HORIZONTE PURO DE IDÉIAS - Manoel Ferreira



Bons dias!


Não me é dado saber – para fazê-lo é que me dis-ponho – se se pode dizer, afirmar, ser eu cabeça dura, nada me entra no cérebro, nada me convence ou persuade, não adianta matraquear-me no ouvido, não ouço, tenho opiniões próprias e peculiares. Mesmo a verdade inconteste, absoluta, Deus assinaria embaixo, parabenizaria os homens por ela, não con-sinto, não ad-mito, não aceito, é verdade hoje, amanhã não o será mais, serei reconhecido como imbecil por nela haver acreditado, defendido a línguas e gogós. Creio que não; se souberem dizer-me as coisas, fundamentando as idéias a partir de argumentos sólidos e percucientes, dou o braço a torcer com facilidade, contanto que me não imponham, intimam, seja uma hipótese da verdade.
Olham-me de soslaio, o sorriso amareliçado se manifesta de imediato, sussurram nos ouvidos mutuamente, quando me vêem passar pelas ruas da cidade, devido às minhas idéias no que tange à natureza humana, às invejas, ciúmes, despeitos, condutas e posturas de não, aos despautérios e atitudes escusas, aos súcios interesses e ideologias, às farsas, falsidades, hipocrisias que todos os homens trazem dentro de si, são capazes de presentearem as mães para serem tidos e havidos como aqueles que estão certos, certíssimos de serem assim, são homens do século, estão mais que adaptados no mundo, se acham perfeitamente aderidos ao tempo deles. Dizem até que nasci na condição errada, os homens são inferiores a mim, nada se lhes confere valores e virtudes eternos, deveria ter nascido Deus, sou tão puro, o horizonte de minhas idéias é tão sublime e perfeito. Se assim o é, por que ainda me locomovo no meio dos homens, deveria ir para uma caverna na montanha, e esperar o milagre da ascensão, ser subido aos céus com todas as honras e glórias, todos os anjos ao meu redor, conduzindo-me ao Olimpo. Jamais dei qualquer resposta a isto, mas hoje acordei com a vovó atrás do toco, disposto a dizer a todos que Jesus Cristo era Deus, nasceu homem; se eu nasci Deus, sem ser homem, alguma coisa de errado há na criação de Deus, deveria estar mais que alucinado, despirocado, varrido de pedra e vassouras. Não adianta qualquer tentativa de persuadir-me de que estou equivocado, em mim nada é verdade, nenhum valor ou virtude são eternos em mim, nenhuma idéia ou pensamento mostram algum princípio de verdade, sou pior que todos os homens, vivo nas nuvens de cabeça para baixo, não quero ver isto e me julgo superior, mais fácil, não terei de descer do pedestal, ser humilde, simples, o orgulho da raça e estirpe não me permite isso.
Agora, se há algo que me não entra no cérebro, mesmo que me abram a cabeça a machadadas, colocando-a dentro, é a retórica. Não adianta qualquer meio de consegui-lo, tudo será em vão, mesmo sendo um gênio a ensinar-me as lições, desde o b+a=ba das primevas idéias, com toda a paciência e finesse. Sei lá se se trata de minha natureza ou se alguma resistência latente que tenho, medo de as dimensões sensíveis escafederem-se, tornar-me um poste de cimento armado, um racionalóide de paletó e gravata. Não me lembra quem o disse – aproveito a sua fala para dar satisfação a quem foi tomado de sarna de tanta curiosidade por saber a razão de a retórica não me entrar no cérebro. Disse a retórica ser a perna direita – dela puxo, tenho dois centímetros a menos nela em relação à esquerda. Se ela me entrasse, completaria os dois centímetros, não mais puxaria dela, e seria isto difícil para mim, pois que é parte de mim os dois centímetros a menos, como é parte de mim me não entrar a retórica no cérebro. Desculpando-me, digo que a palavra não precisa de arrebiques, o entendimento, compreensão do outro são que precisam de ornamentos variados. Não preciso de retórica para, por inter-médio dela, provar, de-monstrar, com-provar o horizonte puro de minhas idéias, aliás se o fizesse assim,  a pureza de minhas idéias no horizonte de minhas vivências e experiências deixaria de sê-lo, seria horizonte de minha pura razão, de minha racionalidade absoluta, de meu racionalismo perene, e eu transformado num perfeito imbecil pois que com a razão, racionalismo, racionalidade não teria qualquer noção da vida, o que é isto viver.
