OUTRAS ALGIBEIRAS DE ORÇAMENTO - Manoel Ferreira



Bons dias!


 Senhores, se lhes digo que posso limpar com esmero a mão com o trabalho de criatividade e imaginação, um dos mais complexos e difíceis de serem realizados a contento dos homens, de imediato, sei disso e bem, vão logo pensar em Pilatos que lavou as mãos e condenou Cristo à morte na cruz. Isto porque é tempo da Semana Santa? Também, mas a questão primeira é que lavar e limpar mão desperta o inconsciente divino dos homens, Pilatos se lhes re-vela. Não se trata disso, nada vou dizer disso nesta manhã, nada pensei nesse concernente.
Limpo a mão na máquina da loteria. Fui criado e educado terminantemente contra o jogo, nem cartas a leite de pato era-me permitido, o que agradeço cordialmente à minha família. Aquando conheci Dostoiévski, lendo as obras, tive, não vou negar, um pouco de preconceito contra ele por haver sido jogador compulsivo, são aqueles valores enfiados em nós pela família, desvencilhar-nos deles não julgando quem defendem outros não é tão difícil, exige muitas reflexões e práticas outras, superei o preconceito, graças a Deus, mas eu próprio odeio jogos. O jogo pode enriquecer em questão de minutos, pode levar à miséria sem precedentes num segundo, dependendo dos ímpetos por fortuna e poder. Não jogo. Odeio isto.
Mas, ontem, quebrei meus princípios, comprei um bilhete de loteria para presentear Josefina, está louca por comprar geladeira nova, a nossa data de nosso enlace matrimonial, há vinte anos, escrever crônicas para o deleite dos leitores não dá condições de uma compra deste porte. Entreguei-a em mão, dizendo-lhe que conferisse depois, quem sabe não tirasse o prêmio máximo. De imediato, a pergunta solene, perdi a conta do número de vezes que a fez: “Por que ao invés de escrever crônicas, não traz dinheiro para casa? Dinheiro, não mixaria para o almoço e janta. Não iria precisar comprar bilhete de loteria, sonhar com um prêmio. Mas, obrigado, meu amor!...”. Não sei fazer outra coisa. Houve na história quem fizesse a mesma pergunta ao marido, mas a situação dele era bem mais precária que a minha, o seu pensamento e idéias incomodaram bastante, ainda continuam incomodando. Minhas crônicas incomodam, mas nunca que me tenham  causado conseqüências drásticas, só divertem e deixam alguns insatisfeitos.
Se a máquina de loteria é boa ou má, não o sei, se premia os verdadeiros necessitados, ou se os que nascem em berço de ouro, sei que muitos já foram privilegiados com grandes fortunas, alguns saíram do atoleiro das dívidas e dificuldades, outros aumentaram o capital.  Fortuna escabrosa não vale a pena, com ela perde-se a tranqüilidade, a segurança, a pessoa estará sempre correndo riscos de morte, houve quem fora assassinato devido a ela. Limito-me a escrever algumas linhas a respeito para escarmento dos espíritos temerários, ou rotineiros, não sei o que deva dizer para deixar bem claro o que intenciono; qualquer palavra serve, contanto que fique o escarmento; esta palavra é a protagonista destas linhas, não no sentido que o dicionário a registra, mas noutro bem diferente, isto para in-ovar e alcançar os objetivos que pretendo. Não o direi, com isto quero despertar a sensibilidade e inteligência de meus leitores.
A primeira coisa que revela a máquina de loteria a que me refiro é a fé no futuro. Os sapateiros não fariam mais sapatos, se acreditasse que todos iam nascer com pernas de pau. Para que serviriam os sapatos em pernas de pau, nelas não existem os pés. O sapateiro seria tido e havido como imbecil de galocha. Inventar uma máquina para a loteria, disposto a aperfeiçoá-la com o tempo é implicitamente declarar que não está perdida a fé na permanência da instituição.
Ora, leitores, e não julguem estar sendo eu cínico e sarcástico, enfim já é de domínio publico tudo o que escrevo traz a marca do cinismo, e fora o que me dera o renome que desfruto hoje – houve quem me perguntasse se na vida real sou tão cínico quanto o sou na ficção, não lhe dando outra resposta senão que procurasse saber de Josefina, era a única que poderia satisfazer seus interesses; fê-lo, foi até minha casa com a pergunta na ponta da língua, e Josefina não lhe dera outra resposta senão que a razão de seu amor por mim era a minha autenticidade com o meu cinismo -, não como veículo da postura, mas como órgão de uma instituição é que a máquina foi ter ao Clube dos Militares para ser avaliada, investigada, examinada, conforme a função deles. Deve-se, todos irão concordar, acatar o que digo, creditar aos militares a sabedoria das máquinas de loteria, são os experts; só uma sabedoria tão profunda pode investigar, examinar, avaliar tais máquinas. Que não mais digam aos pés dos ouvidos dos outros que persigo os militares, quando me refiro a eles inevitavelmente a negligência toma a cena, a crítica é deslavada, de modo envelado porque no meu inconsciente social ainda impera o medo das conseqüências da ditadura militar. Creditar-lhes a sabedoria da máquina da loteria é mostrar que os tenho em grande consideração, reconhecimento. Não persigo ninguém, divirto-me à custa das autoridades, os leitores amam de paixão quando há alguém se diverte à custa dos outros. Entretanto, há quem tenha eu grudado nos pés deles e não largar-lhes até tomarem vergonha na cara, serem pelo menos homens, porque a atitude deles mostra-me serem nada.
