(ENSAIO) - NATUREZA DA INVERSÃO DA DIALÉTICA - INTERPRETAÇÃO GENÉTICO-ONTOLÓGICA DO DEVIR - Manoel Ferreira



Tomando em consideração a questão a que nos propomos avaliar, a Natureza da inversão dialética – Interpretação genético-ontológica do devir1 faz-se mister em primeira instância compreender o devir humano nas perspectivas de análise marxista e marxiana, sem recusar a primeira, mas buscando conciliá-las.
O devir humano, na interpretação marxista, é apresentado como um “postulado” da vontade de Marx – em modelo ideal apenas.
A análise marxiana, no entanto, formula a determinação ontológica do ser social tendo com pedra basilar a individualidade e a dinâmica entre indivíduos e as estruturas sociais, que são elementos cruciais do processo autoconstitutivo do ser social. O caráter ontológico, segundo a visão marxiana, exerce uma dinâmica que se plasma a partir das determinações próprias da atividade produtiva social. Onde o devir perspectivado por Marx se apresenta como efetivação do caráter ativo dos indivíduos humanos.
A individualidade propriamente humana, resultante do devir autoproducente da humanidade, tem a própria realização humana como necessidade, ou seja, tem a totalidade de manifestação humana de vida como potência historicamente desenvolvida e, consciente, toma-a como objeto de seu carecimento. Marx ressalta que a realização total do indivíduo só deixará de surgir como ideal, como vocação, etc., quando a impulsão do mundo que suscita aos indivíduos o desenvolvimento real das suas faculdades tiver passado para o controle dos próprios indivíduos, tal como pretendiam os comunistas.
Faz-se mister, para compreensão e entendimento acerca da relação do indivíduo em particular, diante da história e do processo histórico, a que intenciona perder-se e encontrar-se, a consciência da existência “individual” e a consciência do “processo histórico”, avaliar o processo autoconstitutivo que caracteriza a dinâmica própria do gênero humano e determinar a distinção ontológica entre o homem e os puros seres orgânicos, em sua cabal radicalidade. 
Sartre, em A Conferência de Araraquara, lembra-nos com transparência, que, ao considerarmos o mundo sob a forma de compreensão, há objetividade total. Somos perfeitamente objetivos. Faz-se mister substituir as noções, o par subjetivo-objetivo pelo par interiorização-exteriorização. Só assim podemos situar-nos uns em relação aos outros.
“Compreender o gesto de um homem é interiorizá-lo ao mesmo tempo que ele o exterioriza e, necessariamente, é também, de uma maneira ou de outra, reexteriorizá-lo para que outros o interiorizem”. 

