INDICE E ETERNA VERDADE - Manoel Ferreira



Ironia requer arte, requer arrebiques.
 Assim, creio e afirmo bom número delas são ridículas; ouvindo-as, pergunto-me como alguém pode não se importar com ser objeto de risos, chacotas mil. Quem sabe ser irônico, chamar atenção com suas ironias, deixa seus traços, são lembrados por todos, merecem consideração e reconhecimento; suas ironias servem de re-flexões, pensar a vida com acuidade, dar uma burilada nos comportamentos, atitudes, ações.
Há homens cuja maior virtude é a ironia, foram dotados dela, e mesmo em silêncio sepulcral vêem-se-lhes as ironias, até mais percucientes, perspicazes, as gargalhadas são inevitáveis, as lágrimas pujantes, dores atrozes. Não digo seja eu irônico, não creio haver sido dotado de espírito irônico, sei dizer as coisas e no jogo que faço com as palavras a ironia se re-vela com nitidez, os olhares de raiva me fixam. Por vezes, tento sê-lo, mas só consigo ser imbecil, o sentimento de ridículo toma-me inteiro, ouço risos até onde risos não há, vejo olhares escusos de todos os ângulos e perspectivas possíveis, o desejo é enfiar a cabeça na terra e não mais retirá-la, prometo-me não mais enveredar pela ironia, lembrar-me de que em boca fechada não entra mosquito. Sem tentar, sem esperar, eis que uma daquelas é dita por mim, tão espontâneo que o ouvinte se torna pensativo, começa a espremer os miolos à cata de entender e compreender as entre-linhas dela, e vai continuar fazendo-o por longo tempo. O que é espontâneo tem grandes valores, o que é forçado nada vale. Não sou espírito irônico, o jogo com as palavras é que me fizeram irônico. 
Tenho uma historieta para contar aos meus leitores, ou antes, uma narração para transmitir sobre o meu amigo Dumbá. Devo em primeira instância proceder ao retrato físico e moral dele; se não o fizer, cada um vai imaginá-lo de um jeito, vai traçar sua imagem como bem o aprouver, sei que os leitores têm imaginação mui fértil, só que isto prejudica um pouco; traçando-lhe o retrato, o leitor estará mais compenetrado na historieta mesma, vai compreender com mais percuciência.
Dumbá não é nem alto, nem baixo, o que é o mesmo de dizer que é de estatura mediana, um metro e sessenta e sete, a qual estatura é aquela que se pode chamar francamente elegante, em minha opinião, o leitor é que pode estar sem saber o que chamo de “francamente elegante”, se me refiro às vestes, se me refiro ao corpo. Possuindo um semblante de querubim, olhos pretos e profundos, o nariz descendente legítimo de árabe, a boca graciosa, a fronte larga como o verdadeiro trono do pensamento. Dumbá pode servir de modelo à pintura e de objeto amado aos corações de vinte e mesmo de vinte e cinco anos.
Dumbá tem um re-verso, como todas as coisas deste mundo de compensações, que é o re-verso da cara e da cabeça. A natureza sempre fora caprichosa, e neste sentido não é o amigo Dumbá quem o inspira, mas outro quem o diz, Duartinho: “Oh! quão caprichosa é a natureza! Ao mesmo que dá ao mundo Catherine Zeta Jones, dá uma Dercy Gonçalves”. Vou um pouco além da comparação de Duartinho, sou fã de carteirinha de Dercy Gonçalves, uma mulher de coragem, sincera, nunca teve medo do que pensa e sente, afrontou os militares com toda a pompa, e atrizes de Hollywood eu detesto, substituo o nome desta pela belorizontina Letícia Sabatela. A natureza se dividira para dar a Dumbá o que tinha de melhor e o que tinha de pior, e pô-lo na miserável e desconsoladora condição de pavão que se enfeita e contempla radiosa, mas cujo orgulho se abate e desfalece quando olha para as pernas  zãimbras, e para os pés achatados. Tais são os contras que a pessoa do meu amigo oferece a quem se extasia diante dos magníficos prós da cara e da cabeça.
No que tange ao moral, como é o aspecto de Dumbá? Todo físico requer um moral, todo moral requer um físico. Não tem quaisquer vícios, não bebe, não joga, não fuma, mas tem fraquezas de caráter que quebram, um tanto ou quanto, as virtudes que o enobrecem. É bom e tem a virtude angélica da caridade; sabe, como o divino Mestre, partir o pão da subsistência e dar de comer ao faminto com verdadeiro júbilo de consciência e de coração. Num velório, um mendigo chorava muito porque a falecida todos os dias dava-lhe o almoço, dizendo aos soluços, “minha amiga, nunca mais vou a casa da senhora na hora do almoço”. Dumbá sensibilizado com o choro convulsivo do mendigo, entregou-lhe em mão o seu endereço, a partir daquele dia podia ir à sua casa, teria o seu almoço quotidiano. Não consta, além disso, que jamais fizesse mal ao mais impertinente bicho, ou ao mais insolente homem, duas coisas idênticas, nos curtos dias da sua vida. Pelo contrário, conta-se que a sua piedade e bons instintos o levaram  a pular no pescoço de um cavalo de carroça tão sensibilizado com a surra que estava levando do carroceiro.
