ÁGUAS DE OUTROS ATRÁS - Manoel Ferreira



“(...) esperança de que dia surgirá em que o consórcio moral das criaturas se realizará ante  o trono de Deus, deve ser a grande esperança dos que ficam e dos que se vão.”
Machado de Assis


Entra-me o sol vivo e ardente pelas frestas da veneziana, deixei-as abertas para entrarem os ventinhos da madrugada, muito calor está fazendo nos últimos tempos. Calor não falta, é o que mais faz aqui. É a nossa maior riqueza. Se os raios de sol dessem dinheiro, os curvelanos seriam riquíssimos, o político não iria precisar enfiar a mão no cofre público para construir mais uma pequena mansão na Paulo Frontin ou na Soares dos Santos, as ruas entupigaitadas de pessoas colhendo raios de sol, e os poetas teriam muitas inspirações para a poiésis do numinoso, oportunidade sui generis de encherem os bolsos de dinheiro, poemas de grande beleza seriam compostos, mas enquanto os raios de sol não são colhidos para comercialização, contentemo-nos com as mediocridades versificadas, e são tantas que rimam “águas” com fráguas. Se tivéssemos mar, o turismo enriqueceria a cidade, e também os poetas enriqueceriam seus poemas com as águas de outros atrás.
Parece o sol vivo e ardente convida-me a deixar o leito de penas e idílios, e como que re-vivê-lo. Re-vivê-lo! é esta a palavra, sem mais a colocar, sem mais a dizer. Por que re-viver? Por que não viver na carne e nos ossos a vivacidade e ardência do sol? Certo é que não me adapto ao calor, o desconforto não tem limites – sempre, após o verão, vem-me a toda pompa a digníssima fluenza. Quando estou certo de que poucos dias ou apenas horas me separam da sepultura, é mesmo reviver o sol vivo e ardente. Enterrado e selada a eternidade, restar-me-ão sombras e trevas. Será que elas são frias debaixo da terra? São elas tão abstratas no mundo que não as sinto quentes nem frias. Nunca ouvi dizer, nunca li a este respeito. Ninguém ainda re-tornou para dizer do frio das sombras e trevas no túmulo, um clima sobremodo agradável. Clima agradável e odor intragável, insuportável são duas coisas que não se encaixam: a solução é virar cinzas, elas nada sentem.
Não parece um escárnio da morte? Com efeito, nem é questão de imaginar a decomposição de meu corpo ser a minha problemática com a morte, a não-existência de outra vida após a morte ser a contradição de minha fé em Deus, isto é, a ressurreição que nos prometera aos homens, é não entender os seus mistérios em vida, morto não mais existirão, vou pensar que perdi tempo precioso com questionamentos e elucubrações, deveria ter aproveitado cada instante de meu viver com outras águas atrás. Os mistérios da vida também não os entendo, contudo posso perquirir, questionar, refletir, mesmo que não os des-vende colherei frutos deliciosos, chupar-lhes-ei até à semente, por todo sempre do além ouvirei os louvores.
Não parece que para melhor sentir a vivacidade do sol, a sua ardência paradoxal e absurda, o que perder, deixando a vida, o mundo, o calor curvelano de trincar os ossos, quer a morte que eu toque pela última vez os tesouros da felicidade que me ficam na terra? Melhor fora, decerto, para minha sublimidade e contrição, que a natureza me surgisse nos últimos dias com seu aspecto sombrio e aflitivo; esplendorosa e magnífica, sentir-me-ia acintado, negligenciado na sensibilidade: por que não me surgiu nos idos tempos da juventude à maturidade. Sombria e aflitiva a natureza, cuidaria, ao sair do mundo, que deixava um pesadelo e uma angústia, e que ia respirar os ares puros de uma vida sem igual. Esplendorosa e magnífica, sentiria e pensaria, ao me despedir da vida, que deixava um sonho e uma alegria, e que ia respirar os ares imundos do limbo.
Oh! como o dia está bonito! O céu azul, o sol afogueado, a folhagem palpitando de alegria agita-se ao sopro de um vento plácido e suave. As trepadeiras enchem-me o quarto de perfume, que belo prazer para o olfato perfume das flores na aurora de um novo dia, com um sol de torrar as varizes, cozinhar os miolos; lá vejo o tanque calmo e límpido em que eu me banhava em pequeno, não sei dizer se as minhas sensações não estão in-vertidas, mas o calor e os raios de sol na época de minha infância eram bem mais fortes, o que teve como conseqüência plantar árvores e mais árvores por todos os lugares, tornou-se a cidade mais arborizada dessa Minas Gerais. É o mesmo ainda, diria até que na atualidade mais contundente, as hipocrisias e farsas têm o poder de aumentar a temperatura.
As paredes de pedra têm um aspecto mais venerável, mas tudo isso, aquela murta que o rodeia, aquelas roseiras que ali brotam e enfloram sem cuidado de ninguém, tudo isso me lembra o tempo de minha meninice. Vejo a jabuticabeira grande, onde eu passava as tardes lendo Machado de Assis. As águas da torneira do taque, as árvores, a flor, tudo me lembra a dita do tempo em que, sem cuidados nem remorsos, eu só cuidava em ser feliz, sonhar com  as letras e suas glórias, e amar os meus.
