SONHO E REALIDADE EMPÍRICA: IMAGENS DE VIVÊNCIA INTERIOR - Manoel Ferreira


O sonho é a arte do indivíduo, a arte é o sonho da sociedade.
Paulo César Carneiro Lopes.

Walter Benjamin chama de processo de meditação a capacidade de parar e olhar profundamente o real, a história. E qual seria o “real” do ser humano? - perguntamos com naturalidade. É a nossa contingência desde as nossas origens, não apenas de nosso curriculum existencial, mas de nossos ancestrais, as nossas raízes, sendo autênticos em aderir-nos a elas, entregando-nos à Vida, não apenas ao seu sentido.
O real empírico mistura-se, em Dostoïévski, ao simbólico; a realidade aparentemente chã é, muitas vezes, paródia, estilização de uma outra realidade, mas não apenas para iludir a censura, para se defender de conseqüências, e sim num jogo de máscaras, de duplicação do mundo, de desdobramento da personalidade, de fragmentação da imagem numa oposição de “espelhos”, enfim, na inserção da novela ou romance numa totalidade múltipla e variada ao infinito, dinâmica e fluida, em que o real é a máscara de outro real, em que nada é definitivo ou estratificado.
Nessa perspectiva de busca de con-templação da obra dostoiévskiana da totalidade múltipla e variada ao infinito, dinâmica e fluida, em que o real é a máscara de outro real, que O Senhor Prokhartchin nos interessa de muito perto, por indicar outras leituras dos distúrbios da psique humana, que soube revelar através de sua obra, valendo-lhe até o epíteto de “o escritor da alma humana”, os distúrbios mentais que soube aprofundar neles, viver em carne e osso, toda a sua problemática psíquica, a epilepsia, mas que mostrou à humanidade outros caminhos, trilhas para o Reino de Deus.
Essa totalidade múltipa e variada ao infinito só pode ser re-colhida e acolhida, o que lhe habita poeticamente, através das dialéticas que nascem, cujas origens são a “dialética interior” presente em toda a obra.   
Em O Senhor Prokhartchin, depois de súbita aparição do demoníaco Zimovéikin, repassada de estranheza e grotesco, surge claramente a contaminação de Mark Ivânovitch pelo delírio de Prokhartchin, e o diálogo entre os dois passa a ser completamente alucinado.
Há qualquer coisa de demoníaco neste Zimovéikin, sua presença contamina tudo de incerteza e complexidade, de apagamento de fronteiras entre o bem e o mal. O sério-cômico, que se manifesta em toda a estória, acentua-se com a presença de Zimovéikin.
Quando as imagens do carnaval e o riso carnavalesco são transpostos para a literatura, em graus variados eles se transformam de acordo com as tarefas artístico-literárias específicas. Seja qual for o grau ou o caráter da transformação, a ambivalência e o riso permanecem na imagem carnavalizada. Sob certas condições e em certos gêneros, porém, o riso pode reduzir-se. Ele continua a determinar a estrutura da imagem, mas é abafado e atinge proporções mínimas: é como se víssemos um vestígio do riso na estrutura da realidade a ser representada, sem ouvir o riso propriamente dito.
Acerca do riso, o protagonista de O adolescente, diz-nos:

Olhai uma criança: certas crianças sabem rir com perfeição e por isso são irresistíveis. Uma criança que chora é-me odiosa, mas a que ri e se rejubila é um raio do paraíso, uma revelação do futuro, em que o homem se tornará, por fim, tão puro e ingênuo como uma criança[1].

Em O sonho do titio, primeira obra do segundo período de Dostoïévski, distingue-se por uma carnavalização nitidamente expressa, mas um tanto simplificada e exterior. A idéia central é um escândalo-catástrofe com duplo destronamento – o de Moskaliévskaia e o do príncipe. O tom da narrativa do cronista mordaz e ambivalente: glorificação irônica de Moskaliévskaia, isto é, fusão carnavalesca do elogio com o insulto. Vale ressaltar e sublinhar que Dostoïévski tomou como protótipo a Gogol, precisamente o tom ambivalente da novela: de como brigaram Ivan Ivânovitch e Ivan Nikiforovitch.
A cena do escândalo e do destronamento do príncipe – rei carnavalesco ou, mais precisamente, noivo carnavalesco – é coerente como um dilaceramento, como uma típica separação carnavalesca “sacrificatória”. Poderíamos, até usando a expressão “descascar os pepinos”, classificar a cena seguinte:

