçar um programa de açào, de que a sua intençào não é senão ajudar e esclarecer o homem, ajudá-lo a reencontrar a sua dignidade. E há ainda a ironizaçào de intençòes tão imediatistas quanto a denúncia da miséria e a crença na esperança de a superar pela literatura, ironia sutilmente alcançada por Vergílio Ferreira através da fala de Tibério:

“Vocês vão ver o Ribeiro. Vocês vão ver o que é um romance ao pé dessa merda para aí. Vocês vão ver o Canuto. E o João Palha. Não são porcariazinhas de gabinete. São romances modernos, romancezinhos vividos, de coirãozinho ali batido na experiência. Canuto foi caixeiro a sério, varredor a serío, moço de fretes a alombar com carregos. O Ribeiro foimoço de mandados numa casa de mulheres de quinze paus. O Palha foi molleiro na terra do avô e proqueiro na terra da mãe. Esses senhores delambidos a armarem para aí que foram carroceiros, guitarristas do fado, para impingirem o seu romance. Tomaram sempre chá das cinco com senhoras. Varredor, o Canuto. Moleiro, o Palha. Romance vivido, fossadinho ali na realidade. Cambada!”

Num esquema de aproximação entre Vergílio Ferreira, Sartre Camus, em relação a André Maulraux pode-se afirmar que Apelo da Noite é o mais maulrausiano dos romances do autor de Mudança. Efetivamente, se alguns traços da obra do escritor francês podem ser encontrados no conjunto romanesco de Vergílio Ferreira, Apelo da Noite  é um romance claramente relacionado com a característica mais ampla da obra ficcional de Malraux, o fascinio das personagens pela aventura, pela açào política perigosa, pela revolução armada, em que a morte é encarada com naturalidade, sem temor, porque a justificação da existência está na própria execuçào da açào (que pode, evidentemente, ser interrompida)  assumida como um valor absoluto e elevada a uma dimensão metafísica.
No romance não há realidade externa que faça contrapeso ao cunho inacabado da reportagem. Transformadas em princípio construtivo de ficção, e deslocadas de seu contexto prático, estas técnicas provisórias tornam-se juízo absoluto sobre a condição humana. O romance habitual, que fala ordenadamente da desordem de uma revolução, busca representar um momento histórico, real ou fictício; um romance que incorpora a precariedade jornalística à sua estrutura, transforma-se em juízo, afirmação absoluta, já que a desordem não é mais questão de conteúdo, mas escolha técnica feita de antemão, anterior ao começo e à matéria do romance e independente deles. Á volta desta problemática emergem as questões centrais de A Condição Humana, e explicam-se os seus êxitos e suas falhas.
O romance de Malraux oscila, pois, entre o relato histórico interessante, mas jornalístico, e a descrição de experiências de impotência humana, que tendem, no limite, a tornar-se mera exemplificação metafísica; as duas fraquezas são complementares. De entremeio aparece a luta pelo sentido, a experiência concreta que nào se desfaz em esquemas nem sofre do linguajar cansado da reportagem, no qual não se retém a marca do acontecimento, logo perdida na generalidade do vocabulário convencional.
Por não Ter profundidade no tempo, o romance não tem também, variedade histórica; falta-lhe, daí, um pano de fundo concreto sobre o qual os acontecimentos possam desenhar a sua singularidade. As ações precisam de termos abstratos e teóricos para caracterizar o seu desenvolvimento, termos pomposos, que reduzem o evento concreto à exemplificação de uma estrutura abstrata. A mimese evapora em juízo teórico. Exemplo: “As palavras eram ocas, absurdas, fracas demais para exprimir o que Tchen queria delas”. O problema artístico, de fazer sensível esta experiência e de representar a sua prática, é eludido pela mera denominação. O que são palavras ocas e fracas? É preciso apelar para a nossa experiência pessoal, se quisermos dar conteúdo a estas expressões. O livro não impõe a sua substância concreta. Resulta que o leitor não chega a uma nova compreensão delas, propiciada pela pesquisa e sensibilidade do escritor, mas basta-se com repetir a si mesmo o que já sabia, - a síntese é exterior ao texto. Voltamos à característica de jornal, que expusemos inicialmente. Os exemplos desta fraqueza são inúmeros no livro.