Como obra prática, ad-mito que preferisse ver a atenção do Clube ocupada com algum aparelho de despolpar café; em teoria, só em teoria, é a mesma coisa. Há quem afirme, que, ainda pelo lado prático, não há diferença alguma, porque ambas as máquinas despolpam, uma café, outra algibeiras, sendo difícil discernir qual seja a mais importante; mas isto um execrável trocadilho, indigno da ciência.
O que fica aventado é aquela instituição da loteria atem ainda boas décadas de existência, quiça bons séculos de permanência no seio da sociedade. Com isto de loteria, de prêmios inconcebíveis no que concerne aos valores grandiosos, estão dizendo por todos os cantos e recantos que a classe baixa subiu alguns degraus subiu alguns degraus, tornou-se classe média, a pirâmide e econômica sofreu modificações. Quê maravilha! Para subir degraus na escala econômica não mais é necessário trabalhar, suar, sofrer, basta jogar na loteria, ganhar fortuna. Isto começou em nossa cidade com um sujeito pobre, muito pobre – ele morava na esquina, eu morava no meio da rua, ambos éramos pobres -, deu um salto, tornou-se político, a pobreza foi solucionada de vez, tornou-se importante, carteira cheia, não que tenha roubado, as suas imbecilidades de político ajudaram-lhe a crescer na escala social e política, só diz asnices, já ouvi pessoas dizerem que correm dele léguas só para não ouvir seus despautérios. Eu continuo pobre, mas não digo asneiras, cato as asnices por todo o lado que vou, registro-as no papel, entrego aos leitores para o deleite deles, para a felicidade e alegria mesmo que bastante efêmera, por alguns segundos de leitura. Depois isto chegou ao métier das artes: não era mais necessário criar, inventar, escrever, bastava ser membro de academias de letras e artes, expandiu-se na economia.
Deus a conserve, não é de sua opinião, leitor? Josefina, minha querida patroa, diz ser mais digno ter fé nos poderes da loteria que enriquecer como fazem os políticos através dos cofres públicos, o que em teoria é viável e plausível. Digo-o eu: a loteria é o auxílio, a “comiseridade” da piedade econômica, organizada no espírito da fraternidade e irmandade, que alumiam o Altíssimo com a percentagem da basbacaria humana, que é (perdoem-me o ato falho, desculpem-me a “falta-do-ser”) a melhor apólice que eu conheço, reconheço, considero, sem des-fazer ou ne-glig-enc-iar nas do digníssimo e egregíssimo Estado. Ela distribui o pão, o lençol, a coberta, o ornamento do travesseiro, o cobertor, levanta pontes, cuida do homem todo, corpo e alma, por fora e por dentro, na vida, na morte, no paraíso celestial, no inferno de Ferluci.
A ciência nada tem que ver com a utilidade ou perversidade das instituições, as instituições que se cuidem por si mesmas, assegurem os seus valores máximos e instituições, criem suas defesas próprias, superem-lhe com seus esforços, labutas, seus princípios e idéias, quem sabe possam de algum modo superá-la, enfim a ciência sempre fora um nó górdio, contrária ao bem-estar dos homens, da humanidade, sempre uma pedra no sapato do mundo, jamais proporcionou qualquer bem, sempre prejudicou em todos os níveis. Os militares nada têm que ver se a máquina da loteria tira alguém ou alguns do atoleiro das dívidas e dificuldades, se aumenta o patrimônio econômico nas algibeiras de outros, interessa-lhes apenas se as coisas estão sendo feitas de acordo com os princípios jurídicos e libertários, a fortuna a quem ganhar, o rótulo de imbecil a quem gastar o único tostão, esperando dar o salto escalafobético da pobreza á classe média. O lado social não importa nem aos militares nem à ciência, só o mecânico, por mais absurda e esquisita seja isto. Há um princípio de solidariedade, fraternidade que liga todas as instituições de um país, a máquina da loteria e a assistência social. Foi o primeiro aparelho comunitário que o Clube dos Militares examinou? Não quer dizer nada; por algum há de começar. O que não mata engorda, dizem os velhos. A loteria já matou alguns, mas em compensação engordou muitos, deu-lhes oportunidade de pratos suntuosos no almoço e no jantar, muita massa e fartura foram os ingredientes específicos da gordura deles. Não me perguntem quanto ao nível de colesterol, se aumentou ou não. A fortuna deles pode muito bem cuidar disso, não necessitam dos médicos da previdência social, podem ir aos centros desenvolvidos e contratarem médicos os mais especializados em colesterol alto, e de lá voltam com a saúde restabelecida.
Só no final de semana saberei se a loteria que presenteei Josefina dará resultado satisfatório, poderemos ter nova geladeira em nossa residência. Até lá permanece os sonhos dela de uma situação melhor na vida; e quanto a mim o que espero mesmo no final de semana é que os meus leitores se deleitem mais com estas linhas de um novo tipo de orçamento em suas algibeiras. Rir é muito bom, faz um bem enorme à saúde, ao espírito, rejuvenesce, mas rir com dinheiro no bolso é muito mais interessante. Só lhes digo para jamais fazerem como eu faço, encontrem outro modo de fazer as coisas; do meu modo, não chegará a lugar algum, isto se puderem dar algum passo em frente.      











Comentários