SENSAÇÃO DO DESEJO - Manoel Ferreira


O amor puramente verdadeiro, este nasce espontaneamente de nosso coração e se sentirá resguardado em nosso peito, por tempo ilimitado.
(DUARTE, Antônio Nilzo Duarte. Sentimentos da esperança. Fumarc.  2007. pág. 176)

Diz-nos Nietzsche: “(...) todo prazer quer eternidade, quer a mais profunda eternidade”. Antônio Nilzo Duarte quis a eternidade de seu amor por sua amada esposa e companheira, quis a mais profunda eternidade do amor que viveram, vivenciaram, sentiram bem intimo, quis a eternidade de seus espíritos em estado de comunhão, quis a eternidade de sua família, filhos, genros, noras, netos. Entre as dores e os sofrimentos, aos prazeres com as letras por estarem realizando este desejo que lhe habitara durante a escritura, por transmitir aos seus entes queridos e amigos sua vida de modo sincero e honrado, por estarem real-izando o que trazia bem fundo em sua alma e espírito, por lhe permitirem as sensações tantas sentidas de seus desejos. Numa outra passagem, noutro capítulo, o décimo - quinto, Saudade do passado,  diz-nos, referindo-se à D. Neusa, numa diálogo espiritual com ela: “Havia entre você e o livro uma espécie de pacto. Evidentemente, você estava com a razão, pois nada existe de melhor que possa transmitir tantos conhecimentos e ensinamentos ao desenvolvimento cultural de uma pessoa como a leitura, até mesmo sem considerar as suas especificações, seja qualquer tipo de publicação: livros, jornais, revistas, etc.” (Sentimentos da esperança, pág. 150) Para ele, nada existia de mais prazeroso que as sensações que lhe perpassavam por inteiro, com a pena em mão, mergulhando fundo em sua vida. A sensação primordial e essencial era o pacto que fizera com as suas memórias, através de um livro a que estava dando a luz. Nada como as memórias, através das palavras, para re-velar os mais abismáticos sentimentos, latentes, manifestos, conscientes, inconscientes, para mostrar o que bem fundo habita o espírito de um homem que ama de verdade, dedicou sua vida a amar a sua esposa, os seus entes queridos.
As ocorrências que deram início ao amor marcam o presente, marcam toda a vida futura, por toda a eternidade, porque inauguram, em verdade, uma nova história de vida. São avassaladoras, como dizemos, porque o excesso de felicidade é tão inesperado e tão incomensuravelmente grande. Elas penetram as camadas mais profundas da alma e do corpo, de modo que a consciência e as atividades racionais já encontram lá este excesso de felicidade quando se voltam para ele ou com ele se ocupam. Também na felicidade do amor não se pode dizer que se tenha feito a experiência, pois em primeiro lugar nós não “fizemos” esta experiência, nós nunca esgotamos a experiência desta felicidade de tal modo que o processo de experimentar passe a ser o processo fechado de uma “experiência”. Significa, então, que Antônio Nilzo Duarte, não fizera a experiência da felicidade do amor? Não. Fizera, e com o mais íntimo e espiritual de si, mas não a esgotara. As sensações que lhe perpassavam por inteiro não eram símbolo, metáfora de que tais experiências estavam sendo vividas, a partir de seu pacto com as memórias e as letras, a experiência da felicidade do amor estavam sendo tocadas no espírito dela, na essência dele e de seu espírito. As sensações que lhe perpassavam lhe mostravam a abertura que as memórias estavam lhe proporcionando, através das palavras iria continuar o processo de modo aberto de suas experiências de felicidade, vivê-las-ia de outro modo, no ângulo da espiritualidade, e elas produziriam em si outros sentimentos e emoções. Jamais, por todos os anos que escrevera suas memórias, estivera interessado, não era seu objetivo esgotá-las, e sim dar-lhes oportunidade de se manifestarem em todos os momentos de sua vida.
Quem diz que “fez” uma experiência deste tipo, com isto está dizendo que não vive mais nela, e que para ele ela não está mais presente, ou está apenas como uma coisa que pertence ao passado. Isto faz com que na linguagem diária as sabedorias das pessoas experientes da vida nos pareçam tão resignadas. Pode-se “aprender” por experiência, mas não se pode com as experiências voltar a viver ou a ser feliz. Por isso nunca é adequado, ou é mesmo inteiramente errado, falar da possibilidade de “fazer” experiências, ou de querer “superar o passado”. Também não se poderá “com-preender” experiências elementares de dor ou de felicidade a fim de “mantê-las sobre controle”. Uma tal linguagem em termos de dominação não é adequada à experiência da vida. Pelo contrário, ela faz com que muitas pessoas passem ao largo da vida, porque não a deixam voltar a aproximar-se, por medo de não conseguirem mais controlá-la ou de ficarem perdidas. As experiências elementares da morte e do amor nós não as podemos nem superar nem com-preender. Mas podemos dar-lhes uma expressão, e podemos fazer-nos expressão delas. Podemos encontrar a forma que nos permita viver deles e con-viver com elas. Para o luto não encontramos um conceito, é o lamento que lhe dá uma expressão, de tal modo que as pessoas podem viver nele e com ele. Para a felicidade avassaladora também não encontramos conceito algum, é o júbilo que torna os amantes felizes. Diz-nos R.M. Rilke: “A rosa se abre sem nenhum porquê...”.
A partir de sua fonte insondável a vida urge por expressão vital. Por isso as experiências de vida mais profundas permanecem inacabadas. Nelas descobrimo-nos sempre de novo e sempre de maneira diferentes. É isto que constitui o atrativo de re-cordar-se (“Er-innem"). Experimentamos (erfahren) a vida com elas e elas caminham (“fahren”) conosco.  
Acabamos de descrever as experiências elementares, tentando mostrar e re-velar que é necessário falarmos de “experiências” tanto em sentido ativo como em sentido passivo. Na dor, no sofrimento, Antônio Nilzo Duarte vivia as suas “experiências” vividas, vivenciadas com a felicidade e o amor de modo passivo, embora sentisse bem profundo necessidade de libertar-se, e as memórias re-presentadas nas letras era o modo de fazê-lo, de ser suas experiências de felicidade e amor. Nas memórias re-presentadas nas letras a atividade se manifestaria, era o seu desejo. Podemos dizer que em princípio foram as sensações de passividade, tendo como pano de fundo o tédio, angústia, medo, tristeza, desolação, que as letras trans-formaram em sentimentos, em desejos de liberdade, de reconstrução da vida, de outros horizontes e uni-versos. Nós “fazemos” e “colecionamos” experiências, e as experiências nos “ocorrem” e nos “atingem”. Como o conceito moderno de experiência é unilateralmente ativo, passamos a destacar aqui o lado passivo das experiências, como é feito também na linguagem diária. A experiência primitiva é algo que nos ocorre de repente, sem que o queiramos nem esperemos. Onde tal coisa nos acontece, o centro da ação se encontra em nós, em nossa consciência ou em nossa vontade, mas sim na ocorrência que nos acontece, e em sua origem. No processo de experimentar ela modifica aquele que experimenta. Não sou eu quem “faz” esta experiência, mas sim a experiência que faz algo em mim. Eu percebo com meus sentidos o acontecer externo e observo em mim mesmo as alterações que ele realiza.

