(ENSAIO) - LEME DO DESTINO - Manoel Ferreira



Dostoïévski escondia uma força revolucionária sob a máscara da reação conservadora.

Se o grão morre – diz a parábola de Cristo – então nasce o trigo. 
  
Em verdade, em verdade, eu vos digo: a semente de trigo, caída na terra, se não morrer, ficará infecunda, mas se morrer, produzirá muitos frutos[1].  (Jo 12,24).

O grão de trigo é a centelha da divindade que deve ser mergulhada no obscuro, nos meandros do inconsciente, como o fermento na massa; aí, deverá perder a consciência de qualquer dualidade, ser uma só coisa com a terra, do mesmo modo que tinha sido uma só coisa com o céu.
Dostoïévski confessa que, no cárcere, sentia às vezes o coração bater com força ante o pressentimento da liberdade e murmurava consigo mesmo: “A liberdade – a ressurreição dos mortos”. Bem depressa se acalmava. Era preciso aprender a amar o sofrimento, a comprazer-se na dor – aprender a “morrer”. Sem isso, jamais poderia alcançar a graça da ressurreição. No Evangelho de São João, Cristo anuncia a Nicodemus: “Em verdade, em verdade vos digo que aquele que não nascer de novo não verá a meu Pai”. Dostoïévski aceita a “morte” para nascer novamente. Lê a Bíblia e procura fazer com que os companheiros de degredo a leiam.
A alma que cada um revela é analisada por Dostoïévski à luz dos ensinamentos dos Evangelhos. E dentro ou fora dos painéis da sociedade do seu tempo, o romancista observa e submete a personalidade de ficção a experiências sucessivas – como o filósofo se debruça numa obra a fim de colher e recolher o que lhe habita interiormente.
O ser humano, sem a crença na existência de Deus e na imortalidade da alma, findaria por rejeitar toda e qualquer lei moral. Parece-lhe evidente, desde logo, que o homem fatalmente abusaria da dádiva da liberdade e iria achar que a existência de Deus permitir-lhe-ia a mais absoluta e a mais desenfreada franquia de pensamento e de ação.

Se tudo se fundisse na igreja, ela afastaria de si o criminoso e o rebelde, mas não cortaria cabeças – prosseguiu Ivan Fiodorovitch – Eu lhe pergunto para onde iria o condenado. Ele deveria, então, afastar-se não apenas dos homens, como agora, mas do próprio Cristo. Com o seu crime, ele se teria rebelado não apenas contra os homens, mas contra a própria igreja cristã. No sentido mais íntimo, isto ocorre mesmo agora, mas não é fato reconhecido por lei. A consciência do criminoso moderno, muitas e muitas vezes, entra em acordo consigo mesma: “Roubei, mas não estou indo contra a igreja, não sou inimigo de Cristo”[2].