Dissemos anteriormente, sendo mister enfatizar neste nível, a intenção de Sartre no concernente ao seu monumental O Idiota da Família é a busca de compreensão do homem Flaubert. O fundamento desta compreensão reside na interiorização do homem Flaubert.
O que é isto, a vivência para nosso autor? O que ele chama de vivência é “precisamente o conjunto do processo dialético da vida psíquica, um processo que permanece necessariamente opaco a si mesmo”2.  Por que necessariamente opaco? Porque é uma constante totalização, e uma totalização que não pode ser consciente daquilo que ela é.
Sartre delimita a sua intenção primeira no concernente à análise da psicanálise e marxismo. É que o homem não é jamais um indivíduo. Tudo aparece centralizado na realidade individual considerada enquanto individual, ainda que o homem não seja jamais um indivíduo.
Entendendo a dialética a contradição como “necessidade” pertencente à própria “natureza do pensamento”, assim o faz porque a contradição pertence à própria natureza do pensamento, à realidade onde a Razão é ainda Anti-razão, e o irracional ainda racional.
O homem não vive apenas uma “natureza dialética” sempre fortemente condicionada pela materialidade objetiva: como sujeito cultural ele tem a possibilidade de viver ou de realizar uma “cultura dialética” que o distancia e liberta da própria inércia material e natural. E como sujeito histórico ele tem ainda a possibilidade de efetuar uma autêntica “inversão do campo da prática inerte”. Coletivamente empenhados numa “construção humana” da qual são (segundo a própria perspectiva antropocêntrica) os “únicos agentes”, os homens vivem um novo e complexo fato dialético (bem diferente da precedente dialética “constituinte” e a que Sartre dá o nome de “constituída”), fato do qual é agora necessário determinar as estruturas formais e a inteligibilidade.
Ressalte-se bem esta diferenciação a que Sartre chama a atenção: Dialética “Constituinte”, precedente, a que dá o nome de Dialética Constituída.
O “grupo”, a cuja análise é dedicada um das partes mais válidas de Critique de la Raison Dialectique, é a reação espontânea e imediata à “impossibilidade de viver” na serialidade 3 . Ao referir-se à gênese e fenomenologia inicial, Sartre mostra-se ainda ligado a princípios ativistas e a definições antinômicas resultantes mais do seu pensamento anterior do que de uma hermenêutica marxista.  
É compreensível, por via da análise, que Marx tenha explicitado as determinações fundamentais que embasam a posição essencialmente ativa dos indivíduos em face das categorias sociais. Esclarece a posição ativa dos indivíduos que efetiva como tendência essencial no processo autoconstitutivo do homem, a partir do desenvolvimento decisivo da atividade produtiva social.
O devir humano pauta-se pelo caráter ontológico do indivíduo, na interpretação marxiana, e essa ontologia é a categoria essencial na dinâmica instaurada a partir das características próprias do trabalho4.
Dá-se, então, o processo autoconstitutivo a partir da atividade produtiva em que o homem domina conscientemente a natureza. À medida que o homem cônscio transforma o meio onde vive, há uma modificação ontológica constituindo um ser diferente.
O caráter desta condição ontológica trata de indivíduos reais em sua ação e nas condições materiais de existência. Ser natural vivo, ser orgânico, biológico, que realiza intercâmbio com a natureza, a fim de satisfazer as carências orgânicas indispensáveis, como fundamento da existência.
Os indivíduos transformam, desta forma, a natureza exterior primeiramente, e daí passam a pôr-se em relação com objetividades recriadas por eles próprios, nas quais sua sensibilidade se transforma, se amplia, mudando-se também. Marx afirma que o homem não é apenas um ser natural: é um ser natural humano, isto é, um ser que é para si próprio e, por isso, ser genérico, que, como tal, deve atuar e se confirmar tanto em seu ser como em seu saber.
A partir de nossa intenção de estabelecer o fundamento do engajamento, faz-se mister apresentar que cada indivíduo na visão sartreana mantém a sua própria “reciprocidade mediata” com o Outro já não através de uma solicitação concreta e real, mas sim na base do ato formal do “juramento”.
No seu processo organizativo, o grupo tende, pois, a definir e a controlar a prática individual no quadro de uma prática coletiva. A razão é o télos da prática organizativa encontra-se na mediação que se procura obter entre indivíduo e grupo, entre liberdade e necessidade.
A concepção de Marx de o homem não ser natural tem, como base, o desenvolvimento do real processo da produção. Partindo da produção material da vida imediata, gera as formas das relações humanas ligadas a este modo de produção e esta gerada por ela.
Os homens, ao produzirem, na análise marxiana, estabelecem a sua propriedade ontológica e criam laços sociais. O caráter ontológico e as categorias sociais estão diretamente vinculadas à produção material. A atividade produtiva humana não se dá por ações de indivíduos isolados, mas somente com a interatividade de indivíduos sociais.
A essência do indivíduo humano é o conjunto de suas relações sociais, ou seja, ela se forma pela relação com os outros, razão pela qual o processo de humanização do homem e a formação da individualidade humana consistem no processo de humanização de suas relações5.
A argumentação de Marx é que, ao manifestar sua natureza, os homens criam, produzem a comunidade humana, a entidade social, que não é um poder universal abstrato oposto aos indivíduos singulares, mas a natureza essencial de cada indivíduo, sua própria atividade, vida, espírito, riqueza, como afirmamos desde a introdução, e aqui enfatizamos.
Em História e consciência de classe, Lukács concede um lugar importante à criatividade e ao poder de invenção do sujeito no devir histórico. Fazê-lo, era sublinhar com força a preeminência da totalidade sobre as análises setoriais ou parciais, rejeitando vigorosamente a assimilação do pensamento de Marx a uma “sociologia” de tipo positivista; era defender um historicismo radical, contra toda interpretação naturalista da vida social.
