LÍNGUAS DE TRAPOS DI-VERSOS - Manoel Ferreira


Bons dias!

 Há as boas línguas que só tecem elogios, considerações e reconhecimentos os mais esplendorosos e magníficos, nada melhor que a presença delas para fazer alguém se sentir o grande, o maior que já houve na terra, um verdadeiro deus, por aí vão os orgulhos e lisonjas da espécie. Há as más, outras coisas não fazem senão matraquear as mazelas e achaques alheios, sabem de tudo e tudo revelam em todos os cantos e recantos, esquinas e portas das igrejas, enquanto o padre lá dentro presidencia a Palavra do Senhor; delas, não há quem lhe aprecie as presenças, corre-se léguas delas, as léguas não importam, não é devido a elas, a ausência da pessoa, que deixarão de matraquear, melhor ainda, podem dizer todos os podres com gosto e prazer, não sofrerão ameaças de serem cortadas, a pessoa não será espancada, não levará um tiro na cara. Desde a eternidade as línguas de trapo existem, são os cronistas da comunidade, terríveis e des-linguados.
Não faço fofocas, não é de minha índole, invento mazelas; se as carapuças servem com perfeição, isto é com quem tomou minhas invenções a sério, a quem serviram com distinção e notoriedade. Até o presente momento ninguém tirou satisfações comigo, fazê-lo seria assumir as mazelas e achaques a que me referi, isto nunca, mas percebi os olhares de esguelha deles. Quiçá Deus lhes houvesse doado gratuitamente talentos, responder-me-iam com a pena em riste; que ironia!, podem pagar a algum editor de jornal o espaço para as respostas devidas, mas não sabem escrever linha sequer. Ouvi alguns que querem ser meus amigos até a consumação de suas vidas, significando com isto não desejam ser objetos de minha língua afiada; respondi-lhes a amizade não me silencia, se tiver razão em dizer algo, di-lo-ei, mas será na “lata” deles, nada compra meu silêncio, não tenho preço, se tivesse já me teria vendido para ganhar algum dinheirinho a mais para ajudar no orçamento do lar.
A morte – não sei se vocês, leitores, assinam embaixo, se contestam, apresentando argumentos os mais fundamentados, não aceitam, em verdade digo asnice, para chamar a atenção, causar polêmica, não tenho outra coisa para dizer -, bem podia ser tão-só a aposentadoria da vida, com prazo certo. Ninguém iria por doença incurável, por suicídio, por assassinato, desastre, mas natural invalidez; a velhice, tornando a pessoa incapaz, não a poria a cargo dos entes queridos, amados, ou dos outros. Ninguém sentiria dor nem temor, nem os que se fosse, partissem desta para a melhor, para a pior, dependendo dos comportamentos ou atitudes no mundo, nem os ficassem. Podia ser uma cerimônia doméstica – há culturas que fazem festas glamorosas, quando um ente morre, verdadeiros banquetes de comilança, não saberia dizer se nelas existem os 0800, de hoje, os penetras de ontem, aqueles que aparecem só para comer, de graça até choque na orelha; também não sei se nestas culturas quanto mais houver sido a importância da pessoa maior é o banquete, se na modernidade dela imperam os canalhas e súcias, e quanto maiores forem suas canalhices maior a importância, o banquetes terão de ser mais suntuosos e em maior quantidade, se a importância financeira, gordas finanças no banco ditam a importância, assim a qualidade do menu será bem mais rica – ou pública; entraria no menu  dos costumes uma refeição de despedida, de preferência o prato mais apreciado de quem iria morrer, frugal, não triste, desconsoladora, em que dissessem as saudades, melancolias, nostalgias, que levavam para debaixo dos sete palmos, fizessem recomendações morais, éticas, de princípios religiosos, sociais, políticos, econômicos, de fórum íntimo, pedissem que um último desejo fosse concretizado, dessem conselhos, e se fosse alegres e de espírito jovial contassem anedotas picantes, especialmente de padres, portugueses, políticos, do papagaio. Muitas flores, como apreciava um ex-caso meu, dos mais complicados, flores silvestres, não perpétuas, nem de cores carregadas, mas claras e vivas, como de núpcias, as noivas jogam para cima e uma encalhada pega e espera em Deus desencalhar-se. E melhor seria não haver nada, além das despedidas verbais e amigas...
- Tudo de bom para você no além...
- Se tiver algum tempinho, volte, conte-nos como é a vida no além...
- Seja muito feliz em sua nova vida...
- Viaje tranqüilo, sentiremos saudades...
- Foi muito bom conhecer você. Aprendi muito. Desejo-lhe muitas felicidades.
- Pode ter certeza de que me lembrarei de nossos momentos todos, nossas alegrias, tristezas, felicidades...
- Tenho certeza de que Deus vai considerar no Juízo Final o dinheiro que você me emprestou para me tirar do atoleiro das dívidas...
Bem sei o que as línguas podem dizer disto, não importando se são boas ou más; importa-me sonhar alguma coisa que não seja a morte bruta, crua e terrível, que não saber se um homem é ainda precioso aos seus, nem se é merecedor das torturas que o afligi primeiro, antes de esgoelá-lo.