Hoje, deparamos e convivemos com êmulos autênticos dos Svidrigailov, dos Stavroguine, dos Ordinov, dos Marmeladov, dos Karamazov, dos Rógojin e de tantos outros mais, pois os problemas de tais personagens como que se tornaram corriqueiros nos indivíduos que freqüentamos. O cataclisma de duas guerras mundiais com o pavoroso cortejo de suas conseqüências transformou-o, de súbito, em profeta dos novos tempos, cujas revelações de autêntico visionário iluminam o porvir com o resplendor de um astro.
Em Os possessos, Stepan Trofímovitch havia feito alguma coisa em “ciência”, mas é muito vaga a lembrança que o narrador tem de suas realizações. Um famoso artigo que escreveu continha “o começo de um estudo muito profundo sobre as causas, creio, da extraordinária nobreza moral de certos cavaleiros em determinada época, ou algo dessa natureza. Em todo o caso, tratava-se nele de uma idéia elevada e perfeitamente nobre”.
A escolha desse assunto também define a sublime elevação do próprio ideal de Stepan Trofímovitch, que forma um contraste tocante e incongruente com as circunstâncias de sua vida. Esses ideais são ilustrados também pelo que conta o cronista sobre o poema em prosa, supostamente inflamatório, de Stepan Trofímovitch, escrito em alguma época dos anos 1830, cujo manuscrito “circula no meio de um grupo formado por dois amantes de poesia e um estudante”. Descrito como “uma espécie de alegoria na forma lírico-dramática, que lembra a segunda parte do Fausto”, o poema parodia o Triunfo da morte, de Petchórin, e é muito mais importante textualmente do que se costuma reconhecer. 
Apesar de todo o seu humor, essa paródia contém o principal tema do livro e prefigura o aparecimento de Stavróguin. Ele também é de uma “beleza indescritível”; ele também é morte e não vida; ele também é seguido, senão por um cortejo de todas as nações, pelo menos pela multidão de todos aqueles que olham para ele em busca de inspiração. Ele também acredita que o homem pode tomar o lugar não do senhor do Olimpo, que nada tem a ver com a Torre de Babel, mas do Deus do Velho Testamento e de Seu filho do Novo. Ele é o pretendente e o impostor que aspira ao trono de Deus, assim como a Morte no poema aspira a ser a fonte da Vida. Assim, tudo o que provém dele é marcado com o selo da suprema falsidade e do logro e conduz à Morte. Ele é um fac-símile falsificado e fraudulento da Verdade; e esse simbolismo do usurpador, do pretendente, do impostor percorre todo o livro, fundamentado todos os seus atos e ligando-os entre si.
O cruel realismo dos niilistas, que sempre vêem tudo em termos do mais insensível egoísmo, vez por outra revela o esqueleto no gabinete muito bem enfeitado de Stepan Trofímovitch. Todavia, isso serve apenas para tornar o velho e volúvel idealista mais simpático e atraente. Qualquer que seja a base material de sua existência, ele nunca a explorou com cinismo ou indignidade; ao reconhecer sua fraqueza, sempre teve consciência de que era indigno dos grandes ideais que proclama e reverencia.
Em outras palavras, Stepan Trofímovitch nunca permitiu que sua consciência se embotasse ou se insensibilizasse – e, para Dostoiévski, isso sempre deixa o caminho aberto para a salvação.
A vida teria continuado mais ou menos como antes não fosse o estímulo interno dado pela determinação de Piotr Verkhoviénski de converter as palavras em atos. A teia da trama, entretecida aos poucos, com seu ritmo acelerado e a rede intricada de relações veladas, comunica uma sensação quase física dessa invasão gradual de uma ordem há muito estabelecida por forças ocultas que assumem sub-repticiamente o leme de seu destino.
Não foi sem razão que Dmitri Merejkovski proclamou ser ele “o profeta da Revolução Russa”. Isso muito antes de Lênin, e depois de haver percebido que Dostoïévski escondia uma força revolucionária sob a máscara da reação conservadora. O “outro”, compreendendo-o à luz de “A origem da linguagem é o outro e o outro é a origem da linguagem”, revela a Vida que advém da morte, que é a sua esperança de ressurreição, a origem da vida é o outro e o outro é a origem da vida, o leme nosso de cada dia, a busca de nossa redenção, a entrega aos homens e à humanidade. 
A Rússia bolchevista e grande parte da sociedade contemporânea parecem nascidas das páginas de Os possessos. A dicotomia que prevalece na alma de Pedro Verkhoviénski Stavróguin, Chátov, Chigaliov, Liputine, é gente que perambula entre nós com apelidos diferentes, a confusão que reina em suas mentes, a falta de unidade que se nota em suas personalidades, a ausência de escrúpulo em seus métodos de ação, a vontade de poder, o poder que faz desconhecer tudo, que negligencia a moral e a ética em detrimento de interesses os mais espúrios, bem como a violência sem freios de suas paixões e de seus anseios de poder, são realmente idênticos ao que ocorre em volta de nós.   













[1] Idem, idem. 1944. pág. 7.
[2] Idem, idem. Pág. 51.

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