CALAFRIO DO RIDÍCULO PASSADO - Manoel Ferreira


Bons dias!
  
Se precisarem de alguém, não creio que alguém vá, cuja hipocrisia é pura, as flores dela habitam-lhe as pré-fundas da alma – há algumas que dentro em si trazem uma gotícula de orvalho, por mínima que seja, de sinceridade no interior de todas as suas hipocrisias manifestas e latentes para o momento oportuno, seu momento de egrégios interesses escusos, com a sinceridade obterá resultados benéficos, pois a usou de modo tão real, sem fúteis aparências, sem farsas indecentes, que foi crido sem desconfiança, causando ad-miração, jamais pensara o outro que fossem capazes, eram por inteiro hipocrisias, o caso deles já era e estava perdido, ofereceu-lhes de mão beijada o objeto de seus interesses, um incentivo para continuarem, mais dia, menos dia, serão sinceros de todo, a hipocrisia escafeder-se-á – Beltrano Cicrusso não serve, pois a dele transcende todos os níveis de pureza, atinge a absolutidade dela. Alguns dizem ser ele o protótipo da hipocrisia, outros, o ícone supremo dela, ainda outros que por todos os séculos e milênios até a consumação dos tempos, não haverá outro homem mais hipócrita que ele, será sempre o exemplo máximo para quem deseja se aperfeiçoar na hipocrisia. Não traz qualquer gotícula orvalho de sinceridade em si, se trouxer é para regá-la, proporcionando-lhe a cada manhã outras belas flores da hipocrisia; e mesmo que trouxesse não seria por interesse, mas para mostrar seus puros dons de representação, acreditem que é um pura raça da sinceridade.  
O féretro da mãe de Cirano Baioneta chegara atrasado ao velório, devido às burocracias da liberação do corpo para viagem. Dona Berenice pedira à família que fosse enterrada em sua terra natal, na sepultura das irmãs, inclusive tendo, com a aposentadoria, comprado o caixão em prestações, a viagem inclusa. Assim que ele chegara à cidade, dirigiu-se ao cemitério. Indagou do coveiro a respeito do féretro. A irmã de Beltrano Cicrusso, afilhada de D. Berenice, irmã da mãe dela, conversava ao telefone com alguém sobre em que sepultura seria ela enterrada – haviam duas da família. Cirano Baioneta nem esperou Cecília acabar de telefonar, determinou categoricamente qual seria a sepultura, a que estavam a família inteira, sendo D. Berenice a última de treze filhos, na outra estava enterrada somente a mãe de Beltrano, de quem nem a mãe não gostava, se o filho era o protótipo da hipocrisia, a mãe era o protótipo da desonestidade. Após dar a ordem ao coveiro, saíra do cemitério.
Enquanto esperava o féretro, passeava pela cidade, sem rumo, triste, aborrecido, angustiado, sofria com a perda da querida e muito amada mãe, por ele fizera ela tudo o que pudera, das tripas fizera o coração, como se tem costume dizer. Conformar-se jamais, aliás não há quem no mundo se conforme com a perda de um ente querido, aprende no tempo a conviver com a realidade da perda.
Depois de duas horas de espera, tendo até tomado um lanche numa padaria da avenida principal da cidade, refrigerante e pãezinhos de queijo, era a entrada, por ela o carro da funerária surgiria. Intuiu provavelmente houvesse outra rua de entrada, dando acesso direto ao cemitério. Não conhecia bem a cidade, na infância passava as férias escolares na cidade, depois só passava de ônibus. Desceu uma avenida, aliás a mais bonita, o canteiro central arborizado com palmeiras, desde o início até o fim. A intuição fora certa: o féretro havia acabado de chegar. Cecília estava saindo, dizendo-lhe da chegada. Nada respondeu. Cirano era inimigo capital de toda a família.
Olhou os presentes de soslaio, identificou alguns deles, dentre eles Beltrano Cicrusso, seu primo de segundo grau, a quem sempre odiará, chegando a se perguntar, em verdade perguntara aos seus botões: “o que este hipócrita está fazendo aqui?” A vontade manifesta foi de convidar-lhe a retirar-se, não o fazendo por ser afilhado do pai, não iria se rebaixar, velório é público. Não era barraqueiro senão que alguém o provocasse, aí não sobrava pau sobre pau no barraco. Era exímio nisso.
Entrou. Puxou um banco, sentou-se à cabeceira do esquife da mãe, passando a acariciar-lhe a mão, o que fez até o fim, só de esguelha olhando as pessoas. Décio Cicrusso conversava alto, contando suas glórias e conquistas, suas importâncias e méritos. Pensara consigo: “Isto é que é uma pessoa necessitada de atenção, pensa estar agradando a todos. Sempre em velório comenta sobre sua vida, seus sucessos. É impressionante”. Não demorou muito, por felicidade de Cirano, Décio Cicrusso saiu do saguão do velório com as pessoas com quem conversava. Ficaram algumas poucas pessoas no banco, que não estavam conversando com ele, conversavam entre si mesmas. Uma a uma aproximaram-se de Cirano, cumprimentaram-lhe. A mãe não sofrera para morrer, morrera como um passarinho, a causa mortis fora inflamação renal. Deus lhe desse forças para conviver com a perda, de fato era muito grande.
Agradecia em voz baixa todas as manifestações dos familiares, sabia serem sinceras, honestas, eram pessoas que realmente amavam e reconheciam sua mãe, continuando a acariciar-lhe a mão, de quando em vez a testa, as maças do rosto, só Deus sabendo quais eram os seus profundos sentimentos de dor e sofrimento.