Só há que censurar em Dumbá as fraquezas de caráter, e deve-se que são filhas legítimas das suas virtudes. Outrora, Dumbá vendia as produções da sua musa, não por meio de uma permuta legítima de livro e moeda, mas por um meio desonroso e nada digno de um poeta. As vendas que fazia eram absolutas, isto é, trocando por dinheiro os seus versos, o poeta perdia o direito de paternidade sobre essas produções. Só tinha um freguês, era um sujeito rico, advogado de renome, um dos grandes oradores da cidade, maníaco pela fama de poeta, mais que desejoso de figurar na membridade da academia de letras, e que sabendo da facilidade com que Dumbá rimava apresentou-se um dia no modesto albergue do poeta e entabulou a negociação. Dumbá pô-lo para fora de sua casa quase a pontapés, mas, antes de sair pela porta, disse-lhe que a proposta continuaria de pé, dia mais, dia menos, iria procurá-lo, esperasse e veria.
Dumbá só guardava em si o que lhe interessava, o que poderia tornar-lhe outro homem; assim, esqueceu-se  no dia seguinte a aventura da véspera, mas os dias passaram-se e as necessidades mais que urgentes advieram-lhe com toda a pompa à porta com olhar suplicante e as mãos ameaçadoras. Após uma noite atribulada, insone, não sabia o que fazer de sua vida, como iria resolver ou amenizar a sua situação. Ele não tinha recursos. Lembrou-se do maníaco pela fama de poeta, e tratou logo de procurá-lo: disse-lhe quem era, e que estava disposto a aceitar o negócio – não é que o sujeito soubesse das fraquezas de caráter de Dumbá, sabia que o poeta vende o almoço para comprar a janta, isto quando tem o almoço, o poeta “vive nas nuvens e o estômago nas costas”, como dissera a um amigo, quando lhe contara que por um triz não fora jogado a ponta pés no olho da rua, diante de sua proposta. O maníaco, rindo-se com um riso diabólico, fez o primeiro adiantamento, sob a condição de que o poeta lhe levaria no dia seguinte um soneto.
A quantia que recebera dera pagar o agiota que havia lhe ameaçado de levá-lo à polícia e ainda dois quilos de feijão e arroz, meio quilo de carne de segunda. Dumbá passou a noite a registrar palavras sem idéias, estrofes sem sentimentos, versos sem sal, tal era o seu estado, e no dia seguinte levou a obra ao freguês, que a achou boa e dignou-se a apertar-lhe a mão. Breve, muito breve teria uma quantia suficiente de poemas para um livro, levar ao presidente da academia para a sua avaliação, se lhe dava condições de se tornar membro, desfrutar glórias de grande poeta.
Tal é a face moral de Dumbá. Justiça seja feita, embora não justifique as fraquezas de seu caráter, resistiu por algum tempo à proposta do maníaco de fama poética, e só foi vencido quando se achou com a corda no pescoço.
A mesa à qual Dumbá estava encostado era um velho traste e de modelo bem antigo, herdara-o de uma tia que lhe havia morrido fazia quatorze anos. Uma caneta “bic”, algumas folhas de papel, eis humildemente os seus utensílios de trabalho. Duas cadeiras e uma cama completavam a sua mobília. Quando Dumbá se engolfava em reflexões e fantasias era noite alta. A chuva caía com violência e os relâmpagos que de momento a momento rompiam o céu deixava ver o horizonte pejado de nuvens negras e túmidas. Dumbá nada via, porque estava com a cabeça encostada nos braços, e estes sobre a mesa; e é provável que também nada ouvisse, porque se entretinha em refletir e meditar nos perigos que estava à soleira de sua porta com a sua conduta de vender as produções de sua musa, perdendo a paternidade delas, morreria na miséria e no esquecimento.  E nesta angústia sem limites perpassavam em sua mente de modo ainda mais angustiante: “A vida só tem seu índice no cemitério”, estremecia; “só na sepultura existe a grande e eterna verdade”, calafrios seqüenciados na medula espinhal, as pernas zãimbras debaixo da mesa tremiam.
Quando voltou a si era manhã, a chuvinha continuava a cair. Dumbá conseguiu elencar duas idéias e tirar delas uma conseqüência, fica a critério do leitor julgar se trágica ou atroz, dois projetos se lhe apresentaram fortes, qual mais próprio a granjear-lhe a vilta de pusilânime; o primeiro concluía pela tragédia, outra pela asnada; triste alternativa dos corações não compreendidos, entendidos! O primeiro destes projetos era simplesmente deixar este velho mundo sem cancelas e porteiras; o outro limitava-se a sair pelo mundo a fora sem rumo ou destino, mendigando comigo, escrevendo seus poemas em papéis catados pela rua. O poeta Dumbá abandonou o primeiro por achá-lo funesto e definitivo: ser encontrado com a corda no pescoço no seu quarto; o segundo pareceu-lhe melhor, mais consentâneo com a sua dignidade e sobretudo com os seus instintos de conservação da vida, o homem mesmo é aquele que enfrenta todas as intempéries da vida e continua vivo para em poemas mostrar aos homens tudo passa, tudo passa.
