SIMBILAR DE SOMBRAS NO TEMPO - Manoel Ferreira


A tristeza é que ficou no esquecimento dentro das sombras.

Por que razão -, tenho a empáfia de ser categórico com tais palavras, antes que me peçam qualquer justificativa; são frutos e sementes de experiências vividas - me hei de lançar a Providência Divina esta gota amarga na taça de meus êxtases, de minhas delícias? Se ao menos as ignorasse... as minhas alegrias e felicidades, assim digo de modo e estilo amplos, não seriam travadas de remorsos...

Isto de haver colocado reticências, “Se ao menos as ignorasse”, continuado, sem me preocupar com o iniciar com letra maiúscula, prejudicou um pouco o sentido, exigindo saber ler para que intimamente seja entendido. Necessitei de ler umas três vezes a fim de encontrar o modo de as tornar inteligíveis, e só depois inclui este parágrafo no sentido de um esclarecimento. Mas, a título de uma translucidez da idéia que se encontra nas entrelinhas, penso o melhor seria escrever esta frase de outro modo. Assim: “Se ao menos as ignorasse, não seriam travadas de remorsos”. Contudo, há dúvidas de se me refiro às palavras, às experiências vividas. Necessário identificar. Refiro-me às alegrias e felicidades. A intenção era de amplitude e não de redução. Se ao menos ignorasse as minhas alegrias e felicidades, não seriam travadas de remorsos. Modo e estilo amplos se fazem presentes.  
                Alegrias, felicidades!... Não há luar. A noite está clara. Quanto ao vazio das estrelas que luzem alguém deveria compará-lo com o simbilar de sombras no tempo, uma imaginação sobremodo fértil, realmente com esta imagem e com o início, isto de lançar a Providência Divina esta gota amarga, a tristeza que ficou no esquecimento das sombras, na taça de meus êxtases, delícias, é não ter qualquer limite na criação de metáforas, de imagens, e ainda mais com os questionamentos que perpassam.

A rua está deserta, o silêncio é profundo. Parece-me até um contra-senso estar a dizer de alegrias e felicidades e não haver luar, a noite estar clara, no céu, o vazio das estrelas que luzem. Não tenho sono. Esta é a verdade.Não deveria estar triste, infeliz, não tendo sono, estar encostado ao parapeito da janela de guilhotina, relembrando circunstâncias, situações, dores, sofrimentos de minha existência, quando não perscrutava nenhuma possibilidade de superação? Por que então dizer de felicidades, alegrias? As alegrias, felicidades se justificam porque, enfim, sinto-me um homem capaz, um homem forte, fui capaz de superar todas as dificuldades. Sinto-me um outro indivíduo, ouço o bater de meu coração de tanta exultação, de tanto êxtase.

Bom isto de ver a vida modificada. Perdi o sono devido a todas essas sensações, a todos estes sentimentos, a todas essas emoções; e, se me encostei ao parapeito da janela, foi com a intenção de contemplar a noite, de me sentir imerso nela, segui-la em seu itinerário rumo ao dia, rumo às luzes, rumo aos raios solares... Talvez amanhã faça sol. Tem chovido muito. Fim de ano. Normal a chuva. A diferença está em que outrora, aquando tinha insônias, era de muitas tristezas, angústias, um medo insofismável de nada realizar, de a vida não ter tido sentido algum, os sonhos terem sido em vão... Hoje, a insônia está sendo de alegria, de felicidade.    

Encontro-me de pé, encostado ao parapeito da janela, uma das cinco de guilhotina em minha residência. Ainda digo de flores e folhas verdes, não mortíferas, senão vivificantes, parecem alcatifar-me o caminho e convidar-me a descansar das mágoas, sofrimentos, dores.

 Que me importaria a melancolia da natureza, se dentro de mim encontra-se uma fonte de inefáveis alegrias, felicidades? Que me importaria ruas inóspitas, silenciosas, profundas? Que me importaria o vazio de estrelas no céu?

Abrira uma antologia de poemas de um grupo literário, aliás, nele havendo dedicatória de alguns poetas deste grupo, lera um poema, iniciando a vagar no tempo, uma sensação enorme de leveza, de  tranqüilidade... Fechei o livro. Recostei-me na cadeira, ficando alguns minutos pensando, refletindo.

Surgiu-me que há pontos obscuros nos meus sentimentos. Que gota amarga é esta que lançaria a Providência Divina na taça de meus êxtases, de minhas delícias? De acordo com estas palavras, seria a Providência Divina a lançá-la. Isto é totalmente absurdo, a Providência Divina em instantes de tristezas e infelicidades lançar-me-ia uma gota de vinho na minha taça.

Não consigo de modo algum descobrir o que há de errado em minhas palavras, na revelação dos sentimentos todos que me perpassam o espírito, a alma. Talvez seja por um embuste sem limites e fronteiras, enfim não estou a sentir-me alegre, feliz, tento sim é tripudiar, mentir-me para poder enfrentar a noite, não me desesperar por inteiro. Se investigo com perspicácia e destreza os últimos tempos de minha vida, não vejo qualquer coisa que me engane, nada de elevado, nada de espiritual, nada de realizações, tudo permanece igual, sem qualquer diferença, tudo inóspito, tudo sem sentido, tudo sem qualquer senso. Não. Estou convicto das mudanças e transformações, dos sentimentos e emoções que perpassam o coração.