Após os cumprimentos, levantou-se, fora tomar um copo com água, no trajeto percebera que Beltrano Cicrusso estava sentado, conversando com alguém que lhe pareceu desconhecido, talvez de alguma família da cidade que conhecera sua mãe no passado, quando ainda vivia lá, sessenta e cinco anos, atrás, cabelos já grisalhos, contudo aparentava de boa saúde. Retornando, o primo continuava conversando com a senhora. Sentou-se no banco.
Mônica Pedras, sobrinha de D. Berenice, quem providenciou todo o trabalho do féretro de sua mãe, desde o momento de sua morte, quem lhe comunicou o falecimento, aproximou-se, abraçaram-se, conversaram. De soslaio, percebeu que Beltrano Cicrusso levantara do banco, fora até a porta, retornara, aproximando-se do caixão, pelas costas de Cirano. Beltrano tocou-lhe duas vezes no ombro. Não dera atenção. Beltrano sairá. Acabava de conversar com Mõnica, tocou-lhe na omoplata por três vezes, pedindo atenção. A atenção não foi dada. Saiu. Não saberia eu dizer se houve quem percebera a indiferença de Cirano, a determinação de lhe mostrar não ser bem-vindo, tivesse “semancol”, ficasse longe dele. Alguém deve ter observado, e ele visto a observação; mesmo que não, a recusa à atenção mexeu-lhe no orgulho próprio, o orgulho da família é conhecido até por quem não a conhece. Sabendo ele Cirano era homem digno e honesto, sincero e sério, pessoas de suas relações agradecidas por lhes serem amigas, e ele um hipócrita de carteirinha e medalha de honra ao mérito, é uma afronta das mais sublimes, o bem sempre vence o mal, claro e óbvio, Beltrano sentiu-se ferido nos brios e orgulhos.  
Havia muito – por anos e anos em verdade que Cirano queria mostrar a Beltrano o seu habitat mesmo, quem era ele, mas como a hipocrisia nunca deixa o homem ver a si mesmo, enxergar-se diante do espelho, todas as tentativas foram em vão, a esperança nunca morre, esperou. Aliás, não apenas a ele, aos seus familiares, mas ninguém nunca lhe dera atenção, era considerado por eles um homem sem quaisquer valores, um imbecil, doido. Quando o vira, assim que chegara ao velório, dissera aos seus botões: “hoje, mostro-lhe o súcia que é. Espere e verá”.
Não! É verdade. É ter notícia de velório os hipócritas se reúnem em bando e vão cumprimentar os entes saudosos com lindas palavras e exclamações de pesar. Há maridos que espancaram a mulher por toda a vida, no velório chora feito uma criancinha de berço. O sofrimento, a dor aceitam de tudo desde que uma imagem de consolo se lhes apresente, e o hipócrita é doutor em fazer imagens.
O corpo de D. Berenice fora velado na cidade em que por quarenta e cinco na os vivera por três horas, e conforme soube muitas pessoas estiveram presentes, amigos, conhecidos, companheiros, o velório na cidade em que nascera e por sua determinação seria o leito eterno compareceram somente os entes íntimos, familiares. O velório durou exatamente duas horas e meia, a partir da chegada do esquife no cemitério. Era domingo, dia de folga dos coveiros. Cirano estabelecera o enterro seria às quatro horas. Não fora possível. Alguns dos íntimos que lá estiveram tinham de viajar, retornarem à cidade de suas residências. Mônica persuadiu Cirano que o enterro devesse ser mais cedo. Duas e meia da tarde.
- Sei, Cirano, que você gostaria de ficar mais tempo com sua mãe, mas há quem precise viajar, eu mesma tenho de estar na capital até seis horas.
Terminado o terço, fechado o esquife, Cirano segurou a alça. Beltrano à sua frete, e mais outros carregando o corpo de D. Berenice até à sepultura. Num local, entre duas sepulturas mais ou menos altas, devendo levantar o esquife, houve dificuldade, Beltrano responsabilizou Cirano de modo instintivo, a hipocrisia  começa nos instintos, olhou de Vanda, vermelhou-se, simulou raiva,. Cirano sustentou a cabeceira do esquife com ambas as  mãos, levantou-o, empurrou Beltrano, tirou-lhe da alça, só voltando segundos depois, pisando duro no solo da cidade dos pés juntos. Cirano se armou por inteiro, acontecesse o que acontecesse, no extremo enfiar-lhe-ia um murro nas fuças.
Fora um calafrio nos brios de Beltrano não haver recebido atenção de Cirano. À beira da sepultura, deixou que os outros que estavam carregando fizesse o resto. Foi saindo. Abraçou Mônica, agradeceu-lhe, dizendo-lhe: “Não é por mamãe haver morrido que você vai desaparecer.  Você é da família. Vá passar uns dias em minha casa, Mônica. As portas estarão sempre abertas por você. Aliás, minha querida, Deus lhe dê em dobro tudo o que fizera por mamãe nos últimos tempos de sua vida”.  Foi embora.
Num barzinho, enquanto esperava o ônibus para retornar à cidade onde morava, tomou uma cerveja, comeu carne de sol com mandioca. Tudo se passou no silêncio absoluto, nenhuma palavra fora emitida; quem conhecia de perto o ódio de Cirano pela família percebeu tudo com categoria. Alguns tiveram medo de ele se manifestar, de rodar a baiana, isto por lhe julgarem alguém perfeitamente imbecil e doido. Fora um diplomata. Pode até ser que Beltrano Cicrusso não ligue para nada do que aconteceu, mas com certeza quem assistira a sua indiferença na hora do cumprimento de Beltrano jamais esquecerá. Apesar de todas as dores e sofrimentos devido à perda da mãe, sentia-se alegre e feliz: não mais teria qualquer relação com a família senão com Mônica e Augusta.     

 

 

 

 


 

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