... Se eu sou um barril, você é aleijado...
- Quem, eu aleijado?
- Isso mesmo, aleijado, e ainda por cima banguelo, é assim que você é!
- E ainda zarolho! – gritou Maria Aliéksândrovna.
- Tem espartilho em vez de costelas – acrescentou Natália Dmítrievna.
- Tem a cara sobre molas!
- Não tem cabelo próprio!
- Bigodes de imbecil, postiços – completou Maria Alieksândrovna.
- Deixe-me pelo menos o nariz, Maria Stepânovna, é verdadeiro! – gritou o príncipe, pasmado com franquezas tão inesperadas...
- Meu Deus! – dizia o coitado do príncipe. - ... Leve-me para algum lugar, meu amigo, senão me estraçalham[2].    

Estamos diante de uma típica “anatomia carnavalesca”: e enumeração das partes de um corpo separado em partes. Enumerações desse tipo são um método cômico muito difundido na literatura carnavalizada da época do Renascimento (encontrado com muita freqüência e em forma desenvolvida em Cervantes).
É ainda tipicamente sério-cômico o episódio de os inquilinos prepararem uma série de palhaçadas para a vinda de Siemión Ivânovitch, que é esperado para logo: chegam a instalar em sua cama uma boneca, que representaria a “cunhada” a que ele se referira tantas vezes. Mas a expectativa cômica é frustrada por um acontecimento trágico: depois que todos se cansaram de esperá-lo, para uma cena alegre, ele é trazido, às quatro da manhã, nas costas de um cocheiro.
O que acontecera com ele? A sucessão dos acontecimentos não é dada pelo narrador diretamente, mas através de uma voz, a do cocheiro. Este o recolhera das mãos de uns farristas e gente boa, e não sabia se eles brigaram entre si ou o senhor Prokhartchin tivera uma cãibra. Estamos em pleno domínio do sério-cômico, numa confirmação evidente da teorização de Bakhtin. Há grotesco e pungência nessa volta de Prokhartchin, em sua angústia, na ansiedade com que procura abarcar com as mãos e o corpo o máximo de seus míseros pertences.

Foi – respondeu – com umas pessoas de Kolomná, o diabo é que os conhece, não sei bem se eram senhores, não, eram uns senhores farristas, alegres; e eles me entregaram este homem assim como está; não sei se eles brigaram, ou se uma convulsão tomou conta dele, Deus sabe o que aconteceu; mas eram uns senhores bons, alegres![3]

O que lhe sucede depois é dado de fora. “Um semi-sonho, semidelírio, depositou-se sobre a cabeça pesada e cálida do enfermo” – eis o máximo de vivência interior que se mostra nesta passagem. A seguir se dá o seu comportamento, não o que pensava e sentia. Fica-se sabendo que ele podia, quando quisesse, “distrair sua angústia” com os ruídos da casa. Diz-se o que ele “podia ouvir”, não o que “ouvia”.

Um semi-sonho, semidelírio, depositou-se sobre a cabeça pesada e cálida do enfermo; mas ele ficou deitado quieto, sem gemer e sem se queixar; pelo contrário, serenou, calava-se e mantinha-se firme, achatado contra a cama, semelhante a uma lebre que se agacha, de medo, ao solo, ao ouvir os ruídos de uma caçada. Por vezes, sobrevinha no apartamento um silêncio prolongado, angustioso, indício de que todos os inquilinos tinham ido ao serviço, e, acordando, Siemión Ivânovitch podia distrair o quanto quisesse a sua angústia, prestando ouvido ao rumorejo próximo, na cozinha, onde se afanava a senhoria, ou então ao lepte-lepte medido dos sapatos gastos da empregada Avdótia, por todos os quartos, quando ela, gemendo e soltando “ohs”, arrumava, esfregava e alisava os objetos nos quartos, para maior ordem[4].

