RE-VERSOS E IN-VERSOS DE OUTRORA E HOJE - Manoel Ferreira



Madrugada insone...
Deitado, virando-me de um lado para outro, quieto, lembranças e recordações perpassando-me por inteiro, olhando a escuridão, ouvindo os cães ladrarem... Coisa desagradável. Todos dormem, só eu acordado – não velo o sono da humanidade, não sou vigia dos homens. Fazer o quê?
Quis descer para o escritório, a senhora não deixou, alegando haver sentido dores no peito, acabava de tomar Isordil, de modo algum iria descer. Deixá-la-ia preocupada, estava com sono, precisava dormir. Não teria problema, levaria o celular, qualquer coisa só ligar. Não de modo algum. Permanecesse deitado. O sono viria. Tentei, não veio o sono. Não ficaria na cama. Sentar-me-ia na poltrona da cozinha. Ficar três horas sentado sem fazer coisa alguma. Sou quem diz: “de jeito maneira”, tal estilo para fazer mofa de mim que não sei, não tenho paciência de ficar quieto.
Insone sou desde a tenra juventude, treze anos, quando, não me lembram quais as razões foram, fiquei semana inteira sem dormir, por determinação médica, fui a Belo Horizonte fazer alguns exames, inclusive eletroencefalograma, todos deram negativos, dizendo o médico ser tensão, receitando-me calmantes. Outras insônias vieram, por trinta anos sofri com elas. Insone, saía pelas ruas da cidade, andava, andava, andava, às vezes em silêncio, às vezes conversando comigo acerca de meus problemas, dores, sofrimentos. Sentindo-me cansado, voltava para casa, dormia ou não. Há dez anos, por interferência da comadre Nininha, enviando-me um livro de cura da insônia natural, libertei-me, mas de quando em vez surge, não se prolonga, noite ou duas apenas.
Em verdade, estou ansioso, bem ansioso. Encontrar-me com alguém depois de três décadas e meia é a específica razão de minha ansiedade. Perpassam-me no íntimo lembranças de minha juventude. A que ressalta dentre todas era a relação com Oídes Rodrigues da Silva Júnior, éramos muito amigos, gostava mesmo de conversar com ele antes das primeiras aulas começarem, nos intervalos, íamos à casa um do outro, e mesmo nos dias de exames pedir-lhe elucidasse-me algumas dúvidas, que o fazia de boa vontade.
Sentia-me bem ao lado por me considerar com tanto apreço, chegando a aconselhar-me algumas vezes, evitasse rasgar os verbos dos professores, quando me chamavam a atenção, não falasse da professora de Língua Portuguesa, era péssima, não sabia nada, decorava manuais, havia quem a contasse, sobrinho dela, que precisava bajular para garantir suas notas, ela era daquelas que perseguia mesmo, tomaria bomba, não valia a pena. Perguntava-me sempre “Por que um colega só tira nove e dez em todas as disciplinas dá tanta atenção para outro que só tem notas baixas, até zeros figuram na caderneta? Por que o melhor aluno de contabilidade dá atenção para o mais atrasado de todos?” Reconhecia-me os valores intelectuais, sensíveis, e creio até hoje que pensava não lhes dar asas devido às discriminações várias que sempre tive, dos professores e colegas, chegaria o momento de aflorá-los a todos. Naquela época, a especialidade dos professores era discriminar a maioria dos alunos, centrando-se em um por seus comportamentos, atitudes, por serem de classe social baixa, bajular outros, por serem classe social  média ou alta, por tirarem notas altas, por não falarem nada deles, por aceitarem  as lições de mão beijadas, sem questionar, de alguns eles até aumentavam as notas.
Disse-o, reafirmo, durante estes trinta e cinco anos, sem ter notícias de Oídes Rodrigues da Silva Júnior, poucas foram as vezes que dele me lembrei; acontecendo, lembravam-me suas conversas, conselhos, reconhecimentos, o quanto me orgulhava de ser amigo de um rapaz tão inteligente, dedicado, esforçado, sensível. Seria hipocrisia afirmar que no fundo conhecia meus dons e talentos, não os aflorava por medo de ser ainda mais discriminado. Nas minhas condições, impossível sabê-los, havia professor que me olhava como se fosse imbecil, havia professor que me odiava por ser franco, que na cachola de culto e supra-sumo do conhecimento acreditava não seria eu nada na vida. Os únicos colegas que me valorizavam eram Orlando Martins, que abandonou o curso de contabilidade no primeiro ano, precisava trabalhar, e Oídes. Ninguém mais.
