RUMINANTES DA FRONTEIRA - Manoel Ferreira


Face a estas paisagens irradiantes de luz, a estes cenários de puro resplendor de verde, em que, como um viajante da redenção e da ressurreição, caminho ao sol, às vezes à chuva, a vida das coisas nas suas mais humildes parcelas se me impõe, descubro as palpitações secretas da natureza nas amendoeiras em flor, nos campos de lírios, nos pomares, nas searas, nas aldeias de telhas castanhas que se apertam à volta da igreja, nas ruas trepidantes e coloridas ou no respirar lento. O que o outono me tem prometido é-me confirmado pelo Inverno e satisfaz o meu desejo; à minha volta tudo brilha e se tinge de muitas cores, transcende o meu delírio, alucina-me e me possui.
Mas, ainda na vida ordinária, nada mais intolerável do que a todo momento ouvir gritar, sempre que um homem pratica uma ação intrépida, nobre e imprevista: “Esse homem está bêbado! É um louco!...” Quê vergonha, ó todos vocês que vivem em jejum! Que vergonha, ó homens sensatos!...”
Ainda mais intolerável seja talvez expressar os sentimentos e emoções, os pontos de vista todos, recheados de ironia, sarcasmo, cinismo, dando expressão a todos que por muitos anos foram sendo armazenados, e não havendo mais condição de reter na alma e no espírito, constrói-se um pensamento, uma idéia, uma conclusão, em uma frase compacta e sintética, e alguém dizer que se está muito mudado, é isso mesmo, há sempre aquela necessidade de renovar. Contudo, ainda continua a linha do pensamento, dizendo que frase assim será entendida de modo adverso e contrário por todos o que ouviram ou que ouviram dizer. Deve-se, todavia, evitar frases muito picantes, pois assim pode-se deixar algumas pessoas insatisfeitas, prejudicando a imagem.
Há muitos autores que prejudicaram a imagem deles, justamente com estas frases de efeito, com seus pontos de vista picantes e ferinos. Caso assim, pode-se citar o do autor de “O Vampiro de Curitiba”, de cujo nome não me lembra agora. Por causa de uma frase toda Curitiba se insatisfez com este autor, tornou-se persona non grata. Mas nesta frase nada há assim que seja tão ferino, a interpretação é que fora feita à luz de interesses e preconceitos. A pura hipocrisia é boneca que se afaga todos os dias.
 Frases assim são intemporais. Não acredito seja preciso uma frase de efeito para que todos despertem e comecem a ruminar sobre o seu sentido, o que nela está sendo dito. Em todos os momentos, quaisquer frases servem a este propósito pecuniário: deixar as pessoas pensando sobre o que se tinha em mente dizer.  
Quase em paz com o mundo, embora sem esperanças, nem sonhos, nem mesmo tristeza, apenas com o gosto de estar andando, só, ouvindo o barulho dos autos, quase esquecido de respirar.
É verdade que o sol me arrancou brutal e agressivamente às minhas hesitações, incertezas, escrúpulos; resplandecem a minha personalidade, arrebatamento e a exaltação. Sob a minha pena tudo vibra, palpita, estremece; tudo flameja, até as próprias estrelas e astros, e a minha alma eleva-se à medida que este fogo penetra em mim. Com certeza, há instantes que sinto bem presente e forte uma necessidade cada vez maior de explodir a bomba do tempo, rasgar todos os verbos, sem colocar os advérbios entre vírgulas, mas não encontro engenho e arte; sinto-me insatisfeito, sempre pronto a inovar, a ultrapassar-me e trabalho como um burro de carga, apertando sempre a cela para nada cair ao chão.  
Só em face desta alucinante di-vergência entre quem fui eu, como fui eu, é possível divisar os limites desde onde posso sonhar a construção do meu reino sobre a terra. E é porque é difícil estabelecer esta di-vergência, Ter a aparição de mim a mim próprio, que os homens podem construir uma redenção com uma aparência de segurança que os ilude e os  escarnece.
As letras sem  sombra, as linhas nítidas e transparentes, o brilho do estilo, de uma extraordinária intensidade, impõem-me uma leitura completamente renovada da Vida, muito próxima, pela sua simplicidade, à dos alucinados e pervertidos. É na luz radiosa dos primeiros dias de Primavera que descubro o sentido de meu novo rumo, o caminho a seguir daí em diante.  
O homem é tão efêmero que, mesmo onde está verdadeiramente seguro da sua existência, no único lugar em que sua presença produz uma impressão real, ou seja na melancolia, no coração daqueles que lhe são caros, mesmo aí deve apagar-se e sumir o mais depressa possível!...
Ensine-me, seja, o próprio ser que só é na medida em que for com o Senhor, conviver com o Absoluto, deixar-me conduzir pelo eterno. Ensine-me o sentido de sua distância quando celebro o seu jorro, sobretudo ser vida, ser participação na plenitude de sua vida, a partir da verdade eterna da vida sem fim – fácil amar, suficiente res-peitar e com-preender -  creio esta ser a mensagem que re-colho, com-(templ)-ando-a:   a gente percebe que a voz de seu silêncio vai se tornando conhecível nas es-tâncias  do cotidiano, nas ins-tâncias de nossa contínua correria. Por que não deslizar neste estilo sereno, tranqüilo, calmo? - e o fluxo ir se revelando e mostrando sua novidade, neste tempo que nem corre nem per-corre;  a ansiedade do daqui a pouco in-corre a lucidez  atenta à sua presença sempre nítida, no amor que liberta; sem consciência nem ciência, a serenidade de paz transfigurada da quimera no tempo de sua ascensão; e a este não fica bem, adentrar, de óculos, o "grande mergulho” ao fim de tudo - talvez deseje eu neste instante -, na liberdade que salva, [talvez sonhe eu agora], sermos quem não somos,    o sonho de um instantezinho  de daqui a pouco, aos olhos a clara simplicidade da poética do ser na iluminação de almas,  na salvação que une o Sonho e o Espírito. A beleza sonhada mais pura do que a vivente. No dobrar de um caminho,  na volta de outra água, de outra fonte originária, que ajustará todas as coisas e todas as vidas. Con-templar a fonte originária destas águas límpidas é viver a plenitude da vida na sabedoria da experiência, é dizer sem explicar, é ultrapassar o absoluto provisório dessa vida, atingir o    Dom do Silêncio, a graça de transmitir uma dose de Fé logo ao despertar do Dia e o Sabor da Paz...
Bem no dentro, no dentro desta água límpida, a limpidez da luz interior para que, vivendo a claridade do ser , perceba nossas andanças e os rumos de nosso caminhar.
Quando sonho com  a água límpida não sei com que límpida água  sonho. Sei que sonho. É de ouro e de riso que ela se veste.



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