Lembra-nos Jung, acerca da finalidade do sonho: os sonhos sempre acentuam o outro lado, a fim de conservar o equilíbrio da alma. A compensação do clima, porém, não é a única finalidade da imagem do sonho.
No sentido de esclarecer as raízes de nossa interpretação e análise, não podemos deixar de ter consciência de que Dostoïévski criou personagens independentes, mas o caminho, a passagem à independência só é realizada a partir do jogo das imagens, experiência do sonho e realidade, da fé e da esperança. Toda a obra dostoiévskiana é realizada a partir desse jogo, abrindo-se para o infinito, a multiplicidade, ambigüidade, as dimensões da alma humana.
A intensidade com que o semi-sonho, delírio se depositam sobre a cabeça pesada e cálida, conforme “equilíbrio da alma”, insinua o desdobramento realidade empírica e consciência onírica; mas esta “vivência interior” onde se anuncia e manifesta? Manifesta na imagem do sonho. Para que com-preender possamos esta “imagem do sonho” e “vivência interior”, faz-se mister lembrarmos da questão simbólica.      
O mundo de seu sonho é descrito de modo concreto e incisivo, em contraste com a realidade difusa que se descrevera pouco antes. A partir desse momento da transferência para o íntimo de Prokhartchin, passa a haver um Prokhartchin empírico e um Prokhartchin do sonho – duas vozes com iguais direitos. O que sucede no sonho passa a ser narrado como se acontecesse realmente, mas o sonho não faz desaparecer de todo a realidade empírica, pelo menos de imediato. De início, os movimentos que faz no sonho são repetidos pelo seu corpo na cama. Em sua consciência de sonho, também não desaparece a realidade da pensão.
Depois, o sonho reproduz o incêndio a que ele assistira, em companhia do pedinte bêbado. Os acontecimentos se sucedem alucinadamente, há um tilintar de dinheiro no bolso das pessoas (ele acabara de receber o salário, e outros também) e um reboar de corneta de bombeiro, e este atroar, no sonho, contrasta flagrantemente com a sonolência e os sonos medidos que se descreveram pouco antes. 
Repetiria o sonho realmente o incêndio a que ele assistira? Em que medida o sonho refletiria a realidade empírica? E que espécie de “reflexo” seria este? Fica-se sabendo que no sonho houve condensação temporal, devido à cena do mujique: ele incita o povo contra Siemión Ivânovitch, e este reconhece o cocheiro a quem deixara de pagar uma corrida, cinco anos antes.
A própria loucura de Prokhartchin é o paroxismo de um processo de reificação. A reificação é ressaltada pelo estranhamento, decorrente da loucura de Prokhartchin.
Em Dialética do iluminismo (1947), Adorno e Horkheimer propuseram o que é talvez a versão mais radical da tese da reificação. Não contentes em igualar a racionalização formal com o surgimento do capitalismo, especulam que a necessidade de impedir a gratificação de certos impulsos básicos para garantir a sobrevivência exige o controle e a objetificação racional do agente e da natureza. A idéia principal desse notável tour de force é que “o mito já é iluminação, e esta reverte à mitologia”; ou seja, simplesmente, “o poder e o conhecimento são sinônimos”. Se o mito constitui a reafirmação dos poderes primordiais do destino coletivo, é também verdade que ele permite diferenciarmo-nos dessas mesmas forças e, portanto, controlá-las racionalmente.
Surge aqui a figura de Ulisses, “protótipo do indivíduo burguês”, que põe em prática um delicado ardil, retirando da sua barganha com Polifemo e Circe – as mais traiçoeiras de todas as forças primevas – melhor proveito do que o originalmente estipulado. Mas esse astucioso desenredo da paixão tem por preço uma nova divida: lemos que Ulisses é “deixado á mercê das ondas”, sendo forçado a “buscar seu próprio interesse de forma negligente”. O que Freud chamava de ´retorno do recalcado´- o poder dos instintos primordiais de voltar à superfície em episódios neuróticos – é reunido aqui à anarquia da produção que Marx atribui ao capitalismo, e à reificação burocrática da vida política imputada à sociedade racionalizada por Weber para produzir uma distopia global em que os deuses da razão devoram seus próprios filhos. A bifurcação racional que o eu autônomo inflige a si mesmo no processo de individuação (autoconsciência como auto-objetificação) não é incidente isolado, mas é sintomático de desencantamento profundo que abrange toda a natureza.
No entanto, Adorno e Horkheimer procuraram Nietzsche, e não Weber, para explicar a reversão ao poder arbitrário como fonte última de valoração – embora não sem reservas. O panegírico de Goethe à cultura agônica da civilização homérica, em especial sua glorificação da força e da beleza naturais, foi visto por eles como prenúncio do fascismo. Ao mesmo tempo, porém, admitiram que “a realização das afirmativas de Nietzsche as refuta e também revela sua veracidade”. Assim, podiam concordar com Nietzsche em que a tarefa da iluminação – “tornar os príncipes e os homens de Estado conscientes sem qualquer hesitação de que tudo o que fazem é pura falsidade”, e mostrar como, mesmo na democracia, “a redução e a maleabilidade dos homens são consideradas como “progresso” – era fundamentalmente ambígua”. Nas palavras eloqüentes de Nietzsche:

