PÊNDULO DE DOIS EXTREMOS - Manoel Ferreira



Não é verdade que nós os homens sempre achamos que conhecemos as pessoas?! Ledo equívoco. Nada conhecemos delas, de nós mesmos nem se fala.

 Quando conheci Marieta, estava numa fila, ia transferir o meu título de eleitor para Curvelo, estava-me filiando a um partido político, candidatar-me-ia a vereador na próxima eleição, o título não podia ser de Gouveia onde estava residindo havia seis anos. Mesmo quem não estava fazendo transferência de título, estava ali, no prédio ao lado do Clube Recreativo recadastrando-se.
Marieta dirigiu-se a mim, com uma dúvida, se seria possível recadastrar-se, estava sem um documento, respondendo-lhe que não sabia, o melhor era perguntar a um dos funcionários atendentes. Chegou à mesa próxima, informou-se e foi sentar-se em seguida, após receber o número de sua senha, formulário para preencher, iria requerer segunda via do seu título, fora assaltada, todos os seus documentos estavam na bolsa que o assaltante levou. Ao voltar à fila, puxou novamente conversa comigo. Nossa vez de sermos atendidos ainda demoraria um pouco, dado a ineficiência do atendimento público, será por todos os séculos assim. Enquanto esperávamos, soube que ela viajaria a alguns países da América Latina, Chile, Peru, estava de férias, estava cansada de desfrutar suas férias no Nordeste, seu grande desejo era conhecer a América Latina. Soube que era professora de História num colégio público e queria conhecer de perto a cultura da civilização Inca, no Peru.
Extrapolei nossa conversa, e, por um momento, pensei (não sem um pouco de revolta) como podia uma professora, com um salário de fome, se dar ao luxo de viajar ao exterior? Mal os professores ganham para sobreviver. Marieta devia ser uma dessas burguesinhas, que trabalham por esporte, estava muito bem vestida, roupa de grife, pensei ainda comigo mesmo. Daqui a pouco vai falar sobre outras viagens que fizera, certamente na Europa, Alemanha, França, Itália, Rússia, ou América do Norte, Los Angeles, New York. Fora da realidade! Enquanto os professores saem às ruas e lutam por seus direitos e melhores condições de trabalho e ensino, eu mesmo, na minha época de professor de Literatura Brasileira, quase fui preso na esquina da rua Espírito Santo e avenida Afonso Pena, numa passeata, Marieta pensava em viajar à América Latina. Confesso que estas duas realidades antagônicas me decepcionaram bastante. Bem, efeito das revoltas que sempre tive com o magistério, porque, em verdade, estava aposentado por incapacidade, já não dizia qualquer respeito.
De repente, fui tirado destes meus pensamentos pela senhora Marieta, ao chegar ao guichê. Era minha vez. O último sobrenome dela era Mateus. Vi escrito em  letras garrafais em seu formulário. Mateus.
Ela foi atendida em seguida. E, já de posse de seu título de eleitor, ficamos impedidos de sair dali, devido a uma chuva inesperada que caiu. Esperamos mais de quinze minutos e nada. Nesse ínterim, entretanto, algumas pessoas se aventuravam a pegar um táxi, inutilmente.
- Basta uma chuva de nada, e fica impossível pegar um táxi nesta cidade – reclamava um senhor molhado pela tentativa infrutífera – Que diabo acontece com estes motoristas, que não saem do ponto na chuva?
Ofereci uma carona à senhora Marieta Mateus em meu guarda-chuva, em verdade, sombrinha, que minha mãe me pedira para comprar, na falta de uma menor, comprei uma grande. Por oferecer, ela aceitou.
- Moro apenas a alguns quarteirões daqui.
- Onde?
- Perto do campo de futebol, na rodovia, antes da cadeia pública – dei um sorriso: alguns quarteirões, estávamos bem longe.