Sempre há um amigo que nos desperta para a vida. Oídes despertou-me. Não para ser o melhor aluno da sala, apesar de que em Inglês o era – fiz provas para vários alunos da classe; na época dos exames, procuravam-me, mostravam-se amigos, os interesses diziam mais alto, mas depois dos exames afastavam-se -, mas para as relações. Isto pude sentir bem presente na universidade. Sempre me dei bem com os intelectuais, professores, escritores. Não só por serem a nata fina do conhecimento, mas por serem pessoas sinceras, sérias, não terem motivos para hipocrisias. Óbvio, conheci alguns trastes, mas em pouco tempo me afastei. Houve quem dissesse minhas relações com intelectuais se fundamentava numa única coisa: aprender com eles, sentir-me igual a eles, no fundo me sentia inferior. Sério: quase urinei na calça de tanto rir na cara da pessoa. Disse-lhe: “Não me sinto inferior ou superior a ninguém. Não sou homem de rebanho. A intelectualidade não se aprende com alguém. A vida lega. Não sou ainda intelectual. Sê-lo-ei mais tarde. Relaciono-me com intelectuais por serem sinceros e sérios”.
Não o digo para figurar nos anais de minha história. Não fossem os amigos, nada diria sobre mim, sou daqueles que ostentam com radicalidade a minha vida só a mim interessa. Depois de minhas relações com Oídes, tornei-me bem sensível às verdades do reconhecimento e consideração. Não fossem nossas relações verdadeiras, mesmo sendo intelectual, “a hipocrisia não tem um leito de flores no regaço de minha alma”, não perceberia tão intimamente a seriedade e franqueza dos intelectuais, não porque disfarcem com propriedade, não porque sejam  hipócritas, usem máscaras, sim porque o intelecto, razão em muitos cobrem a sensibilidade, quanto mais aqueles cujo orgulho da raça e estirpe imperam. Nada tenho contra os simples e humildes, sei que são até mais sensíveis e verdadeiros, mas o meu verdadeiro métier é a intelectualidade.
Oídes era(é) inteligentíssimo, intuitivo, perceptivo, sensível, conhecimentos sólidos, sabia discutir sobre qualquer tema com percuciência, mas nada disto ostentava. Rapaz sensível que era, sabia que não se mostrando que se é, ao contrário, quem mostra é que nada é. Seu tom de voz, seu modo de olhar, gestos, comportamentos, modo de sentar-se na carteira – não cruzava as pernas, não as esticava, não porque se sentava na primeira carteira, segunda fila, à esquerda de quem entrava na sala, e por descuido do professor, compenetrado em seus ensinamentos, pudesse tropeçar em seus pés e sair catando mamona na sala de aula, sendo objeto de risos e gargalhadas dos alunos, mas por princípio seu – de prestar atenção nas aulas, compenetradíssimo, não deixar passar única palavra e mesmo os gestos dos professores, educação, apreço e amizade com os colegas, seu carinho em elucidar as dificuldades deles, tudo isso identificava não apenas o rapaz de bons princípios, de inteligência incomum, esforçado e dedicado aos estudos, quem tinha inúmeros sonhos e projetos na vida, desejava ser na vida, mas o rapaz sensível, solidário, amigo.

Jamais imaginei que numa madrugada de minha vida, horas antes de viajar a Curvelo para a divulgação de mais uma edição deste suplemento, estaria insone devido ao encontro com Oídes, tantas lembranças de nossas relações me perpassariam o íntimo; mais ainda, imaginei estar escrevendo sobre nossas relações. Sinto-me feliz, satisfeito com este futuro encontro. Por todo o tempo que estive sentado, escrevendo, deixando a sensibilidade livre para as lembranças e recordações, desde as três horas da manhã, imaginei como seria nosso encontro, já adultos, cinqüentões, afastei-me dele aos dezenove anos, ele com dezoito, diferenças o tempo revelou em nós, nossas primeiras palavras, os casos da escola, do jeito que sou sensível, houve momento que pensei verter lágrimas, é no encontro que vou saber se serão reais ou produtos da pena. 

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