Que preço alto o homem precisa pagar pela razão, a seriedade e o controle sobre suas emoções – essas grandes prerrogativas humanas e exemplos da cultura! Quanto sangue e quanto horror por trás de todas as coisas boas![5].

O diagnóstico da civilização de Horkheimer e Adorno ressoa assim com o de Freud, pois a possibilidade de um ego possuindo identidade distinta da natureza externa e interna é predicado no domínio instrumental de ambas. Tendo admitido que a razão formal ou dialética é impelida pelo desejo de dominar, Horkheimer e Adorno tinham dificuldade em explicar a racionalidade da sua própria crítica emancipatória. Com efeito, Horkheimer encontrava na ciência moderna e na sua exemplificação da razão instrumental certas características importantes da metafísica, ou razão objetiva que ela substituíra. O positivismo lógico e o neotomismo se distinguem da teoria crítica por aceitarem uma correspondência não-histórica entre sistema conceitual e realidade objetiva.
Se o racionalismo deixava-se conduzir por uma idéia determinada, por um ideal de conhecimento, o empirismo parte de fatos concretos. Para justificar seu ponto de vista, aponta o desenvolvimento do pensamento e do conhecimento humanos, que prova a grande importância da experiência para que o conhecimento ocorra. Se, em sua maioria, os racionalistas provinham da matemática, a história do empirismo mostra que seus representantes provêm quase sempre das ciências naturais.
Torna-se quase um truísmo afirmar que o tema da reificação aparece soberano em O senhor Prokhartchin. Mas, ao mesmo tempo, pode-se dizer que o fenômeno da reificação, ligado à transformação da força de trabalho em mercadoria, fenômeno este que já fora apontado de modo excelente por Schiller em suas Cartas sobre a educação estética da humanidade, escritas em 1794-1795, aparece neste conto tratado com ênfase peculiar.
Se avaliarmos as contribuições do marxismo weberiano à luz das relações entre estética e razão prática, isto é, o papel do gosto e do bom julgamento ao avaliarmos situações particulares, essa fria recepção da racionalidade formal pela tradição aparece sob uma luz diferente. Horkheimer pode muito bem ter razão a respeito das conseqüências subjetivistas da racionalização formal. Seguramente, o que Habermas disse sobre a relatividade de conteúdos de valor particular tenderia a confirmar esta avaliação.
Habermas não endossou uma estética mais objetiva, do tipo que poderia ajudar a mediar razão e ação. Se a formulação do problema por Horkheimer é válida, a solução que propõe não é tão implausível como afirma Habermas. Para Marcuse, cuja linha de raciocínio recua a Schiller, a solução envolve a mediação do sentimento e da razão, da teoria e da prática, da liberdade e da natureza na cultivação estética. A este respeito, ela partilha com os trabalhos de pós-Kehre de Heidegger a consciência de que a razão prática está vinculada intimamente àquele pensamento poético. Nessa interpretação, a razão prática incorporaria aquela rede de disposições, competências e pré-compreensões que abrangem a totalidade do nosso mudo vivo. 
O conto O senhor Prokhartchin, desde que iniciamos a sua leitura, a anunciação e, durante a leitura, a sensação nos tomam por inteiro, ao longo vamos tendo sensações as mais variadas, mescladas de sentimentos e emoções, dúvidas, questionamentos. Cremos que as sensações, mais do que o texto mesmo suscita, se explica pelo fato de que a história do Senhor Prokhartchin,

