ILUSTRE LACISTA - Manoel Ferreira


Bons dias!

 Não faz uma semana uma leitora, não deixa de ler sequer uma crônica minha logo pela manhã de todos os sábados - a governanta dela apanha o exemplar, deixando-o no criado-mudo de seu quarto. Não as lê somente, jogando-as fora, guarda todas as edições -, assim que acorda, antes de levantar da cama. Durante todo o final de semana, lembrando-se dela, em quaisquer situações ou circunstâncias, seja lá onde for, cai na gargalhada altissonante; seu final de semana é bem divertido, em seus almoços com amigos e parentes, aprecia falar de minhas crônicas. Meu secretário começa a distribuir os jornais às seis horas da manhã, jogando-os nos alpendres, nos jardins, na rampa das casas, colocando-os na caixa do correio, procurou-me nesta redação para me perguntar como aprendera a Língua Portuguesa, fica admirada com os meus conhecimentos, e também saber se não me disponibilizaria a dar aulas particulares para o seu filho, está ameaçado de ser reprovado. 
Quanto à pergunta, respondi-lhe que aprendi a “última flor do Lácio” de tanto ler, não fora com os professores, o que menos sabiam era ela, cometiam os maiores disparates nas explicações, seguiam apenas os manuais, decorava-os. Então, tive uma professora no curso científico que jamais conjugava a primeira pessoa do plural de modo correto: ao invés de “nós vamos”, era “nós vai”, ao invés de “nós estudamos”, era “nós estuda”...,  e também ao invés de dizer “esta redação é  para eu corrigir e trazer para vocês na próxima aula, vale nota”, dizia: “Isto é para mim ler...”. O maior aluno da classe, Orfeu, apelidou-a de “Índia", isto porque só nas tribos indígenas ”mim” estuda, “mim” escreve, “mim lê”. Noutras palavras, guardei porque o meu amigo Orfeu explicou-me sem sarcasmo: “Em verdade, pronome do caso oblíquo não conjuga verbos”. Agora, quanto a dar aulas particulares, não o faria mesmo se recebesse por elas fortuna inestimável, não tenho paciência de ensinar, não nasci com o dom do magistério, além do mais se me perguntarem qualquer coisa referente à gramática não tenho a mínima noção.
A principal vantagem dos estudos da língua, explicava a Índia, é que com eles não se perde a pele, nem a paciência, nem, enfim, as ilusões, como acontece aos que se empenham na política, essa fatal Dalila (deixem-me resvalar pela banalidade, caríssimo leitor), a cujos pés Sansão perdeu o cabelo, e o seu marido perdeu a vida por haver discursado na Tribuna da Câmara sem usar único verbo; o presidente se sentiu mofado, pois precisava de uma secretária para tomar conta de suas escritas, seus discursos eram escritos por ela. Assassinou seu marido. Luciano Guedes foi encontrado num terreno baldio no bairro Santa Cruz com um pequeno manual gramatical de bolso na boca. A justiça se fez presente: o presidente está enjaulado por quinze anos, com condicional aos dez.
Nunca escrevi qualquer coisa a respeito da “última flor do Lácio” para não pensarem os leitores que me dirijo de modo sarcástico ao editor-chefe do jornal O Tempo, que, para tentar ombrear com o meu, ou seja, escreve uma crônica, sempre com personagens policiais, crônicas policiais, mas o seu maior lazer é expelir barbarismos e compor novas locuções. E mesmo para não ser surrado por ele, é um homem ignorante, violento, não aceita crítica de modo algum, se se quiser conviver com ele só através de elogios, mesmo que hipócritas e falsos.  O maior cronista das letras brasileiras, quiça de todas as nações,  com quem concordo em gênero, grau e número, diz que “Língua, tanto não é Dalila, que é o contrário; não sei se me explico". Podemos errar; mas, ainda errando, a gente aprende.