Nicolas Tertulian, em Metamorfoses da filosofia marxista: a propósito de um texto inédito de Lukács6 apresenta as razões porque os adversários de Lukács o acusavam de “idealismo” e de “subjetivismo”. Sublinha ele a preeminência da totalidade sobre as análises setoriais ou parciais, rejeitando vigorosamente a assimilação do pensamento de Marx a uma “sociologia” do tipo positivista. Em segunda instância, porque defendia um historicismo radical, contra toda interpretação naturalista da vida social.
Para a instituição de acordo com Sartre, o indivíduo enquanto tal deixa de ser essencial, sendo antes um elemento que é submetido sem piedade às finalidades gerais. A fenomenologia do grupo assinala o triunfo da “disciplina”, do “controle”, de uma renovada violência (sob a forma da “depuração”). Assinala ainda a afirmação da hierarquia, da burocracia e, sobretudo, da “autoridade”.
O objetivo seria a reconstituição de uma totalidade orgânica para contrariar uma crescente dispersão, assim se restaurando os vínculos entre os indivíduos do grupo agora “corroído pela serialidade”.
De posse das “estruturas elementares e formais” da prática humana e tendo determinado a sua inteligibilidade, Sartre pensa ser-lhe possível analisar concretamente a prática humana como história com o objetivo de verificar se esta tem um sentido, uma verdade que nela se vá intencionalmente realizando.
A totalização, em Sartre, dá-se claramente através de uma prática e em torno de um sujeito que não se encontra já no grupo e a ele já não pertencem: os indivíduos sentem-se unificados apenas através de algo que se encontra no seu exterior.  
João Quartim de Moraes, segundo Paulo Denisar Fraga, analisa a eficácia das leituras da teoria marxiana à luz dos desdobramentos dos movimentos revolucionários, polemizando com Ruy Fausto sobre a sua teoria da “antropologia negativa” em Marx e, por fim, refere-se a três escritos de Louis Althusser, para dizer que as questões neles colocadas sobre a natureza da inversão da dialética hegeliana por Marx ainda continuam de pé.
Wolfgang Leo Maar, tomando, como ponto de partida, a tese luckacsiana de que a categoria central da dialética é a totalidade, avalia as nuanças, limites e rearranjos da relação entre a dialética da reificação e a realização objetiva do trabalho, trama teórico-analítica pela qual procura refletir sobre os caminhos de Lukács para Marx.
O messianismo revolucionário lukacsiano imprimia ao seu discurso um dinamismo dialético autêntico, com uma valorização fecunda do par categorial imediaticidade-mediação, abrindo uma brecha na interpretação “cientificista” ou “determinista” do marxismo. Assim podia combater a interpretação “plekhanoviana” do marxismo que seus adversários, Rudas e Deborine, utilizavam e que, tratando o sujeito como um simples agente do determinismo objetivo, escondia a especificidade da ação do sujeito no interior da vida social.
Lukács, segundo Nicolas Tertulian, acredita ser possível fundar uma ontologia do ser social na idéia de racionalidade teleológica.
O devir autoconstitutivo da humanidade resulta da individualidade propriamente humana, tem a própria realização como necessidade. A totalidade de manifestação humana de vida como potência historicamente desenvolvida e consciente. A consciência manifesta-se para o indivíduo como objeto de seu crescimento. A realização total do indivíduo, segundo Marx, não vai ser como um seguimento ideal da parte do indivíduo quando o desenvolvimento real de suas capacidades estiverem como controladores, regentes de suas próprias faculdades os próprios indivíduos. Quando o estímulo do mundo que suscita os indivíduos estiverem ao controle dos indivíduos.
Sartre pensa ser necessário reconstituir uma ontologia ou uma antropologia dialética na qual a compreensão seja exigida a cada instante, a cada instante o projeto da pessoa sob forma concreta e real apareça. É preciso mostrar a partir da alienação o projeto. Mostrar como um homem inteiramente alienado que reencontra sua força de trabalho como força inimiga, como diz Marx, é livre, livre para nada. É livre simplesmente pelo fato de que é sua ação que se aliena em suas mãos, a ação que faz, que quer fazer. De maneira que, vendo retornar a força de trabalho como inimiga, é a sua própria liberdade alienada que ele vê retornar a si. 
 O processo autoconstitutivo – característica própria do gênero humano como distinção ontológica entre homem e animal – faz com que o homem tome consciência de sua participação no processo histórico. Visto que, para Marx, o homem não é apenas um ser natural: é um ser natural humano, ou seja, um ser que é para si próprio e, ser genérico, que enquanto tal deve atuar e se configurar tanto em seu ser como em seu saber, caracterizando o homem pela sua busca, pela sua realização embasada na liberdade como desejo e vontade.
O devir humano como perspectiva, projeta a objetivação das categorias essenciais do homem por intermédio da reapropriação consciente e ativa por parte dos indivíduos associados de sua própria interatividade, de suas forças produtivas e de suas relações sociais. A propriedade privada superada, o indivíduo tem a capacidade de se estabelecer como indivíduo autêntico. Assim como a sociedade produz o homem como homem, assim ela também é produzida por ele. A atividade – como o modo de existência individual – é social.
Neste sentido, em Sartre no Brasil – A Conferência de Araraquara, concede-nos a idéia-chave da possibilidade de síntese da visão existencialista e a marxiana, dizendo:
“A verdade, portanto, é que nosso trabalho não consiste em insistir indefinidamente sobre o projeto, sobre a natureza da liberdade, sobre a necessidade (besoin), sobre o conjunto das coisas que fazem a condição humana”7A individualidade humana tem a sua aspiração à realização dos potenciais a serem conquistados por se tratar de indivíduos ativos e conscientes – que Marx denomina de protagonistas do processo histórico. O devir humano se pauta por esta característica em que o indivíduo faz parte do processo histórico com suas determinações essenciais.
O devir humano, portanto, é  a produtividade, tanto com o que os homens produzem quanto como a maneira pela qual produzem.
Quanto ao resumo final de Sartre das perspectivas de integrar existencialismo e marxismo, podemos perceber nitidamente que os que lamentaram a suposta liquidação do existencialismo e falaram que Sartre havia sido “engolido pelo marxismo” não possuíam qualquer base concreta para tal tipo de opinião8 .