Quem sabe o erro crasso na expressão de meu estado de espírito esteja no esquecimento da crase, ou seja, “Por que me hei de lançar à Providência Divina esta gota amarga na taça de meus êxtases, de minhas alegrias?” De início, até me parece mais nítida, a expressão me parece mais verdadeira, ou seja, não rogo e peço à Providência Divina a misericórdia, a compaixão, diante de minhas tristezas, infelicidades, sou eu quem necessita lutar para a transformação, a responsabilidade é tão somente minha. Sou homem quem pode lutar sozinho, tem força suficiente para enfrentar os antemãos e revezes da vida.

No entanto, continuo ainda sobremodo confuso com o sentido que desejei revelar, o sentimento que sonhava se tornasse translúcido, revelasse a profundidade de minha alma, de meu espírito. Posso até dizer que, em dizendo “confuso”, esteja sendo muito simples, e esta simplicidade esteja a esconder algo muito forte, muito presente, que eu próprio me recuso a aceitar. Em verdade, estou sim perdido com o que desejei expressar. O tempo não é mais que um sonho. Minha natureza se refrata em mil reflexos, em mil imagens, mas ela não pertence à ordem temporal. Sou um sonhador: eis a minha verdade e minha essência eterna.

Se ainda continuo a contemplar a frase que está a deixar-me assim, confuso e perdido, acho melhor isto admitir, talvez fosse mais fácil para desvendar o seu mistério, percebo a presença de um pronome oblíquo que poderia haver sido omitido, não é necessária a sua presença. Ao invés de dizer: “Por que razão me hei de lançar à Providência Divina esta gota amarga na taça de meus êxtases, de minhas alegrias?”, dizer: “Por que razão hei de lançar à Providência Divina esta gota amarga na taça de meus êxtases, de minhas alegrias?”.

Bem, o caminho de compreensão e entendimento se torna mais claro, límpido, nítido, após a lembrança da crase que estava faltando, a presença do pronome oblíquo que não se fazia necessária. Entretanto, ainda há algo que permanece inteligível.Creio que se trata da acepção do verbo “lançar”. Em princípio, mesmo pelo costume e hábito de saber apenas uma acepção das palavras, o que me surge, lendo, é que a acepção não é  “jogar, arremessar” e sim de “atribuir, imputar”. Quer dizer: por que hei de atribuir à Providência Divina – no sentido de torná-la responsável, culpada – esta gota amarga na taça de meus êxtases, de minhas alegrias? Aí sim tudo se torna claro. Não é desejo meu encontrar culpados e responsáveis por minhas dores, meus sofrimentos.

Agora, se não fizesse qualquer mudança na frase, se a deixasse como antes fora registrada, creio que haveria uma ênfase, um estilo de chamar a atenção para os estados de espírito que me perpassam. Embora tenha feito as modificações, a fim de poder compreender, entender, pois que me pareceu muito estranha a frase, creio que a deixarei assim: “Por que me hei de lançar a Providência Divina esta gota amarga na taça de meus êxtases, de minhas alegrias?”. Aliás, quanto à crase que pensei haver, em princípio, e, agora, após uma investigação mais pormenorizada, descubro que na acepção de “atribuir, imputar”, o verbo “ lançar” é transitivo direto e intransitivo, portanto não havendo qualquer crase. Quanto ao pronome oblíquo não há engano algum, e alternativo o seu uso, no caso aqui apenas para enfatizar.

Resta saber que gota amarga na taça de meus êxtases, de minhas alegrias, é esta. Refiro-me à tristeza que ficou no esquecimento dentro das sombras. Ela é a responsável por estar eu insone, encostado ao parapeito da janela de guilhotina, numa noite sem luar, apesar de sua claridade, o vazio das estrelas que luzem, embora esteja feliz, alegre com as mudanças e transformações de minha vida. Compreender a infelicidade de uma mulher com o falecimento de seu marido, as dores do filho, são coisas fáceis de se entender: se amanhã perder minha mãe, minha mulher, meus filhos, essas desgraças admito, comportam cerimônias conhecidas.

Com estas palavras, poderia fechar a janela, dirigir-me ao quarto, deitar. Se a tristeza ficou no esquecimento dentro das sombras, é quase que impossível traze-la à superfície, torná-la inteligível. Será agora um mistério. Contudo, não sou homem quem se entrega assim às impossibilidades. Necessito saber que tristeza é esta que ficou no esquecimento dentro das sombras.

Surgiu-me que um homem feliz, alegre, assistindo às suas realizações, intensificando ainda mais os seus sonhos e desejos, deseja sim compartilhar e partilhar com alguém muito íntimo, alguém muito amado e querido. É isto. A tristeza que me tomou se justifica por não ser possível a presença deste alguém íntimo, muito querido e amado.

Precisava saber de que se tratava. Descobri. A alegria e felicidade são imensas, plenas, agradeço a Deus por elas. Posso sentir-me presente, realizado, e isto é realmente um dom divino.                        

 

 

 























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