Seja como for, entupigaitado de frustrações, fracassos, traumas, conflitos, dores, sofrimentos, revoltado com os meus limites, incapacidades, dúvidas, incertezas, desconfianças, cheio de medos, relutâncias, hesitações, digo que não saberia o que fazer de mim, em que buraco me enfiar, com que sudário cobrir-me o corpo das tempestades, não fosse isto de viver, de em mim habitar a vida, de ser através dela que vou encontrar meios e caminhos de superar a condição e natureza que trago em mim dentro, de buscar soluções para os meus problemas, e mesmo que não o faça por inteiro, o que consegui ter sido mínimo, mas a esperança e fé que em mim residiram de no mundo tudo ser passageiro, efêmero, a verdade ser transcendente.
As pessoas do meu conhecimento capricham – como capricham! é impressionante a perfeição de seus caprichos! – em explicar as idéias, tecer um sem-número de argumentos que as esclareçam, elucidem, fundamente-as com experiências, vivências, observações da realidade, das veredas das relações sociais, políticas, econômicas, individuais, com está a vida em todos estes universos, como os homens estão agindo, atuando, seguindo suas trilhas, com as teorias acadêmicas que assimilaram na escola, com palavras diferentes, diferentes re-flexões, à semelhança do vestuário que usam, feitios, modelos diversos, cores diversas, tecidos diversos. Não é outro o pecado original das pessoas de meu conhecimento: através das palavras explicar as idéias sentem-se as alegrias e felicidades do orgulho, sentem-se inteligentíssimos, são superiores à raça comum, ao trivial dos comuns de sensibilidade. Tudo sabem, tudo explicam, de nada têm dúvidas, desconfianças, a verdade habita-lhes até as pré-fundas da essência, até os interstícios essenciais do espírito, até o âmago contingencial da alma. Esperam ansiosos por sentir inveja delas, vociferar contra Deus, rasgar-Lhe na cara todos os verbos por me não haver doado esta verdade que as pessoas estão mais do que orgulhosas de a possuir, de ela lhes habitar, fazer aquela pergunta de quem está mais que revoltado com o que lhe restou, o que tenho eu de diferente, o que em mim há que não sou merecedor, mas o que sinto não é inveja, é náusea profunda.  
Não sei se o leitor é da minha opinião; cuido que as idéias de grande valor, que mostram as verdades íntimas e espirituais, definem o caráter e personalidade do homem, não precisam à luz de qualquer argumento de explicações ou frescurites da razão e intelecto.  Pensando e sentindo assim é que aplico a lei de Helvetius: “O grau de espírito que nos deleita dá a medida exata do grau de espírito que possuímos”. Aliás, aqui está, não sei se elucidado, mas algumas palavras sobre o que me perguntam as pessoas, vendo uma placa de madeira, bem trabalhada pelo artista-plástico, com este dizer de Helvetius, querem todos saber a todo custo o sentido e significado desta sua idéia. O que já disseram de asnice e palavrada sobre não está no gibi. Não são palavras que vão explicá-las, mas a sensibilidade, e já que ela ainda não anunciou o que querem saber não serei eu a fazê-lo, sei que a sinto em mim, e dela faço o meu destino, o meu lema na vida.   