Saímos. Às vezes tínhamos de desviar das pessoas e seus guarda-chuvas. Impressionante isto: debaixo de marquise as pessoas têm os guarda-chuvas ou sombrinhas abertos. Ninguém se molha debaixo delas. Preguiça de fechar e abrir de novo. Uma ou duas vezes, eu e a senhora Marieta, nos atrapalhamos, ao querer falar a um só tempo. Riu-se ela. Então comecei a ouvi-la, apenas. No dia anterior, num restaurante na rua Afonso Pena, um senhor conhecido, um policial reformado, chamou-me para sentar-me com ele, tomarmos uma cerveja,  o homem era uma verdadeiro tagarela, falou todo o tempo da cerveja e da espera do garçom levar a conta à mesa, princípio de ano, o restaurante estava cheio. De repente, tornei-me pára-raios de tagarelas
Tinha ela um modo delicado de falar. A voz marcada por tonalidade grave, mas agradável. Vestia-se com classe e mais para o clássico; o que lhe acentava divinamente bem.  Os traços e o perfil, os gestos e a voz, tudo combinava com uma personalidade marcante - professor de História tem de ter uma personalidade marcante, caso contrário não consegue mostrar as tensões dos conflitos sociais, políticos, econômicos, não consegue chamar a atenção dos alunos -, que logo se percebia ao primeiro contato com ela. Sempre tive uma queda para analisar as pessoas ao primeiro contato de um conhecimento, medo e insegurança de ser ferido, enganar-me, mesmo assim me meti com uma corja de trastes sem precedentes. Este ângulo sempre me chama a atenção: o riso; e o seu era sem espontaneidade alguma. Um ar de mistério e misticismo não atinava com os gestos. Um carisma, ou uma força peculiar brilhava nos olhos verdes dela. O resto era cedo para ainda analisar... Envolvido como estava nessas observações pormenorizadas da senhora Marieta Mateus, (contudo, sem deixar de acompanhar tudo o que falara até então) mal percebi, quando parou defronte a uma casa frente a um campo de grande extensão, cercado, era de um retiro.
- Moro aqui – disse.
- Puxa! – disse com uma graça natural e olhando o relógio – Daqui a pouco tenho um encontro com um amigo. Não tomamos nossa cerveja de Ano Novo. Marcamos para hoje. Tenho de voltar ao centro, na rua entre o prédio do Correio e da Associação Comercial. Já são quase cinco horas.
Fiz menção de despedir-me e sair, mas a senhora Marieta cortou:
- Ainda dá tempo para um lanche em minha casa.
Aceitei prontamente. Ela apertou um botão do interfone. Esperamos um pouco. Saiu apressada de casa, tinha muitas coisas para resolver, bancos, lojas para pagar prestações, tirar o título de eleitor, esqueceu a chave sobre a mesa da sala de visitas. A governanta apareceu. Abriu o portão da grade. Entramos. Deixei a sombrinha no alpendre. Enxuguei o sapato num tapete próprio para isto.
Sua casa, nem de longe, tinha o aspecto exterior da casa, amarela e triste. Era aconchegante e de apurado gosto. O marido certamente era algum funcionário público. A decoração saltava do clássico ao moderno com uma sobriedade de tons minuciosamente combinados e estudados. Poder-se-ia observar a identificação da senhora Marieta Mateus em tudo ali.
Durante o lanche, que foi rápido, e apenas servido a nós dois, ela apresentou um dos filhos, o caçula. Estava no terceiro ano do curso médio. Só tirava notas boas. Gostava mesmo era de Química, estava com vontade de prestar vestibular para Química na Universidade Federal de Belo Horizonte. Pouco depois, dirigíamo-nos a uma saleta de som.
Enquanto mostrava-me um álbum de fotografias, a senhora Marieta Mateus, contou-me que era divorciada e que vivia apenas para o magistério e para os filhos. Raramente saía de casa. Chegamos a ver outros álbuns. Eram muitos. Era hora de ir embora. Meu amigo com efeito estava me esperando. Antes de nos separarmos, disse-me que aparecesse um outro dia.
- Telefone antes! – frisou já a certa distância e com graça – Para não perder a caminhada...
- De outra vez que voltar a Curvelo. Esqueceu-me dizer, mas resido em Gouveia.
Muito tempo se passou, até que voltei a ver a senhora Marieta Mateus. Foi um encontro apressado, embora casualmente. Estava eu vindo da casa de um político, um dos meus grandes amigos, passando frente à Matriz de Santo Antônio, ela saindo do prédio da Receita Federal. Vestia um conjunto esporte branco. Falou rapidamente de sua viagem ao Peru e Chile, e antes de se despedir de mim, convidou-me (ou melhor, quase me intimou) para ir vê-la aquela noite. Aproveitaríamos para outro lanche, enquanto me mostraria as fotografias que tirara no Peru e Chile. Fui. Se é um lugar desagradável para se estar é apartamento de hotel, se não estiver assistindo a programas de televisão, está-se deitado na cama, rolando de um lado para outro, esperando o sono que nunca chega. Normalmente, fico andando sem rumo e destino pelas ruas da cidade, sentando a uma mesa de botequim ou restaurante, bebendo cerveja, olhando para o movimento da rua, ouvindo músicas e as conversas ridículas das pessoas.
Daí em diante, sempre que retornava a Curvelo, comecei a ver a senhora Marieta Mateus mais amiúde. Algumas vezes fomos jantar no Espaço Livre. Sem que percebêssemos, de repente, tornamo-mos amigos de verdade. A esse tempo, já compreendia os porquês daquela introspecção e tristeza tão própria de Marieta Mateus.
