*POLÍTICA DE AMOUCO AMBICIOSO* - Manoel Ferreira


Bons dias!


Porfírio Honório Dutra, não há quem o conheça desminta tais palavras, quiçá não acrescente outras mais definitivas, dizendo até esteja eu amenizando por alguma razão que desconheça, talvez por espírito de humanismo – por que não dizer tudo na lata e lavar as mãos? -, destinado a servir a todos, servir com desvanecimento, como os cocheiros de casa elegante.
Vulgarmente trata os nossos encontros nalgum recanto da cidade, nos restaurantes, com arrogância e desdém, é de sua natureza e instintos sentir-se o mais importante – cuido que seja por inveja de minha índole, não como angu quente pelas bordas, enfio a colher de pau no centro, não há água que não esfrie a boca, não sou diplomata, não engulo sapos secos para não criar ódio, raiva, ressentimento, enfim o vereador vive do voto do povo, tudo isso é de sua prática quotidiana, com efeito há outras “cositas” que não sei por não lhe seguir os passos, também por sua inteligência ser das mais comuns, suficiente para sobreviver: política de amouco ambicioso.
Desde que nos conhecemos, há três meses, compreendi sua intenção sine qua non era fazer-se meu privado; e não menos compreendi que no dia que realmente o fosse, dificílimo, quase impossível, colocaria os seus companheiros nas pré-fundas do inferno. Há ocasiões em que, vindo a redação para trazer seus testículos para publicação, bem característicos de seu caráter duvidoso, mesquinho, de sua falta de personalidade e princípios,   que são pagos por ele, chama-me à janela para falar-me do sol e da chuva: “ divinas dádivas do Criador, e nós somos mesmo privilegiados com o sol de trincar os ossos, cozinhar os miolos; chuva muito pouca, só para não deixar de tê-la, o que seria uma anomalia, até no nordeste há”; nos bares fala-me de seus objetivos políticos, de sua vida medíocre e miserável no passado, arroz, feijão e músculo, carne de cabeça no prato da família – contou-me um açougueiro aos cochichos que ele pedia para tirar bifes na carne de cabeça, os filhos apreciavam um bife acebolado; e o açougueiro só de imaginar os pobrezitos com a boca cheia dágua por um bife apetitoso, tendo de comer a carne de cabeça cozida, fazia esforços inacreditáveis para tirar os bifes -, a carreira foi sua salvação, passou a comer só ponta de colchão, sua carne preferida, me pareceu que ele é in totum avesso à realidade dos pratos de carne, ponta de colchão é específica para churrascos; seus sonhos antigos que não foram realizados, não teve condições, tinha de se conformar com o que ainda tinha, com o que Deus lhe reservará, o destino lhe impingira, com aquela carinha de tatu acuado no buraco, sabe mesmo representar a tristeza por seu passado tão difícil, mas ao mesmo tempo o sorriso de agradecimento por Deus lhe haver dado a oportunidade de mudar de vida.
Sério – acredite quem não quiser, mas não creio que haja alguém que desacredite, pois sua índole é famosa na comunidade, faz um tremendo sucesso com ela -, nunca vi alguém falar tanta asneira, há quem o chame de “língua de asno”, com galhofas e desdéns: “O língua de asno discursou na tribuna da Câmara, aplaudido de pé pelos presentes, todos lhe apertaram a mão no final da sessão”, “o língua de asno está com novo projeto sobre os impostos abusivos”.
 O fim tácito de tratar-me com arrogância e desdém é incutir nas pessoas a suspeita de que há entre nós coisas particulares, e alcança isso mesmo, porque todos lhe rasgam muitas cortesias. Sente-se sobremodo lisonjeado por recebê-las, enquanto nem de longe alguém o faz com relação a mim, silenciam-se de todo; se o fizessem, o olhar de esguelha e o sorriso amareliçado estariam presentes, deixando-lhe desconsertados, pois sabem o que significam, nada mais, nada menos que “o que está querendo comigo?”. Se não tenho coisas particulares com pessoas de grande idoneidade, inteligentes, cultas, honradas, de modo algum vou tê-las com homens amoucos, vulgares.   