Tomou da pena. Não iria escrever poema. O maníaco de fama poética podia comprar-lhe os poemas. Nunca  saberia de suas prosas. Os poemas dar-lhe-iam a sobrevivência. A prosa poderia dar-lhe outras oportunidades.

“Ando, ando, ando, não é só uma questão, é também uma realidade minha. E quanto mais o faço mais vejo estrada à frente. Apesar de haver andado centenas de léguas, parece-me haver sido nada, há muito ainda a ser andado, há muitas experiências a serem adquiridas ao longo das estradas, há sentimentos e emoções outras a serem vividas, há crescimentos e amadurecimentos a serem alcançados, em suma, há outra vida a ser sentida e vislumbrada.
Se as minhas pernas já não respondem aos esforços tantos que me são necessários, encontram-se cansadas, tenho de andar devagar se almejo empreender os objetivos? Não, não e não. Obviamente que há vinte anos atrás podia dar passos largos, quase correndo; muito andei, muito poucos resultados obtive. O jovem quer correr, esquecendo-se de que há tempo para tudo, nem as pernas são assaltos nele. Não era o meu tempo de obter resultados. Angustiei-me, quase me desesperei, medo de nada conseguir habitava-me os ossos até. Não me cansei, não me senti exausto e enfastiado, sabia ser mister persistir, sabia minha vida teria de ser realizada com muita labuta mesmo, nada me seria fácil, tudo me seria difícil, se me dessem a mão, seriam poucos.
O tempo de meus projetos serem efetivados, enfim, se me revela, sinto-o “presente e forte”; olhando as estradas que tenho que percorrer, as trilhas a serem pisadas, as veredas por onde pisar os pés, sinto-me disposto. Já passou este tempo de poeta na extrema miséria amarrar uma corda no pescoço, dar um tiro nos miolos. Tudo neste mundo é compensação: compenso a miséria de ser poeta com a esperança de ser um prosador eterno. Sinto que as estradas são bem mais longas e repletas de sinuosidades, aclives e declives. Se desejo mesmo a verdade de minha vida, tenho de esquecer as léguas andadas, andar mais outras tantas, ou mais ainda. Tenho consciência de que nas andanças da juventude obtive experiências e realidades. Cumpre-me servir delas, mister sê-las com dignidade e honra. A minha liberdade está em questão”.
Ponho o pé na estrada com o espírito de quem sabe o que deseja, o lugar específico que desejo ocupar, o que quero a minha vida ser.
Não me engano, não cristalizei as dores e sofrimentos, não as sublimei, disse-o de modo nítido no final de um soneto: “Caminho rumo à plenitude”. Quando o disse, pareceu-me ser frase de efeito, desejo de chamar a atenção. Não sabia, contudo, havia dito a verdade de meus sonhos, a verdade que seguiria perseguindo, a luta seria acirrada. Quem caminha rumo à plenitude sabe que ela não tem fim, a estrada é longa, nem sempre ela se manifesta e quando o faz deixa no íntimo ardentes questionamentos, dentre eles: “Será isto a plenitude?”, e a resposta é bem simples: “Não. Isto é apenas uma côdea de minha realização, até o pão há muito ainda”. O caminho rumo à plenitude é bem mais longo, a vida tem fim com a morte, o índice dela só existe no cemitério, a eterna verdade só na sepultura.
O que é a plenitude? Resposta simples: a busca do “ser”, o desejo do sonho tornado real, o ser-real e a realidade, ser requer a entrega absoluta, mesmo que tudo resulte em nada, mas ficam as experiências e vivências.
A minha verdade é andar, andar, andar... sonhos dentro de outros sonhos, desejos dentro de outros desejos. Antes do último suspiro, direi a mim próprio: “A plenitude precedia-me, mas como não podia tornar-me ou re-tornar-me à minha precedência, protelei-a, coloquei-a à frente de mim, teria de persegui-la, mergulhar-me nela...”.

O meu amigo Dumbá continuou a escrever suas prosas e poesias. As poesias vendia-as ao maníaco de fama poética, as prosas publicava-as em livro. O divino Mestre proporcionou-lhe participar de um concurso literário, ganhar em primeiro lugar, ver o conto publicado, editora o chamou para fazer parte do quadro de escritores.  Deixou de vender poemas. Superou sua condição financeira.
O maníaco de fama poética devido a uma paixão não correspondida foi encontrado morto em sua casa com um tiro no ouvido.      

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