Durante anos e anos, a senhora Marieta Mateus construiu um mundo à parte para si. Era e se tornara uma mulher absolutamente só, voltada para os dois filhos e para o magistério. Sem dar por si, ela algumas vezes se abria e contava-me fatos bem relacionados à sua privacidade. Os mais íntimos mesmos.
- Um dia, começou dizendo, ao vermos outro álbum de fotos, André Luís confessou que não me amava mais... Conhecera outra mulher. Estava apaixonado. Foi o bastante: deixei-o naquele momento... no meio da noite. Fui para a casa de meus pais.
Já de outra vez, a senhora Marieta Mateus ficou bastante tempo calada. Estávamos comendo um churrasco no Espaço Livre. Depois disse à queima roupa:
- Retirei o sobrenome Silvestre. Preferi assim...
Notei ainda muita mágoa nela. Depois, o mutismo outra vez. Constantemente, Mateus e Silvestre se confundiam. Dir-se-ia que um sobrenome sufocava o outro. Ou, que um vivia do presente, enquanto o outro do passado. Sem se libertar. Eram duas pessoas em uma só, ligadas por uma algema intransponível. A senhora Mateus era a sombra constante da senhora Silvestre. Às vezes me confundia e perdia-me entre as duas. E não sabia com qual estava falando. Certamente, conhecia a essa altura todos os motivos dessa decisão de Marieta Mateus. E concordava.
- Então, você agora é a ex-senhora Silvestre?  - brinquei.
- É... Mateus é apenas uma volta à origem. É o sobrenome de minha saudosa mãe. Tirei o sobrenome de meu pai também. Nunca nos demos.
Marieta em alguns momentos se libertava da senhora Silvestre e, então, mudava momentaneamente, saindo de uma introversão e aquele mutismo constante. Parece que ela saía de um casulo. Nesses momentos seu sorriso ficava largo, o rosto e as feições adquiriam uma beleza singular. Durava pouco. Não se passa uma esponja num passado, sem mais nem menos, como se fosse uma lousa, ou na própria existência; Marieta balançava como um pêndulo, entre os dois extremos: dela á senhora Silvestre. Como uma força irresistível, sua conversa  ia sempre dar na mesma  tecla: senhora Silvestre.
Ela (Mateus) já não tinha mais segredos para mim. E, à medida que o tempo passava, conhecia-a melhor. Passei a conviver com as duas (não sei bem com qual) cada vez me envolvia mais. Se antes vinha a Curvelo uma vez por mês, agora eram duas ou três vezes.
Uma noite, após telefonar do hotel, havia chegado a Curvelo não fazia muito tempo, fui apanhá-la, para irmos ao Sindicato dos Trabalhadores, na rua Afonso Pena, para assistirmos a uma peça de teatro, de um dramaturgo que começava a sua carreira no teatro, Chão de confetes. Era uma quinta-feira, início de Ano Novo. Ela não se encontrava muito bem psicologicamente. Parecia ter chorado. Estava mais fechada. Acabamos adiando para outro dia. Seria apresentada até no domingo. Passamos à saleta de música. Era ali, que ela se refugiava sempre de si e de tudo. Já sabia, por isso, quando ela se enfiava num mutismo e não saía dele, eu lhe dava tempo. Dava tempo ao tempo (como se costume dizer).  
Nunca me perguntou se eu era casado, solteiro, divorciado, separado. Isso de não usar aliança não significa nada. Quem tem intenções de paquerar, tira a aliança. Nunca me perguntara de minha vida particular, e eu também não via qualquer sentido em falar disso. Em verdade, era também divorciado, minha ex-mulher, também professora de Matemática, morava em Belo Horizonte com meu único filho. Como meus pais são gouveianos, têm um pequeno retiro lá, participei minha mudança para lá, cuidaria do retiro.
-... eu não sou uma companhia para você, Sérvulo – falou saindo de um silêncio mórbido – Decididamente que não sou. Não e justo eu o arrastar para essa minha solidão e esse meu ego confuso – arrematou.
Senti que ela chorava levemente. Tentei persuadi-la, mas ela não arredava pé de seu estado de espírito; de que não era uma boa companhia para mim.