(...) quando viu a luz da publicação, diferia muito, já, daquela que saiu diretamente da pena do escritor. Tinha passado entretanto pelas mãos dos censores que retalharam e suprimiram o que entenderam, isto é, o que lhes parecia perigoso
Numa carta que o escritor escreveu a seu irmão, a este propósito, dizia:
“Prokhartchin ficou muito desfigurado. Aqueles cavalheiros resolveram proibir o termo funcionário...”
Ora, é aqui que está a chave do segredo, a explicação da causa da avareza do senhor Prokhartchin. No fundo ele não é avaro por vício ou mania, mas porque... porque é um pobre, um humilde funcionário público.
O senhor Prokhartchin é um conto de intenção social e a caricatura do avarento é um subterfúgio literário, um disfarce, que mesmo assim foi descoberto pela censura. E são também as mutilações que esta lhe imprimiu que explicam a forma caótica deste conto. Porque o leitor, ao lê-lo, deve ficar com a impressão de que faltam aqui “algumas partes”, que a história “flutua” num ambiente de torvelinhos desarticulados[6].
                                                 
Segundo Condillac, só há uma fonte de conhecimento – a sensação. Originalmente, a alma tem apenas uma faculdade: experimentar sensações. Todas as restantes desenvolveram-se a partir dela. O pensamento não passa de uma sensação refinada. Fica estabelecido, assim, um sensualismo estrito.
A voz de Prokhartchin no sonho e a voz de Prokhartchin na realidade empírica têm ainda uma subdivisão, pois, quando ele faz um esforço e acorda, ainda não sai do mundo da alucinação: volta à sua cama, atrás dos biombos, mas ela está ardendo, arde a casa e ardem a cama, o travesseiro e o “precioso colchão” (o “precioso” é uma sugestão sobre o final da estória, mas o leitor dificilmente percebe isto, e o suspense em torno do dinheiro que Prokhartchin escondia não é interrompido).
A palavra “voz” tem de ser tomada no sentido de voz que se manifesta no conto, pois, evidentemente, muitas vezes trata-se de um estado em que a personagem se mantém calada. E é calado que Prokhartchin se mantém, quando o deitam na cama, a exemplo do polichinelo que um tocar de realejo deposita em seu caixote. Nesta passagem, a alusão a uma tradição popular do cômico, ligada a carnaval e palhaçada, traz uma ressonância curiosa com a relação que Bakhtin estabelece entre a obra de Dostoïévski e o carnavalesco.
Mas o carnaval, suas formas e símbolos, e antes de tudo a própria cosmovisão carnavalesca, séculos a fio penetraram em muitos gêneros literários, familizaram-se com todas as particularidades destes, formaram-nos e se tornaram algo inseparável deles. É como se o carnaval se transformasse em literatura, precisamente numa poderosa linha determinada de sua evolução.
Transpostas para a linguagem da literatura, as formas carnavalescas se converteram em poderosos meios de interpretação artística da vida, numa linguagem especial cujas palavras e forma são dotadas de uma força excepcional de generalização simbólica, ou seja, de generalização em profundidade. Muitos aspectos essenciais, ou melhor, muitas camadas da vida, sobretudo as profundas podem ser encontradas, conscientizadas e expressas somente por meio dessa linguagem.
Todas as mencionadas fontes de carnavalização da literatura européia eram do perfeito conhecimento de Dostoievski, excetuando-se, provavelmente, Grimmelshausen e os primeiros romances picarescos. No entanto, ele conheceu as particularidades desse romance através de Gil Blas, de Lesage, e lhes deu atenção muito marcante. O romance picaresco retratava a vida desviada do seu curso comum e, por assim dizer, legitimado, destronava as pessoas de todas as suas posições hierárquicas, jogava com essas posições, era impregnado de bruscas mudanças, transformações e mistificações, interpretava todo o mundo representável no campo do contato familiar.
Quanto à literatura do Renascimento, sua influência direta sobre Dostoievski foi considerável (sobretudo a de Shakespeare e Cervantes). Não estamos falando da influência de temas isolados, idéias ou imagens, mas de uma influência mais profunda da própria cosmovisão carnavalesca, isto é, das formas propriamente ditas de visão do mundo e do homem e daquela liberdade verdadeiramente divina de enfoque dssas formas que não se manifesta em idéias isoladas, imagens e procedimentos externos de construção, mas no conjunto da obra daqueles escritores.
As vozes dos inquilinos podem ser reduzidas, nos trechos que se seguem, à voz do bom senso comezinho em face da tragédia interior de um alucinado. Isto aparece particularmente sublinhado pela ironia do narrador, cuja voz não desaparece, embora por alguns momentos parecesse ter-se fundido com as vozes dos pensionistas.