É risonho, fino, conversa muito bem, seguindo o menu da boa educação, as etiquetas do respeito às opiniões e pontos de vista alheios. Não conheço compreensão mais rápida. Não é poltrão nem maldizente. Só fala mal de alguém por interesse, faltando-lhe interesse, silencia-se; e a maledicência legítima é gratuita. Dedicado e insinuante. Não tem idéias, é verdade, nem conjuga os verbos da clareza e transparência de seus pensamentos – algumas pessoas, não lhes cito o nome para não lhes envolver, mas são conhecidos de meus leitores, cuidam que isto de não ser claro e transparente com o que diz e pensa é devido ao fato de suas relações serem com homens de cultura, os intelectuais fogem dele como a cruz do diabo, e os cultos por princípios têm a obrigação de ler nas suas entrelinhas. A diferença entre Porfírio Honório Dutra e Abravanerges, outro vereador, são do mesmo partido, é que este repete pronta e boçalmente as idéias que ouve de outros, as ideologias de seus correligionários, ao passo que Porfírio Honório Dutra sabe fazê-las suas e plantá-las oportunamente na conversação.
Um caso de três semanas antes caracteriza bem a astúcia deste homem. Tendo ouvido uma conversa entre dois vereadores da oposição, quando jantava com a família no Restaurante Prato Fino, seu reduto alimentício mais que adorado, idolatrado, estavam de costas, despertou-lhe para o esclarecimento de um projeto seu sobre direitos autorais. Sabendo disso, só não cai duro e fedendo por estar bem sentado na cadeira da mesa de minha redação, isto porque não tem sentido leis de direitos autorais em nossa comunidade, ninguém precisa deles, ninguém sabe o que é isto. Por que os vereadores estariam falando neste propósito? Talvez por lhes faltar outro tema para o colóquio. Que outra coisa desejariam jogar nos fundos da gaveta, projetos assim só servem para tripudiar a realidade, tergiversar a cabeça das pessoas, fazê-las esquecer da realidade, do que realmente está acontecendo de indecente e imoral no reino da política.
Porfírio Honório Dutra não precisava de mim, tem a sua secretária Claudine Dias – dizem nos camarins é a sua amante número um – que é formada em Letras, professora em escola particular, para redigir o texto a respeito dos direitos autorais, como sempre o faz com os artigos que publico nas minhas páginas, e mesmo não sabe nem pegar numa caneta, garatuja as coisas, ele escreve seguindo os interesses, corrige os abusos das normas e regras da língua. Já ouvi pessoas lhe elogiaram por seus textos bem escritos, respondendo-lhe com um belo sorriso de lisonja: “Levo horas para um texto pequeno, mas no frigir dos ovos sai bem escrito”, olhando-me de soslaio, provavelmente com medo de eu dizer que, em verdade, é a Claudine quem os escreve, e mesmo que sou eu quem ainda faz os últimos retoques porque não vou fazer circular absurdos da língua no meu jornal.
A idéia, segundo me dizia, era original, ninguém inda houvera nem imaginado, desejava mesmo um texto de porte, coisa que só eu saberia fazer. Não era fazer menos da secretária, não duvidava de suas capacidades, mas só escrevia conforme suas “pequenas anotações”, não era criativa, não iria conseguir registrar o espírito de suas idéias. Estive por lhe contestar no que tange à competência de Claudine por saber que já havia escrito até monografia sobre autores para membros da academia de letras tomarem posse, o seu dinheirinho extra para ajudar nos orçamentos familiares e sociais. Iria mexer nos seus brios, pois é Porfírio Honório Dutra quem lhe proporciona estes ganhos, amicíssimo de muitos dos membros, poder-se-ia insatisfazer, prejudicando-me saber das idéias que havia re-colhido e acolhido dos vereadores da oposição acerca dos direitos autorais, não iria dar-me a alegria de grandes gargalhadas em casa em companhia de Josefina, quando lhe contasse na mesa de jantar, entre um garfo e outro.