- Marieta, você não está sendo justa pensando assim... Vou confessar-lhe uma coisa (tentei novamente, certo de não conseguir muito com isso). Vou dizer-lhe que esta é justamente a vida que pedi a Deus; estar aqui, nessa saleta, ouvindo estas músicas escolhidas por você. Até parece que você sempre soube o meu gosto por música. E se não fosse só isso, ainda estar ao lado de uma mulher tão especial, sofrida e de uma sensibilidade do tamanho deste velho mundo sem porteira. Você é uma amiga, além de uma mulher em que me encontro e identifico à sua maneira de ser. Você é uma mulher especial, Marieta. Como vê (e eu estava sendo sincero) isto é tudo o que um homem divorciado poderia querer numa noite assim... Estar ao lado de uma pessoa como você.
Estávamos num ambiente bem romântico e extremamente envolvente. Apenas uma tênue luz, vindo do outro cômodo, alumiava a saleta de música.
Marieta curvou-se, aproximando de mim e, beijando-me levemente nos lábios– era o nosso primeiro beijo – ficou olhando por alguns instantes, calada.
- Obrigada! Obrigada, Sérvulo! – disse ela, ainda com um brilho nos olhos -... eu hoje estava mesmo precisando de um amigo como você.
Ainda estávamos bem próximo um do outro e, desta vez, fui eu, que me curvei e a beijei longamente. (Amamo-nos ali pela primeira vez).
A partir daquele momento, entrava efetivamente na vida de Marieta Mateus e da ex-senhora Silvestre. E muitas vezes, amei a senhora Silvestre ao invés de Marieta Mateus. Parece que ela nunca se libertaria daquele pesadelo. Era o passado.
Em outra ocasião disse-lhe: “E preciso viver, Marieta. A vida continua e ninguém vive de passado”, reiterei.
- Não. Não é fácil assim.
Agora era a senhora Silvestre quem falava.
No início, e ainda era muito difícil para mim, começar amando a senhora Marieta Mateus e terminar amando a senhora Silvestre. Era uma sensação nova, não nego. Havia um carisma, uma identificação e uma força estranha, que não sabia seguramente a qual das duas pertenciam.
Perigosamente, dava tempo ao tempo. E ele passava indiferente e deixando marcas profundas.
Não sei a quem conheço menos, se Marieta Mateus ou se Marieta Silvestre. Por vezes, chego a acreditar que a primeira está triunfando sobre a segunda. É só uma impressão. Mesmo que Marieta Mateus agora raramente fazia referências ao passado (aos poucos ela foi percebendo que isso me chateava bastante, além de lhe prejudicar acentuadamente  e embora eu não falasse) ele estava enraizado nela.
- ... eu sei, Sérvulo, que você não gosta que eu faça tantas referências ao meu ex-marido e ao meu passado, e que isso me deprime muito, mas há os filhos, que sempre ficam num leva-e-traz interminável. A gente nunca se desliga efetivamente – justificava Marieta Mateus.
Não interrompi.
- Não é fácil, vê... E depois, nunca conseguimos passar uma borracha e pronto. Não é assim.
Ela estava agora falando como a senhora Marieta Silvestre.
- Sabe, terminou Marieta Mateus (ou senhora Marieta Silvestre) eu tenho muito medo. Muito medo, sabe? Medo de que um dia, as pressões me obriguem a uma reconciliação. E nem sei se vou poder fazer algo nesse sentido. Ou dizer não. Talvez nem faça nada. Ou, pior, nem sei, se no fundo, eu não gostaria... As pressões dos filhos são grandes.
Ela brincava de esconde-esconde comigo. E Marieta sentia realmente o que acabava de dizer. (Estava sendo sincera, honesta).
 - E saiba, marcou bem as palavras; aconteça o que acontecer, não vou esquecer você...
- Afinal, você é separada ou divorciada?...
- Separada...
- Pensei que me houvesse dito ser divorciada...
- Acreditei que dizendo divorciada pudesse me libertar... Desculpe-me...
- Não se preocupe, eu entendo...
E chorava levemente. Beijei-lhe os olhos (de Mateus, creio). Era difícil saber naquele momento.
Ainda não interrompi.
- Aconteça o que acontecer; eu irei a você, não importa onde você estiver, Gouveia, Belo Horizonte, Curvelo.  Eu o encontro, juro...
Apenas olhava por olhar, quem sabe? Queria ver Marieta Mateus e acabava vendo a senhora Silvestre. Nem tinha certeza, a qual das duas ouvia naquele momento. Elas se indefiniam e misturavam na minha mente. E tudo (que uma ou outra dizia) ficava nas entre-linhas.
Marieta Mateus em certos momentos parecia ter posições e uma opinião definida a respeito da senhora Silvestre. De outros, creio que nem ela sabia, que era. Eu me divago entre as duas. E divagava agora. Mais que nunca. Não sei, se as conheci bem... ou se as conheço mesmo. Só resta dar tempo ao tempo... e perigosamente.    




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