Finalmente, Mark Ivânovitch foi o primeiro a romper o silêncio e, na qualidade de homem inteligente, começou a dizer com muito carinho que Siemión Ivânovitch devia acalmar-se de todo, que ficar doente era ruim, uma vergonha, que só crianças pequenas procediam assim, que era preciso restabelecer-se e, ademais, voltar ao serviço[7].

O nome Prokhartchin pode ser ligado a outro significado, pois lembra para o ouvido russo também a expressão prokhárkat tchin, que significa: cobrir de escarros o grau hierárquico. Não é isso que ocorre na fase de desvario do velho? Não é contra isso que se volta Mark Ivânovitch, em seus conselhos de bom senso ao doente? Parece dizer: “Volte à estabilidade, ao trabalho, não escarre sobre a sua condição de funcionário de categoria X?”.
Dostoïévski é um escritor recorrente: serve-se de outras obras, temas, temáticas, excertos, idéias, recriando-as. Em O sr. Prokhartchin, o cocheiro leva Siemión nas costas. Um homem desconhecido. Tem um sonho após ter sido colocado na cama pelos inquilinos.
Conforme demonstramos anteriormente, houve cortes pela censura. Mas Dostoïévski num lance rápido de sua pena descreve a personagem. Diz-nos Boris Schnaiderman de modo que possamos saber de sua vida interior:

Prokhartchin era um homem simples que tratava a todos por tu. Era inquieto e ofendia-se com facilidade, sobretudo quando mexiam com a sua avareza ou faziam suposições sobre o conteúdo do bauzinho que guardava como preciosidade. Mas esta inquietude é um dos poucos sentimentos da personagem de que o “biógrafo” (assim é referido o narrador) dá conta. O bauzinho torna-se um objeto que chama a atenção dos demais e frisa a contínua expectativa em que Prokhartchin se encontra, em relação ao que os outros vão dizer. Enfim, tudo o que se diz a respeito dele, é algo que pressupõe os demais e, segundo a definição de Bakhtin, “dialogizado”. O próprio nervosismo de Prokhartchin é um nervosismo de expectativa de insegurança em relação ao outro. As palavras que utiliza, a mistura que faz (por exemplo) das formas de tratamento, são uma evidência disto[8].
   
Depois do primeiro encontro com Porfiri e do aparecimento do pequeno burguês misterioso com a palavra “assassino”, Raskólnikov tem um sonho no qual torna a assassinar a velha. Citemos o fim desse sonho:

Ficou um momento imóvel a seus pés. “Ela tem medo”, pensou, tirando de leve o machado do laço movediço, depois bateu uma vez, depois outra, na nuca da velha. Mas, coisa esquisita, ela não deu um gemido, com os golpes. Parecia feita de madeira. Ficou com medo. Debruçou-se mais e se pôs a examiná-la, porém ela abaixou-se mais ainda: olhou-a de alto a baixo. O que viu espantou-o. A velha ria. Contorcia-se num riso silencioso que procurava conter da melhor maneira possível.
De repente, pareceu-lhe que a porta do quarto de dormir estava entreaberta e que lá também riam. Ouviu um cochicho... A raiva apoderou-se dele... Pôs-se a bater na velha com todas as suas forças, mas a cada golpe de machado os risos e os cochichos redobravam no quarto vizinho e a velha, também ela, agitava-se com um sorriso convulso. Queria fugir, mas a sala de espera estava cheia de gente, a porta que dá para a escada, escancarada. No patamar, pelos degraus, por toda parte há gente. Todas as cabeças o fitam, tentando dissimular. Esperavam em silêncio... Seu coração contraiu-se. As pernas negam-se a obedecer. Parecem coladas no chão...
Queria gritar e acordar[9].