Passou a dizer-me o que, para ele, são direitos autorais, que ninguém tem a mínima noção, em verdade ninguém nunca pensou nisto. Por exemplo, se ele capina um terreno baldio com perfeição até o proprietário deixando o queixo cair de tanta admiração por seu trabalho, o direito autoral é dele, se outro capinador fizer o mesmo, o proprietário deve descontar de sete a dez por cento do valor a ser pago e a quantia ser depositada em sua conta bancária, porque quem criou a perfeição da capina foi ele. Se alguém plagiar uma obra, além de a obra ser proibida de circulação, o plagiador deverá pagar uma pensão de três salários todos os meses, pelo resto da vida, e a falta do pagamento resultará em prisão.
Outros despautérios e disparates foram incluídos a este, não com o interesse de persuadir-me a escrever, iria pagar e bem – pedira-me a gentileza de não assinar o projeto; neste pormenor, olhei-o bem, não percebeu que, mesmo que estivesse interessado em seu dinheiro, não assinaria nunca, não jogo meu nome na lama, comi o pão que o diabo amassou para ter renome como jornalista -, tinha em mente que a partir de estar a explicar-me aceitaria sem qualquer senão, considerava-me um privado seu, mas para esclarecer e elucidar bem sua idéia, minha incumbência seria a redação do projeto de lei. Olhava-o de soslaio, de esguelha, de banda, sorria amarelo, espantava-me, franzindo a testa, assustava-me, torcendo o nariz. Nem de longe, instintivamente, percebia que me admirava um homem, vereador eleito pelo povo, esperando dele mudanças dignas no que concerne aos direitos dos cidadãos, fosse capaz de dizer tantas asnadas, acreditando estar sendo de fina inteligência, era ele um perfeito imbecil. O poder nunca permite aos políticos serem conscientes de seus ridículos, ao contrário, dá-lhes a certeza de uma importância sobrenatural, valores e virtudes eternas. Vivem principalmente de imagens, de frases translatas. “Os dentes da calúnia”, “viver é perigoso”, como ele publicou nestas páginas, roubando a frase, idéia, pensamento de Guimarães Rosa, e outras expressões, surradas como colchões de hospedaria nas imediações de estações rodoviárias, são os seus encantos, cânticos e líricas. Mortifica-se facilmente no jogo e, uma vez mortificado, faz timbre em perder, faz altissonância em ganhar, faz gogó em ter orgulho e em mostrar que é de propósito. Não despede as más consciências, os instintos de jegues ou burros. O subdelegado Ornan Gabiro, meu amigo da cidade de Três Montes, que emprestara uma quantia a Porfírio Honório Dutra, dizia-me com muita graça que este quando o via na rua, ao invés de lhe pagar a dívida, pedia-lhe notícias do pagamento da comunidade de todos os impostos.
Explicou-me suas idéias, exemplificou-as, tentou esclarecê-las, fez-se de importante, regozijou-se, vangloriou-se, sentiu-se solidário àqueles cujos direitos autorais não são respeitados. Terminando, creio que sentindo haver se emocionado muito, aos sessenta e oito anos correria sérios riscos de enfarto se continuasse, olhou-me com olhos brilhantes de sombra, um indício de desdém e arrogância, eu mesmo jamais havia pensado nisto de direitos autorais, eu que sou um jornalista deveria saber com primor e finura, com eles me persuadiria a escrever seu projeto de lei.
- Então...
- Não posso escrever, vereador...
- Por que não? Posso garatujar alguma coisa para você ter melhor idéia da coisa.
- Não sou vereador, nada entendo de leis, quanto mais de escrevê-las. Não faço política, vereador, faço jornais que circulam pela nossa comunidade.
- Dou-lhe uma contribuição mensal para aumentar os exemplares de seu jornal. São cinco mil exemplares todos os meses, não é verdade? Que tal passar a dez mil exemplares.
- Dinheiro não me compra. O que realmente me compra é o homem honesto, digno, sério. E você, vereador, não passa de um simulacro de homem.
Levantou-se da cadeira, saiu da redação pisando duro. Não fez qualquer ameaça, não emitiu qualquer palavra. Não por ameaças não me afetarem em nada, mas porque um político de fibra não faz ameaças. Que me importa? Não mais vai passar a idéia de que temos intimidade.

     

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