LUZES DE OUTROS ATRÁS - Manoel Ferreira


Querida Lívia (Livinha) Maureen Occi

Acabo de receber – dez horas da manhã; acordei às nove e meia; Luciana é que a recebeu do carteiro, estava eu no banho – a sua cartinha, acompanhada de um cartão de uma orla marítima no crepúsculo, com a sua letra miúda que lhe é tão peculiar, mostra-me bem os sentimentos ternos, carinhosos, grande sensibilidade, a amiga sensível de que muito me orgulho por ter como a maior de todas em todos os níveis; felizmente, não tenho qualquer problema de visão, leio com facilidade, caso contrário, iria precisar de lupa ou pedir a Luciana para ler; ela lê muito bem, cada palavra pronunciada por ela vem acompanhada de um sentimento, de uma emoção, gosto que leia para mim, mas em se tratando de você não me sentiria à vontade com a leitura dela, ela não re-produziria com perfeição a sua sentimentalidade, espiritualidade, só mesmo eu lendo iria senti-la no mais profundo de mim.
Para mim, a letra não re-vela a personalidade, caráter, e sim a sensibilidade e espiritualidade da pessoa, e a sua, querida Livinha, é em demasia sensível, sigo todos os seus contornos, até chego a visualizar você sentada na mesa do escritório, da sala de visitas, da cozinha, eivada e iluminada de sua intimidade, sedenta de re-velar os sentimentos puros e ternos que habitam o seu coraçãozinho, pensando em mim, em nossos encontros. Há um encontro de que nunca me esqueço: saímos de sua casa para irmos à igreja da Penha, iria eu viajar para Minas Gerais, retornar à minha terra. Fiquei dois dias hospedado em sua casa, dias inesquecíveis. Deixou-me na igreja, ajoelhado, rezando, dizendo que voltaria logo, não demoraria. Retornando, levou-me um caderninho com uma imagem de uma menina, de trança à Rapunzel, com um regador em mão, aguando o seu jardim, e uma caneta, dizendo-me que nele escrevesse o meu diário. Lendo as suas cartinhas, essa lembrança sempre me habita a intimidade. Visualizo-a traçando as letras na página branca de papel; interessante na pontuação dos “ii”: ao invés de um ponto normal, é uma estrelinha; nos “ii” das palavras, viajo ao céu e vislumbro de perto a luz das estrelas, no íntimo sinto-me feliz, alegre, as batidas do coração são de um homem quem ama a vida de paixão, quem sente profundo os prazeres inomináveis e indescritíveis de olhar o horizonte e uni-verso e sentir bem, sentir que existir é esplendoroso, magnífico, verdadeiramente mágico. Fosse poeta, escreveria poemas sentado numa das estrelas, pensando e sentindo você em mim, num lugarzinho muito especial de meu espírito, dizendo dos meus sentimentos de amizade, ternura, carinho, amor por você; infelizmente, Deus não me dera o dom de escrever poemas, de ser poeta; às vezes, rendo-Lhe graças por isso, o poeta mente muito, chega a mentir a própria mentira, quando acredito pensar ele ser a sua verdade.
Gostaria muito de lhe enviar uma cartinha manuscrita, mas a minha letra é horrorosa, um verdadeiro garrancho, ninho de guaxo, até eu próprio muitas vezes tenho dificuldades de lê-la, sinto-me envergonhado diante de sua letrinha tão linda e tão sensível. Fiz questão de comprar um caderno de duas linhas para escrever esta cartinha para você, será a primeira que receberá manuscrita; quero que você sinta profundo através de minhas letras traçadas nas duas linhas o carinho e o amor que nutro por você.  Quem vai rir a bandeiras soltas de mim é o Nandinho: “Lucas tirou sarro de minha cara por exercitar minha caligrafia em caderno de duas linhas por dois meses consecutivos; enfim, ele tomou vergonha, nunca vi letra tão horrível quanto a dele. Vivia me enchendo o saco por causa disso. Achava a sua linda, maravilhosa, diferente do comum dos mortais. Fico feliz por haver se conscientizado”.
Sempre que recebo cartas suas posso estar me sentindo triste, angustiado, enfim, sensível como sou, a mínima re-velação das coisas da vida toca-me profundo, já lutei muito contra isto, mas de nada adiantou, tive de assumir, sob protestos, que sou escravo de minha sensibilidade. A leitura de seu texto, os sentimentos e emoções que neles habitam, as mensagens de fé e esperança que se encontram nas entre-linhas, os seus desejos de harmonia, de paz, solidariedade e compaixão entre os homens, a sua vontade viva e presente de a humanidade ser em absoluto feliz, desfrutar alegrias, prazeres, não haverem mais guerras, violências, desrespeitos. Os seus desejos de minha eterna felicidade, incentivos, reconhecimentos, este seu amor e amizade por mim tão deliciosos – às vezes, pergunto-me no silêncio de meu espírito: “Meu Deus, será que mereço de Livinha esse amor tão verdadeiro, sincero?; ouço-a dizendo-me: “Os monstros se foram, sua amiga está aqui”, como se eu fosse uma criança e estivesse você me colocando para dormir – devolvem-me a vida de sentimentos puros, torno-me homem-espírito, homem-vida, torno-me criatura de Deus, o paraíso celestial habita-me profundo, vejo-me andando livre, descontraído, à vontade por todos os lugares do mundo, sinto o vento tocar-me o corpo, sinto no brilho do olhar o prazer do espírito. Sinto a sua presença ao meu lado, andando comigo, conversando, você falando de suas experiências, de suas leituras, de seus desejos e vontades, alimentando-me de mensagens cristãs e espirituais, como sempre acontecera em todos os nossos encontros, sempre saímos para passear pelas ruas e avenidas da Penha. Ouço-a dizendo a Nandinho: “Você me empresta o Lucas por uns minutos”. Numa das vezes que estive em sua casa, estávamos eu e Nandinho no maior bate-papo, e você entrava e saía da cozinha a todo momento, eu olhava e percebia, até que você falou: “Agora é a minha vez. Lucas, vamos dar uma volta". Senti-me tão bem, alegre e saltitante com você tendo ciúme de mim com seu “coroa” – deixe-me tirar este termo antes que imaginariamente ele me esgoele, depois de dizer: “Você é bem mais velho que eu. Você é que é “coroa” ”