Onde foi agora esse tempo? Onde foram de outras águas atrás os minutos e segundos do relógio de pêndulo suspenso na parede da sala de visita, quando contava os tique-taques, imaginando o futuro de alegrias? Onde foram as águas de outros atrás, quando sentia presente alegrias inomináveis com o inverno, a primavera, então esta me extasiava sobremodo, dizia que me sentia no “sétimo céu”? – naquela época o “sétimo céu” estava na moda, para dizer de uma felicidade enorme usava-se dizer “estou no sétimo céu”, creio que esta expressão surgiu devido à revista Sétimo Céu. Passaram como passaram as folhas dos arbustos; mas os arbustos, se perderam umas ganharam outras, e nem houve, neste abençoado clima sertanejo, espaço algum entre a queda das primeiras e o abrir das últimas. Só em mim, ilusões e esperanças que me caíram uma vez, não me renasceram mais, e eu fiquei – não poderia deixar de sê-lo, enfim o destino é a soma das folhas caídas e a promessa de outras ao longo do caminho – como tronco árido e seco, chorando o que fui, vertendo lágrimas do que sou, lacrimejando o que hei de ser. 
Mas o que dói, o que é sofrido em mim, o que me dilacera o íntimo, o que me fere os tímpanos e retinas, é a alegria universal, a placidez com que a natureza vem assistir à minha morte, garrida e alegre, como se fora um espetáculo dos mais circenses, as lágrimas do palhaço Osvaldo despertaram nas crianças a risada pura e cristalina, e no mesmo quadro as risadas dele causaram nelas choros compulsivos. Isso é dom e talento. Os adultos louvaram de pé a sua grande representação.
Ó mãe cruel, que não honra o traspassamento de seus filhos com uma lágrima de dor e um suspiro de mágoa. Parece, não o sendo, não saberia quê, que lhe apraz criá-los para matá-los, produzi-los com uma ilusão, compô-los com uma sorrelfa de férteis razões do tempo e das verdades, ab-sorvê-los com um engano, assimilá-los com um erro, engoli-los com uma dúvida, verdadeira condenação dos que não aguardavam o desengano, não esperavam os erros, não contavam com as frustrações e fracassos, e acreditaram na ilusão e nos idílios...
Também eu lhe mereci esta ironia, melhor dizendo, cinismo do tempo e de outras águas atrás? Também, e não tenho qualquer pejo ou orgulho de afirmá-lo com todas as declinações dos verbos latinos e dos sufixos gregos. Que outro ab-sorveu mais a ilusão das sorrelfas do que eu? Que outro sorriu mais à idéia do desengano do que eu? Que outro tirou mais sarro dos brios que se ostentam transparentes na face dos imbecis e caguinchos.  Ninguém houve que o fizesse, não haverá outro que o faça em tempo algum. Há coisas, atitudes e ações que são de uma única pessoa, outros jamais serão capazes de imitar, parodiar, plagiar. Estas atitudes, gestos estavam destinados a mim, realizei-os.
Tem direito, ó natureza, - quem sou para lhe contestar os méritos e valores, para lhe negligenciar os dons e talentos? – a vestir hoje as suas melhores e magníficas galas para assistir, na acepção de estar presente, não a morte da alma, essa  já morreu e se esqueceu de quedar-se, mas a do corpo, que se vai finar miseravelmente como um inseto pisado pela dama dispersa, pela rainha distraída, pela deusa perdida.
Sinto-me fraco, vivenciei labutas atrozes por toda a vida, por mais que seja deleite, por mais que seja satisfação, por mais que seja re-velação de felicidades registrar nestas linhas de entre-linhas escusas e espúrias, não me sinto em condições de continuar a descrever ou narrar, não sei, a continuidade desta manhã de sol vivo e ardente, que precede os últimos dias de minha vida nestas utopias sertanejas do brio e dignidade.
Esta poltrona antiga, forrada de couro cru, molde antigo, foi de meu finado avô, nela sentava-se e maquiava-se antes de seus espetáculos, descansava-se depois, mirando no espelho os seus gestos e atitudes, brincadeiras, que ocasionaram na alegria das crianças e nas lagrimas dos adultos. Feliz homem que pôde chegar à mais avançada idade e só morrer quando o mundo lhe começava a ser em demasia pesado. Todas as glórias da vida, e tantas que a razão não tem competência para elencar, gozou-as na plena liberdade de um espírito que se não acovardava, que se não pejava, e de um coração que não dava atenção aos palhaços fazerem rir a todos, sem limite de idade ou sofrimentos, mas no camarim choram as dores e angústias. A impavidez serviu-lhes de amparo, consolação; com essa segurança inteira é que atravessaram os anos, sem nada deixar do que levavam, porque também levavam muito pouca coisa.