Na estrutura das personagens, o padrão conceitual aparece com toda a evidência. Na primeira cena do livro, a experiência de Tchen leva a uma formulação extrema da condição humana, cujo único problema significativo seria o enraizamento da consciência no mundo contingente.
André Maurois diz que os heróis de Malraux se interessam mais pelos atos que pelas doutrinas, e, se observarmos o grupo de intelectuais clandestinos de Apelo da Noite, poderemos constatar que todos anseiam por uma açào modificadora da realidade histórico-social em que estão situados, embora se mostrem, até ao final do livro, política e ideologicamente indefinidos, o que é especialmente verdade em relação a Adriano Mendonça, entre todos, o menos interessado em doutrinas políticas. Adriano tem um problema fundamentalmente idêntico ao do seu companheiro Gabriel: ser artista dentro da ação.
Não é de biografias que o ensaio trata, mas isto bem poderia Ter sido um lema de vida de André Malraux, em quem sempre coexistiram o homem de ação e o artista e em quem a arte acabou por suplantar a aventura. É assim que André Maurois se lhe refere: ele enxerga uma outra oportunidade de salvação aliada à história, que é a cultura; outro método para se aproximar do mundo, que é a arte, recriação do mundo. Adriano Mendonça oscila também entre a arte e a ação, e, se ao final escolhe a ação como forma de salvação existencial, o ato de pensar e a realizaçào artística nunca estiveram ausentes da sua existência. A grande dor de hoje é a do pensamento – O grande pecado de hoje: o pensar. Estas afirmações da consciência de Adriano são praticamente um eco da narração do final de Mudança: Esse era o crime de que o acusavam: - pensar. E é evidente que estas três afirmativas e o que elas sugerem de comportamento vivenciado, seja por Carlos Bruno ou Adriano Mendonça, têm sua raiz no raciocínio absurdo de Camus: começar a pensar é começar a ser consumido.
Pensando em toda uma interpretação que foi elaborada em termos de Albert Camus, com insistência frisando a questão do absurdo, com uma conotação tendenciosa: a de encerrar o pensamento deste escritor, dramaturgo, numa leitura negativa. Este ser que se assume: elabora a sua visão-de-mundo, a sua espiritualidade. Há uma leitura da espiritualidade na obra de Camus que pretendemos elaborar neste trabalho, buscando a síntese com Vergílio Ferreira; este, sem dúvida, assume a sua influência do escritor/dramaturgo francês.  
Reconhecendo-se na intencionalidade da sua consciência, a existência humana emerge na cisão. Consciência de si e consciência do mundo são dois enfoques do mesmo fenômeno. A realidade humana exprime-se na sua dimensão de ser no mundo.
Ser no mundo significa existir para si e para o mundo, não apenas o mundo da natureza, configurados em termos humanos, mas também, é claro, o mundo social em que o ser-com-os-outros assegura a realidade no modo da co-existência.
Quando neste trabalho se inicia a abordagem de      Vagão “J”, principiou-se por destacar certas inovações lançadas por Vergílio Ferreira dentro do contexto da ortodoxia neo-realista. Pontos de exceção inseridos num universo de uniformidades. Terminada a leitura do romance, uma coisa se torna bem clara: o cenário, as personagens, os objetivos do livro, são comuns a toda a ficção social desenvolvida no momento histórico em que ele apareceu, mas certos detalhes do estilo e da técnica narrativa do escritor nesta obra já não se situam dentro desse contexto literário.
Ao longo do romance aparecem diversos trechos narrativos de escrita muito ágil e nervosa, revelando certo descosimento quase caótico que lembra a chamada “escrita automática” utilizada por alguns romancistas de vanguarda ingleses e americanos e conhecida também dos escritores surrealistas. Além disso, Vergílio Ferreira utiliza na narração de Vagão “J” diversos focos narrativos, mudando freqüentemente de ponto de vista, passando alternadamente da visão do narrador de terceira pessoa para a perspectiva da personagem que revela o seu pensamento em primeira. Transcreve-se um texto para exemplificar:

“Mas quando Antônio voltou mais uma vez a férias, desiludiu o tio que esperava dele muita conversa e até talvez um pouco de latim, só para ver como era aquilo lá na missa, nunca soubera o que o padre rosnava no jissal. Joaquina tinha-o prevido de que Antônio era outro, não fazia recados a uma pessoa, tinha até vergonha da família. Joaquina já nem ia esperá-lo à camioneta, porque D. Estefaânia e a criada esmpalmavam-no logo, levavam-no a reboque para casa, e que pena eu tenho de nem lhe poder falar, sempre sou mãe, mas julgam que lhe faço emal e levam-no. Uma vez ainda me pus de lado a ver se ele me olhava, e ele olhou e correu para mim e deu-me um beijo. Mas foi só uma vez”.

Para usar a terminologia empregada por Jean Pouilon em O Tempo no Romance, Vergílio Ferreira, utilizando este recurso técnico em nível do foco narrativo, ou se preferir, do ponto de vista da narração, passa sucessiva e alternadamente de uma visão “por detrás” para uma visão “com”, colocando-se ora da perspectiva do narrador onisciente ora da consciência, da visão ou do pensamento da própria personagem. Assim Vergílio Ferreira chega a utilizar os recursos do monólogo interior e aproxima-se dos romancistas que empregam a técnica da corrente da consciência.
Não foi por mero acaso que Vergílio Ferreira utilizou esses recursos narrativos em Vagão “J”. Foi conscientemente que ele o fez, conforme revela no prefácio que escreveu para a reedição do romance:

“Orientado, porém, este meu livro pelos valores que julguei valiosos adentro de uma perspectiva social ou antes socialista, desejando eu, pois, que ele registrasse por essa perspectiva a minha chamada fase “neo-realista”, a razão maior talvez que me levou à sua reediçào terá que ver com a sua “escrita”. (...) Em todo o caso, determinar o que define a essa escrita não me é fácil. Exceto o que a decidiu a ser o que foi. Porque o seu impulso primeiro – sinto-o mais do que o sei – foi um impulso ao “jogo?, a uma intrínseca e indizível liberdade na utilização das palavras, construções, na fusão dos elementos construtivos da narrativa – do discurso direto e indireto, do diálogo e narrativas em que se insere, das palavras em que esta mesma se desenvolve e ainda uma certa perspectiva de ironia em que a intenção política imediata se corrige, em que as personagens se erguem desde o seu próprio sentir ao sentir do autor, que por essa ironia, afinal, lho acenbtua pela correçào. Um dinamismo interno percorre assim todo o livro e a própria ausência de capítulos o sugere”.
Esses recursos técnicos utilizados pelo escritor, mesmo pelo jovem romancista da primeira fase, do período de aprendizagem, não passaram ignorados pela percepção crítica de um ensaísta como João Palma-Ferreira, que a eles assim se refere:

“Já nos contos mais chapadamente realistas de Vergílio Ferreira (recordemos O Encontro, do volume A Face Sangrenta, 1953), se esboça, como porventura no trama (sic) de O Caminho Fica Longe, - o seu primeiro romance, publicado em 1943 -, o choque entre o fluxo da consciência da personagem e as conveniências dos tipos que encaixam no circunstancialismo verista. E não só esse conflito começamos a sentir nas obras mais remotas de Vergílio Ferreira, mas também a tendência para a animizaçào trágica de uma natureza semi-bárbara e grosseira que se acende de um dinamismo agressivo propício ao desencadear de paixões intimas e egoistas”.
              
Citado por Maria Aparecida Santilli, “O ‘Moto-Spiritual’ de “Mudança”, pag. 134. Para melhor compreensão destas esquivalências, válido é transcrever-se o texto de Kate Hamburguer em que Aparecida Santilli apoia o seu pensamento:

“A linguagem criadora de literatura que produz a poesia lírica pertence ao sistema enunciador da linguagem. Isso já é justificado do ponto de vista básico-estrutural pelo fato de que experimentamos um poema de modo completamente diferente do que a literatura ficcional, narrativa ou dramática. Experimentamo-lo como o enunciado de um sujeito-de-enunciação. O muito discutido eu lírico é um sujeito-de-enunciação”.

Expresso assim, parece confirmar-se a definição tradicional do lírico como gênero literário subjetivo e realizado um passo no sentido da descrição moderna da poesia como formação ‘lingüística’. Voltamos a Hegel, o verdadeiro fundador da fenomenologia literária alemã. “NO lírico”, diz ele, “é satisfeita a necessidade (do sujeito)... de desabafar e de perceber a disposição interior na exteriorização de si mesmo’. Nesta sentença é fundamentada a subjetividade específica da experiência, o ‘sujeito’ como pessoa, o eu pessoal do poeta, seu interior, a subjetividade do lirismo em oposição à objetividade do épico”.
Não é por acaso que o romancista insiste na contemplatividade de Carlos Bruno, diante da paisagem ou dos fenômenos naturais. Não são casuais as longas jornadas que ele faz de bicicleta ou a pé pelos caminhos da serra. Contudo, facilmente se verifica uma radical mudança na forma de sentir, perceber, interpretar a paisagem ou os fenômenos da natureza entre as primeiras e as últimas aparições de Carlos Bruno no romance.
Na consciência de Carlos Bruno começa a operar-se uma fusão do homem com a terra, o que ocorre inicialmente, em relação ao Gaviarra, numa colocação que, sem deixar de ser existencial, tem ainda algo de econômico, no que se refere aos meios de aquisição, e de sobrevivência. Essa fusão vai envolver o próprio Bruno, que em dado momento descobre na natureza o valor que procurava para fundar sua existência e o meio de abrandar a angústia que o consome. Ao final do romance, acentua-se o processo de metaforização dos fatores naturais. A neve que cai na encosta e um

“...vasto mar branco, com ondas nas curvas lentas dos cerros, barcos negros de casas, mastros de ramos de árvores”

Vergílio Ferreira, em “Invocação ao meu Corpo”, assim diz acerca da Arte:

“A arte abre o ilimitado de nós, implanta-nos no absoluto que transcende o real, mas fixa aí esse absoluto numa radical imanência, porque a transparência que nos abre é imanente a si própria”


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