Antes de me sentar à escrivaninha de meu escritório para cumprimentar os meus leitores, enfiei um “penoir” para ir tomar um banho. Minha sobrinha, Sacha, está em minha casa, passando as suas férias escolares, é aluna da faculdade de letras na capital. Apesar de sua especialidade não ser a Língua Portuguesa, sim Literatura Portuguesa, apaixonada por Antero de Quental, pretende fazer mestrado nele, é conhecedora da língua. Estava sentada à poltrona da sala de visitas, quando saí de meu quarto enfiado no penoir. É novo. Assim que deixei a redação, ontem, comprei, a mulher estava reclamando que o velho estava pelas horas da morte, rasgado. Tomasse vergonha na cara. Deixasse de ser “mão de vaca”, comprasse novo. O que diria Sacha se me visse enfiado num penoir às portas da morte? Convenceu-me. Afastou os olhos da leitura, cumprimentando-me: “Bom dia, tio”, respondi-lhe com terna finesse e carinho, “Bom dia, minha querida sobrinha!... Maria Santíssima lhe dê um bom dia!”
- Então, Sacha, o que me diz de meu “penoir” novo? – olhou-me vexada, o que não entendi, não estava bem em mim, rosa-cheguei não ficava bem num homem moreno.
- E a cor, não sobrinha? Rosa - cheguei é muito gritante. Foi o único que encontrei na loja em que compro para pagar no final do mês.
- Não é isto, tio... Tudo vai do gosto das pessoas. Se o senhor se sente bem enfiando roupa rosa-cheguei, é o que interessa. Não vou julgar o senhor uma b icha latente. Longe de mim isto. Não sou preconceituosa, tio.
- Mas o que é, então?
- É o vocábulo que disse... – novamente mostrou estar bem vexada.
- Como assim?
- Tio, esse vocábulo está mais do que caído do galho. Na capital, se alguém o usa, é logo tachado de caipira. O senhor, sendo um homem tão culto, diretor de um jornal de crônicas, renomado na comunidade, reconhecido, não deveria usá-lo.
- Que vocábulo, sobrinha Sacha?
- Penoir... Penoir só no tempo do onça, ou seja, na França do século XIX.
- Ah, não... Não se  usa mais “penoir”. Para mim, era ser fino dizer “penoir”. Mas todos aqui neste buraco de mundo usam este vocábulo. O progresso ainda não chegou até aqui. Estamos na França do século XVIII – Sacha percebeu logo a minha ironia, referia-me à fedentina que era Paris naquela época. Caíra na gargalhada - Que vocábulo de nossa modernidade poderia eu usar sem despachar as tradições e convencionalismos da intelectualidade e cultura? Quero dizer sem ser vulgar, não cair na baixaria. Sabe como é, se começo a usar certas palavras os leitores me vão colocar um rótulo daqueles, além de não lerem as minhas crônicas.
- Roupão... Este é o nosso vocábulo da modernidade aqui no Brasil. Há o específico lá nas terras lusitanas, mas no momento me esqueci.
- Ignorava, sobrinha, que com a passagem das fronteiras dos séculos, dois depois do XIX francês, o nome desta roupa sofrera modificação, ficou roupão. Não é vocábulo de baixo calão. Vou passar a usar.
Imaginem os leitores o meu assombro, espanto, susto, ao ouvir as palavras de minha querida sobrinha Sacha mostrando-me, a todas as luzes desta manhã, de nossa primeira década do século XXI, que penoir é vocábulo condenável, que é só usado pelos caipiras na capital.  
- Tio, não é tanto porque na capital este vocábulo só é usado pelos caipiras. Não é mesmo. É por mim. Nossa “última flor do Lácio” é riquíssima, dizem que não há outra os meus professores, por que usarmos vocábulos franceses. Devemos valorizar a nossa Língua Portuguesa. Isto é extremamente condenável aos homens de cultura e intelectualidade. Isto denigre a imagem deles.
Mas como vinha de trás, os velhos que conheci, conheço, os jovens desta nova geração não usam outra vocábulo senão “penoir”, e o próprio Enrique Gaudino, posto que considerado o maior poeta de nossa comunidade, já o enfiou nos seus versos, dizem haver sido ele quem o inaugurou em nossa comunidade, pensei não fosse o caso de o desbatizar.  Nunca mandei uma caleça, só por vir de caleche, outro vocábulo francês que uso nas minhas crônicas; o mais que faço, é não dar gorjeta ao automedonte, vulgo cocheiro, quando escrevo alguma coisa sobre o seu companheiro de todas as horas e minutos dos dias de sua vida, o jegue, burro.
- Mas, filha, já pensou como será difícil de todo eliminar todos os vocábulos da língua francesa, que é o objeto maior dos cronistas, o poder satírico que adquirem é imenso, através deles podemos fazer o leitor estremelicar de tanto rir no chão. Se formos fazer isso, adeus viola, não haverá mais crônica risível nestas terras do último Lácio. Além disso, acabar com o hábito das pessoas de usarem palavras francesas é impossível. Já é vício.