Tal acaba de suceder ao soldado Pinto Paixão, raso por trinta e três anos, que foi levado anteontem à sepultura, a mulher passou a faca no seu pinto, nem sentiu dor devido a embriagues, enquanto dormia. Por três anos, Bia via navios à noite, o soldado raso Pinto Paixão fez plantão na delegacia, às vezes se divertia com alguma prostituta no matinho atrás da cadeia. Bia soube. In-vestigou, escondida num casa aos escombros de frente à cadeia por duas semanas, angustiada, derramando lágrimas contundentes, o que as prostitutas tinham que ela não tinha. Viu com os olhos que Deus lhe deu o marido sair com mulher e enfiar-se no matinho, voltando meia hora depois. Jurou vingança.
Às vezes, acontecia de terminar o plantão, passar o botequim do Homero, tomando umas cachaças, não ficando embriagado, quando estava sozinho. A verdadeira vingança seria no momento da embriagues absoluta. Cozinhou o galo em água fria. Anteontem, depois de nove meses de sua ciência de que o soldado raso Pinto Paixão transava com prostitutas no matinho atrás da cadeia, e a rejeitava, rejeitou-a por três anos, chegara o momento propício para lhe mostrar o que valia seu pinto. Em verdade, Vasconço, nome real Fabrício Vasconço, fora libertado, pagou nove meses de cadeia por estupro de uma adolescente de treze anos, a pena fora bem maior, dez anos, com condicional aos sete, mas por competência e renome de seu advogado, por ter dinheiro, haver sido secretário de gabinete do prefeito, fora reduzida. Pinto Paixão e Fabrício Vasconço  tinham que comemorar a liberdade, dividiram várias prostitutas na cadeia, primeiro que divertia era Fabrício Vasconço, depois Pinto Paixão no matinho atrás da cadeia.  
Foram para o botequim do Homero às sete horas da noite, beberam com alguns amigos, contaram muitas piadas, falaram das prostitutas da José Bonifácio com muito carinho e devoção, foram amigas mesmo de Pinto Paixão e Fabrício Vasconço, às vezes transavam para receber depois. Pinto Paixão comemorou mais estar bebendo com um homem rico, ex-secretário de gabinete de prefeito, renomado na comunidade, ele que não tinha onde cair morto, vivia de seu salário de soldado raso, num barraco quase aos escombros, estava orgulhoso disto, ser amigo de um homem importante, que propriamente por haver sido o amigo de prostitutas ser libertado. Um engradado de cerveja, três litros de pinga foram tudo que consumiram das sete da noite até à meia noite; inclusive, faltou ao plantão. Estava mais do que embriagado, dizendo os maiores absurdos da mulher Bia, coisa que os presentes se sentiram assustados, incomodados, nunca viram o soldado raso Pinto Paixão dizer tantas coisas imorais, indecentes, era normalmente muito calado. Homero chamara um táxi para levar os amigos em casa.
A mulher estava acordada assistindo ao programa da Hebe Camargo, quando Pinto da Paixão entrou em casa arrastado pelo motorista do táxi. Bia indicou-lhe o quarto. O motorista tirou as roupas de Pinto Paixão. A mulher continuou sentada na poltrona da sala assistindo à televisão. O motorista foi embora, era a vez de levar Fabrício Vasconço em casa, dormia no banco traseiro do carro. Bia dera alguns sorrisos, havia chegado o instante de vingar as rejeições de tantos anos. Não transava com ela, não transaria mais com ninguém. Terminado o programa da Hebe Camargo, foi até a cozinha apanhou da faca que, aliás, fora afiada pelo marido dois dias antes. Tomou um  gole de café. Foi até ao quarto. Num golpe só, cortou o pinto do soldado raso Pinto Paixão. Ele nem se mexeu como manifestação de haver sentido alguma coisa. O sangue esguichou. Os olhos de Bia brilhavam, a vingança foi feita. Saiu do quarto, abriu a porta da cozinha, chamou o cão, jogou para ele o pinto do sargento raso, dera algumas mastigadas, engolira com prazer.Deitou-se na poltrona e dormiu profundamente.
Convenhamos, Pinto Paixão ficou sem o pinto, mas antes disso pôde sentir bem forte em seu coração uma paixão enorme por haver estado em companhia de Fabrício Vasconço, tomando cerveja e pinga, comendo salgadinhos, conversando, ele que só teve sentimentos de inferioridade, trinta e três anos de soldado raso, salário de fome, amou a presença de um homem rico junto com ele, comemorando a liberdade. Ele nunca havia se deitado com mulheres finas, inteligentes, limpinhas, cheirosas, só com prostitutas, algumas vezes com a esposa que reclamava de carinho e ternura, só bombava, gozava, virava para o canto, nos últimos três anos só o fazia em pé no matinho atrás da cadeia pública. Há quem diga que quem não tem cão caça com jegue. Pinto Paixão não caçou nem com cão, nem com jegue, nos últimos momentos de sua vida bebeu e comeu à custa de Fabrício Vasconço. Há mortes inglórias, mas a do soldado raso Pinto Paixão foi gloriosa, sem o pinto, mas feliz por uns momentos de felicidade e alegria ao lado de um homem rico, ex-secretário de gabinete do prefeito. 









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