Depois da leitura, não única, di-versas no mesmo dia, a intenção com  tantas é mergulhar bem fundo no seu espírito, na sua espiritualidade, a-colhê-la em mim, nos dias que se seguem tudo em mim vai sendo modificado, transformado, sinto-me até diferente de todos os homens, absolutamente feliz. O chão me falta de por baixo dos pés. Vivo num verdadeiro “sétimo céu”, na minha cabeça perpassam pensamentos e idéias sensíveis, tudo é mágico em mim, tudo são sonhos, fantasias, quimeras, razão e intelecto escafedem-se por completo.
Tive e vivenciei momentos sobremodo difíceis na minha vida; não saberia dizer-lhe com empáfia todas as minhas dores, como sofri, e você sempre esteve presente, enviando-me cartões, cartas, mensagens e mais mensagens de esperança, de fé, e, no final, após assinar seu nome, um post-scriptum – você nunca escreveu “post-scriptum”, mas uma espécie de -, “Maria Santíssima é sua mãe e amiga. Entregue em mãos d´Ela suas dores. Ela sabe o que faz. Você ainda será muito feliz, meu querido”. Não fosse  a amizade, carinho, amor de você, Nandinho, de sua mamãe, de seu filhinho muito querido, não sei o que teria sido de mim naquela época, creio que não teria superado os sofrimentos e dores habitantes de mim. Cheguei a escrever sobre o poder da amizade na vida dos homens, mas não tive coragem de lhe enviar, não sei escrever. Depois que eu terminei, disse-me: “estou dando uma de escritor; Meu Deus, que hipocrisia deslavada. Livinha vai é rir de mim. Nandinho, então, nem se fala. Eles querem que eu seja eu mesmo”. Fiquei só no diário, escrito no caderninho que você me presenteara, que tenho até hoje, doze anos depois. O caderninho acabou, comprei agenda. Adquiri o hábito de escrever diário. Luciana às vezes lê algumas coisas e diz, sorrindo: “Você escreve e muito bem, Lucas. Não assume, mas é um escritor nato. Por que não se dedica a escrever outras coisas, contos, crônicas. Sensível e perceptivo você é muito. Sarcástico, irônico, cínico”. Digo-lhe: “A poetisa aqui em casa é você”.
Sentindo-me angustiado, entristecido, desesperançado, se estava andando pelas ruas, sem destino, pensava em você, em Nandinho, lembrava-me de nossos encontros, das passagens de suas cartas – há uma que decorei: você nela falava da mineirada, de Lô Borges, Milton Nascimento, um verdadeiro poema. Você é que não deixa, mas bem que eu gostaria de pagar um espaço num tablóide para as pessoas conhecerem a poetisa que você é. Certa vez, eu li um memorial de um grande amigo meu, gostei tanto que lhe escrevi uma missiva. Não é que ele publicou?! Fiquei emocionado, verti algumas lágrimas de satisfação e felicidade. As vezes, encontro-me com amigos, e eles me cobram: “Lucas, por que você não escreve em jornais? Gostaríamos tanto de ler seus escritos”. Respondo-lhes: “Foi uma generosidade de Armando. Viu valores onde não têm quaisquer” -, con-templava suas letras, sobretudo as estrelinhas que acentuavam os “ii”. Se estava sentado à mesa de almoço, sentia você, dizendo-me: “Coma este alimento e pense no Pai-Nosso, ele é o seu pão da liberdade, o pão que saciará todas as suas fomes, que eu conheço e muito bem, e sei que as verá todas saciadas”.
Em todos aqueles momentos de minha vida, vocês estiveram sempre presentes – especialmente você, pois que me escrevia cartinhas, escrevia mensagens nos cartões. Nandinho não escreve cartas; bem, não sei, talvez não me escreva, pois já tirei muito sarro da letra dele. Não tenho uma única carta, só um cartão com a sua letra, de um lado a sua, do outro, a dele. Tenho dele mensagens escritas em livros que me presenteou. Nandinho não escreve cartas, não vai a Correios. Tem lá suas picuinhas interessantes. A minha picuinha interessante é não atender ligações telefônicas. Sempre que você ou Nandinho me ligam é Luciana que atende e me chama.
Livinha, é chegado o momento de terminar – faz três horas que estou escrevendo, tanto tempo assim não é devido à tentativa de caprichar nas letras, escritas em caderno de duas linhas, é que tenho dificuldades imensas de escrever, ademais meu espírito são só lembranças de nossos momentos juntos, saudades de você, muitas saudades, teria gostado muito de poder registrar tudo que me perpassou a alma, o intimo, enquanto estive escrevendo, mas isto é para escritores com muita habilidade com as palavras, sabe escrever não com a mão, mas com o espírito. Isto eu não posso. Afianço, contudo, que meus sentimentos de amor, carinho, amizade por você, Nandinho, Joãozinho e Fátima, sua mãe, são estes.
Termino com o final de um cartão seu: “Obrigado por seu amor”, Lucas Santiago.
 



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