- O senhor é inteligente, tio, com o tempo vai aprender a escrever crônicas tão risíveis com vocábulos portugueses, até mais risíveis. Tudo depende do tempo, de suas experiências. Se as pessoas não deixarem este vício, o senhor deixou. Tornou-se o único neste buraco de mundo a assumir de vez a nossa Língua Portuguesa.
- Sabe, sobrinha, você tem toda a razão. Adeus ao penoir, sejam bem vindos os roupões.
Depois de havermos desjejuado, envolvidos num assunto sobremodo agradável, que é tratar dos escritores portugueses, os grandes poetas, prosadores... E com a minha sobrinha Sacha é ainda mais agradável. pois tem exímios conhecimentos. Só a reprovo num pormenor, odiar os poemas de Fernando Pessoa. Disse-o, respondendo-me com categoria: “Para criticar com categoria é preciso conhecer os mínimos pormenores”. Resvalamos para a filosofia, depois desta sua resposta bem espirituosa. Mostrou-se também conhecedora dela. Se não me engano, se não estou errado, se não estou exagerando, Sacha é uma gênio.
Terminando o desjejum, dirigindo-me ao meu quarto para me produzir, atirei longe a fatal estrangeirice, e meti-me num paletó velho, sem perceber que era importado da França, comprei-o nos idos tempos de minha faculdade de jornalismo na capital. A ignorância é a mãe de todos os vícios.
Antes de iniciar a escrever esta crônica, tomei de um dicionário e fui pesquisar o “pai dos ignorantes” para ver se conseguia algum vocábulo a ser usado nesta crônica, que dissesse respeito a vestes, encontrei-o, não podendo dispensar as gargalhadas. Fiquei conhecendo “chambre”, “penoir”, “roupão”, “robe”, e o que me causara risos, “rocló”. Simpatizei-me. Com efeito, se os grandes da Língua Portuguesa chamavam de rocló ao ‘penoir”, melhor é empregar este vocábulo que é de nossa casa, ao invés de ir pedi-lo aos vizinhos franceses.
Gritei a esposa. Chegou ao meu escritório irritada. Quê era? Por que tanta gritaria? Não estava surda? O que queria com ela? Disse-lhe que de hoje em diante, até a consumação de minha vida,  quando lhe pedisse o rocló, se o esquecesse antes de entrar para o banho, entendesse que devia levar-me o penoir. Josefina pôs as mãos às ilhargas, e saiu do escritório como uma despirocada, rindo a bandeiras soltas.
Corri até dela para saber a razão de estar rindo tanto. Era o vocábulo? Era engraçado, não? Risível. Há vocábulos na Língua que de tão feios são risíveis, e normalmente expressam idéias profundas.
- Você está louco, meu marido?
- Por quê? Sacha acabou de me dizer que não devo usar “penoir”, é démodé, só os caipiras da capital usam. Decidi dispensar os estrangeirismos de minha vida, de minhas crônicas.
- Na minha terra, marido, rocló é outra  coisa; é um capote curto, estreito e de mangas.
- Não; é impossível.
- Mas se lhe digo que é assim mesmo: é um capote. Então, quer dizer que você vai sair do banho vestido de capote?!
- Não é possível. Olhei no dicionário.
- Que dicionário?
- Torrière Guimarães.
- Marido, deixe de ser “mão de vaca” e compre um dicionário digno. Esse é do tempo do onça.
-  O mais moderno é de Aurélio Buarque de Holanda – disse-me Sacha, passando no corredor por mim e Josefina, dirigindo-se ao quarto para se vestir a rigor, iria visitar umas amigas.
- Não vou encontrar aqui.
- Deixe estar, tio. Mando-lhe um da capital.
- Obrigado, querida.
- Rocló, tio, vem do francês roquelaure, designação de um capote. Portugal recebeu de França o capote e o nome, e ficou com ambos, mas foi modificando o nome. Tal qual aconteceu com robe de chambre.
Se usasse este vocábulo nalguma crônica com o sentido de “penoir”, ficaria sem sentido, a menos que fosse intenção minha “curar a dentada do cão com o pelo do cão”, como o imortal cronista de nossas terras brasileiros, quiça do mundo inteiro, como já o dissera antes.
           









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