Amo S. Paulo, adoro, leio suas cartas constantemente, especialmente “Se eu falasse todas as línguas do mundo...”, que é a minha oração antes de apagar a luz de minha alcova. Não tenho o modelo de S. Paulo a procurar vivenciar no meu quotidiano, tenho mais dois: Santo Agostinho e Francisco de Assis. Daqui você, leitor, pode concluir que nasci com a fibra do cristianismo e espiritualidade. Sou indivíduo faminto de ideal e criação – se, ao acordar, não se me revela de imediato um ideal e o que fazer para criá-lo, torná-lo verdade minha, quando me deitar para dormir, ter o sono das consciências tranqüilas, sinto que a fome será irreversível, não vai adiantar comer prato de peão, não vai satisfazer, antes das onze horas da noite morrerei -, olhando todas as coisas correntes por cima da cabeça do século.
Encontro em tudo que vejo, que me cerca, e mesmo nalgumas “cositas” do além, quando as con-templo de esguelha, re-flito a respeito delas de modo sarcástico, uma significação recôndita. A vida – sinta na carne, nos seus verbos, leitor, que tesouro, diamante esplendoroso de conclusão a que chegara, por um triz não sai gritando pelas ruas “Eureka...”, tais foram os êxtases e euforias por que fui tomado no momento – é uma eterna missa em que o mundo serve de altar, as pessoas andam de lá para cá, professando suas verdades e princípios idôneos, a alma de sacerdote, e o corpo de acólito; nada res-ponde à realidade exterior. Vivo ansioso de tomar ordens para sair a pregar as “bem-aventuranças da modernidade”, o evangelho das hipocrisias, das verdades escusas, espertar as almas, chamar os corações ás posturas do belo e sublime à luz do espírito da vida e re-“n”-ovar o gênero humano.
Perguntar-me-á você, leitor, a razão de não sair pregando as minhas verdades, as experiências vividas e vivenciadas, salvaria as almas das ilusões e quimeras dos absolutos da razão, de todo real ser racional e todo racional ser real, de todo espiritual ser eterno e tudo o que é eterno é espiritual, e viver a vida na flauta ser o ápice de todos os valores espirituais, princípios. Não há razões, posso unicamente dizer que me falta a oratória, seria matéria imprescindível para persuadir os sábios de plantão e os místicos de folga, poderosos do sistema, mestres e doutos da língua; tendo-lhe recusado, não me entrando no cérebro, seria profissão perdida, tachado de varrido de “vassoura de piaçava”, imitação ridícula de Zaratustra, a vida é muito curta, o tempo exíguo, para gastar com estas frivolidades, futilidades de re-“n”-ovar o ser humano.
Sim, um dia hei-de morrer. Não levarei minhas verdades para a sepultura, lá não servirão para nada, não amenizarão o odor fétido do cadáver, não vão obstruir os ossos de se tornarem cinzas. Se deixar de lado isto de não me entrar no cérebro a retórica para fundamentar a profissão de minhas verdades, professá-las, sujeito aos equívocos e ridículos, servirão de sementes para o que há de vir, ao longo dos séculos e milênios, de reflexões e meditações do sentido e significado da vida. Concordo com esta idéia, realmente é para isto que as puras idéias nascem, para servir aos homens de outros tempos e realidades, mas jamais quis ser semente no mundo – já que não posso ficar como semente, não serei semente depois da morte; quê bela e esplendorosa justificativa!

Por ora, tudo são flores com as verdades minhas da vida e do ato de viver; cá estou para amar com carinho e ternura a minha Josefina, para fazer os leitores terem pitis e achaques com tudo o que escrevo, para sustentar a minha família, para ser objeto de críticas, as mais deslavadas dos inimigos e falsos amigos, bajulação e paparicação dos amigos de plantão que se sentem importantes com a minha vida, serão lembrados por sempre estarem ao meu lado; e você, leitor, é só ler, cismar, elucubrar, olhar fixo e direto para o horizonte com suas auroras e crepúsculos, sonhar com a pureza das idéias, com a divinidade das utopias, divino das condutas e posturas idôneas e lídimas, tocar e brincar com as sorrelfas e idílios da contingência; mas eu terei de morrer, meu corpo tornar-se cinzas, de mim nada mais ser lembrado, mesmo que os historiadores eivados de dignidade, honradez re-presentem com fui na vida. 

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