A análise dos sonhos de personagens dostoïévskianas realmente é complexa, exigindo, antes de tudo, a intuição que deverá iluminar os caminhos no sentido de desvendar os símbolos[10] e arquétipos[11] neles presentes. Assim, diz-nos Jung:

Muitas vezes, a natureza é obscura, sem transparência, mas ela não usa de artimanhas, como o homem. Por isso devemos acreditar que o sonho é exatamente o que deve ser, nem mais, nem menos: Quando representa alguma coisa em seu aspecto negativo, não há motivo para acreditar-se que isso deva ser interpretado no sentido positivo, ou coisa que o valha[12].

Os sonhos não são o único caminho que leva ao inconsciente, mas representam, na psicologia analítica, a via mais direta e mais segura.
Sendo o conhecimento de si mesmo intimamente ligado à vida interior, e esta, à alma, não é de surpreender que ele comporte diversos patamares, em conformidade com a profundidade que ele atinge na psique. Na verdade, todo conhecimento de si próprio conduz ao desapego do ego.
A compreensão precisa do “psicologismo” de Dostoïévski como visão realista-objetiva da coletividade contraditória das psiques dos outros leva conseqüentemente Kirpótin à correta compreensão da polifonia de Dostoïévski, embora ele mesmo não empregue este termo.
A autoconsciência enquanto dominante da construção da imagem do herói requer a criação de um clima artístico que permita à sua palavra revelar-se e auto-elucidar-se. Nenhum elemento de semelhante clima pode ser neutro: tudo deve atingir o herói em cheio, provocá-lo, interrogá-lo, até polemizar com ele e zombar dele, tudo deve estar orientado para o próprio herói, voltado para ele, tudo deve ser sentido como discurso acerca de um presente e não acerca de um ausente.
Quando as idéias de Dostoievski-pensador entram no seu romance polifônico, mudam a própria forma de sua existência, transformam-se em imagens artísticas das idéias: combinam-se numa unidade indissolúvel com as imagens das idéias (de Sônia, Míchkin, Zóssima), rompem o seu fechamento monológico e seu acabamento, tornam-se inteiramente dialógicas e entram no grande diálogo do romance em absoluto pé de igualdade com outras imagens de idéias (as idéias de Raskólnikov, Ivan Karamázov e outros).





[1] DOSTOIÉVSKI, Fyodor Mikhailovitch. O adolescente. Obra completa, vol. IV. Trad. Natália Nunes e Oscar Mendes. Rio de Janeiro. Companhia Aguilar Editora. 1964. pág. 310. 
[2] Bakhtin, Mikhail. Problemas da poética de Dostoievski. Trad. Paulo Bezerra. Forense-Universitária. Rio de Janeiro. 1981.
[3] DOSTOÏÉVSKI, Fyodor Mikhailovitch. O senhor Prokhartchin. Trad. Boris Schnaiderman. Editora Perspectiva. São Paulo. 1982. pág. 33.
[4] Idem, idem.
[5] INGRAM, David. Habermas e a dialética da razão. 2º ed. Trad. Sérgio Bath. Brasília. Editora Universidade de Brasília. 1994. pág. 94. 
[6] SCHNAIDERMAN, Boris. Dostoievski prosa  poesia. Editora Perspectiva. São Paulo. 1982. pág. 65.
[7] Idem, idem. Pág. 79.
[8] Idem, idem. pág. 73.
[9] DOSTOÏÉVSKI, Fyodor Mikhailovitch. Crime e castigo. Ed. José Olympio, Rio de Janeiro, 1951. págs. 291-292.
[10] Segundo Jung, os símbolos emanam dos arquétipos. O simbolismo é uma linguagem que, ao invés de palavras, usa imagens concretas, abstratas ou ideológicas para tentar revelar ao consciente o que ainda está oculto ou mesmo desconhecido, para tentar exprimir o que as palavras e a linguagem racional não podem atingir. 
[11] Segundo Jung, “arquétipo” nada mais é do que uma expressão já existente na Antiguidade, sinônimo de “idéia” no sentido platônico.
[12] JUNG, C. G. Psicologia do inconsciente. Trad. Maria Luiz Appy. Vozes. Petrópolis. 1978. pág. 91.

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