Os acontecimentos que me “ocorrem” – aspas e negrito de minha autoria - e que se tornam mais vivos, mais intensos, nessa minha visita, não constituem, num todo, um tormento para meu coração. Eles se tornam, de uma forma descomedida, de grande importância quando os relembro, mesmo que, ainda hoje, sinta os anos se amontoarem sobre a minha idade, sentindo-me fundamentalmente atordoado, cansado, inebriado e excitado (Sentimentos da esperança, pág. 152)

A experiência possui uma conexão externa na percepção do que ocorre e uma conexão interna na percepção do automodificar-se. As modificações internas também podem modificar a estrutura anterior do sujeito, reforçá-la ou destruí-la. Em todo caso a auto-experiência depende das experiências externas. Nas duas referências as percepções não precisam acontecer simultaneamente, embora elas estejam mutuamente relacionadas. A percepção da própria modificação atrasa-se muitas vezes, e nas pessoas que estão comprometidas com a vida ativa ela quase sempre chega tarde demais. Mas não existem experiências elementares da vida sem receptividade, ou seja, sem a prontidão e sem o risco da automodificação. Sem as dores desta modificação dificilmente experimentaremos a vida, como também não chegaremos a novas experiências.  Sem o sofrimento, as dores contundentes que Antônio Nilzo Duarte sentira com o luto, não teria sentido a  “SENSAÇÃO DOS DESEJOS”, e sem ela não teria realizado a “espiritualidade-contingencial-espiritual”. A obra não teria sido escrita, a experiência da felicidade seria unicamente passiva. Sem risco não há experiência.
As experiências que criam “comunhão” – em verdade, o desejo de Antônio Nilzo foi comungar a sua contingência à espiritualidade de D. Neusa, ser nela, ela ser nele, aí realizaria o desejo maior de suas memórias, isto é, a eternidade do amor que experimentaram, vivenciaram, viveram por quase cinqüenta anos – e as experiências comuns são sempre de novo narradas e, de acordo com a diversidade da situação, sempre também narradas de um modo novo, porque são elas que dão a consistência e que abrem possibilidades para a experiência mútua, e para a experiência própria. Toda geração em Israel deve  se considerar como se ela própria tivesse saído do Egito, diz-se no Midrash. O tornar-presente da origem comum e a comum viagem de descoberta ás recordações marca as comunidades humanas de narração.



[1] Em verdade, este título  não é de minha autoria. Ele é título do Capítulo 20 de Sentimentos da esperança, terceiro volume da obra memorialística de Antônio Nilzo Duarte. Pensei intitular NA ESPERANÇA, O SENTIMENTO DE AMOR, mas optei pelo do autor por identificar melhor os meus objetivos nesta crítica. Se identifico o meu título, significa que o leitor perspicaz pode analisá-la de dois modos, com o título dele, com o meu.   

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