NOTAS

1 Mister tomar em consideração a intenção em analisarmos a natureza da inversão dialética se insere no contexto de uma busca de fundamento da questão da totalidade, um dos objetos de nossa análise, enfim compreender e entender a conciliação da visão existencialista e marxiana, já que a marxista acaba num falhanço, justa porque o marxismo não apresenta a categoria da individuação e personalização. Neste sentido, apresentamos: “a pluralidade dos sentidos da História não pode se descobrir e se colocar por si, senão sobre o fundo de uma totalização futura, em função desta e em contradição com ela”. É com a visão marxiana que começa o entendimento da visão sartreana desta conciliação, aliás, fundamentada no devir humano.   

2 BORNHEIM, Gerd. O Idiota e o espírito objetivo. Editora Globo. 1980. p. 15.

3 – Referimo-nos à situação a partir da qual (ou contra a qual) o grupo se forma. Trata-se da situação constituída pelo conjunto de unidades práticas (homem/coisas) que circundam o sujeito, situação na qual os indivíduos, além de estabelecerem relações de reciprocidade e de entendimento, formam uma simples “coletividade”, uma “multiplicidade discreta” de seres humanos, uma “pluralidade de solidões” não relacionadas entre si e num estado de maior ou menor hostilidade. O “modo de ser” destes indivíduos congregados apenas por relações formais extrínsecas  é definido por Sartre como “serial”.

4 A ontologia sartreana acerca do devir humano,  quando a interioridade e exterioridade não carecem de separação, pois se encontram conciliadas, é fundamento do “engajamento”.

4 É importante ressaltar nesta dialética que, em se tratando de homem-natureza, esta constitui a base econômica. Esta base econômica está ligada à visão marxista. Enquanto que pensar-agir está relacionado a individualidade, e é nesta individualidade que a visão marxiana coloca o seu apoio para sustentar o processo histórico. Não meramente atribuindo este processo histórico a partir da base econômica, como vê o marxismo. 

5 FERREIRA, Manoel. Alteridade do Outro em Sartre – Uma leitura do outro e o olhar em O Ser e o Nada. Gráfica Urgente. 2003. p. 20

6 TERTULIAN, Nicolas. Metamorfoses da filosofia marxista: a propósito de um texto inédito de Lukács, in Crítica marxista 13. Boitempo Editorial. 2001. p. 39

7 SARTRE, Jean-Paul. Sartre no Brasil – A conferência de Araraquara. Edição bilíngüe. Paz e Terra Filosofia. Unesp. p. 93

8 “Assim, a autonomia das pesquisas existenciais resulta necessariamente das qualidades negativas dos marxistas (e não do próprio marxismo). Enquanto a doutrina não reconhecer sua anemia, enquanto fundar seu Saber sobre uma metafísica dogmática (uma dialética da natureza), em lugar de apoiá-la na compreensão do homem vivo, enquanto rejeitar como irracionais as ideologias que – como o fez Marx – querem separar o ser do Saber, e fundar, em antropologia, o conhecimento do homem sobre a existência humana, o existencialismo seguirá seu próprio caminho de estudos. Isto significa que procurará esclarecer os dados do Saber marxista por conhecimento indireto (isto e, como vimos, por meio de palavras que regressivamente denotam estruturas existenciais), e engendrar, no quadro de referência do marxismo, um verdadeiro conhecimento compreensivo que redescobrirá o homem no mundo social e o acompanhará em sua práxis – ou, se preferir, no projeto que o lança em direção dos possíveis sociais a partir de uma situação definida. O existencialismo aparecerá, pois, como um fragmento do sistema caído fora do Saber. A partir do dia em que o pensamento marxista tiver assumido a dimensão humana (isto é, o projeto existencial0 como fundamento do Saber antropológico, o existencialismo deixará de ter qualquer razão de ser. Absorvido, superado e conservado pelo movimento totalizante da filosofia, ele deixará de ser uma investigação particular e se tornará o fundamento de toda investigação. Os comentários que fizemos no decorrer do presente ensaio visam – nos limites modestos de nossa capacidade – a apressar o momento dessa dissolução”



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