Tenho diante de mim um espelho. Tão logo me levantei da cama, dirigi-me ao banheiro, lavei os meus membros, pus-me frente ao espelho. Vejo nele re-fletida metade do corpo; tenho vontade de ir ver o resto. Que feições apresentarei hoje? Serão as mesmas desoladas e entristecidas de ontem? Serão as mesmas animadas e vivas de anteontem? Serão as mesmas esperançosas e alegres de há quatro dias? Uma ou outra coisa, que importa isso? A agulha da morte sinto eu dentro de mim aguda, dilacerante, mortal... Que valem as feições? Que valor podem ter? Esperanças ou terrores para o moribundo, sintomas ou provas para a ciência. Nada mais.
Sinto passos. Abre-se a porta. É o meu amigo de tantas águas  de outros atrás. Veio visitar-me. Trocarmos algumas palavras de nosso passado juntos, nossos diá-logos acerca da vida e dos sonhos, nossas discussões acirradas sobre as intempéries e sofrimentos, para ele eram húmus de outros horizontes, para mim a presença incólume da incompetência dos homens de se libertarem.
- Ah! é você Henrique!
- Como está passando hoje? Está melhor?
- Não sei. Talvez que sim.
- Deixa dar-lhe um abraço; está muito melhor... Olhe-se ao espelho.
O espelho res-ponde-me como meu amigo Henrique. Estou muito melhor; minhas feições são outras, há um brilho nítido nos meus olhos. Como que re-nasço. Principalmente esta visita de meu amigo é que me dá vida... Oh! se eu morresse longe dele! Tudo se altera, tudo se corrompe, tudo se desnatura, mas o amor daqueles que nos dera o ser, esse nunca; é o amor por excelência; o amor que preside aos sonhos, re-vela na vida os desejos mais recônditos, ama na mocidade e consola nas desilusões como estas em que me vou do mundo. Dera-me Henrique o ser com uma idéia que assimilei por completa, trago-a no íntimo até hoje, e sempre que me vem à consciência sinto-me outro, dis-posto a aprofundá-la mais e mais, não ser apenas realidade de minha vida, mas o real insofismável.
Tudo se alegrou à entrada de Henrique. Lembrou-me de quando chegava a minha casa, tirava os meus livros do lugar – saindo, tinha de recolocá-los a todos em seus devidos sítios, para quando necessitasse de um não tivesse de revirar a estante de cabeça para baixo para encontrá-lo; sempre tivera problemas em encontrar as coisas -, folheava aqui, ali, dizia algumas coisas interessantes, passávamos manhã inteira ou tarde inteira conversando, assuntos não nos faltavam, terminava um, iniciava outro, e por mais que possa parecer estranho, mas havia uma linha que os ligava, e se pensasse depois de nosso encontro em tudo que conversamos veria com nitidez a mensagem de vida e esperança existente neles. Coitado! Tem as feições entristecidas, circunspecto, os olhos vermelhos de chorar: foi por mim, diria que algumas lágrimas que lhe desceram o rosto teve de enxugá-las, antes de entrar em minha casa, não queria ser visto por mim com lágrimas nos olhos, iria deixar-me entristecido, tudo o que preciso é de alegria e felicidade, os visitantes levantarem o meu moral.  Lágrimas sinceras as que verteu. Nelas, eu creio. Saltam livres e espontâneas dos olhos quando o coração já se encontra sobremodo cheio; e só corações tais se podem  encher desse modo.
Olha-me. Talvez se lembre de quando esteve em minha casa, estando eu acamado, não podia mexer-me na cama, problema de coluna. Esteve comigo por alguns minutos, não conseguiu mais, sentia-se incomodado comigo na cama, estava acostumado com a minha inquietação, jovem mais que ativo. Despediu-se, prometendo retornar em dia outro. Só apareceu três dias depois, não tendo deixado de ligar para saber notícias minhas, quando já podia sentar-me na cama, caminhar até o banheiro com alguma dificuldade. Demorou-se mais, comentando com alegria jovial haver lido com carinho o livro que lhe presenteei, se não me engano de Tolstoi, A morte de Ivan Illitch. Parece que procura adivinhar nas minhas feições a hora da nossa eterna separação! Não, não nos abandonemos à dor; a mesma separação pede agora toda a efusão dos sentimentos, toda a expansão das almas...
- Você não sente vontade de dar umas voltas, entrando e saindo de ruas, como fazíamos há muitos anos atrás, conversando, rindo, preocupados em responder aos nossos questionamentos?
- Sim. Gostaria...
- Não quer fazê-lo agora. Prometo que andarei bem devagar, você segurará no meu braço. Podemos conversar muito.
- Ah, não, Henrique... Estou muito fraco. Não estou indo nem ao banheiro sozinho. Preciso da ajuda de minha enfermeira. Aqueles tempos já se foram, Henrique. O importante é que as lembranças nos habitam o íntimo.
- O que gostaria de fazer, hoje?
- Quero passar hoje o dia inteiro no meu quarto. É dia de descanso. Quero hoje viver no pleno repouso do espírito. Ademais, esta janela põe-me em comunicação com a natureza. Acordei com os raios do sol na veneziana. Como está bonito o dia!  Já fiz a minha saudação ao sol. É bom sinal o sol. Você, quantas vezes, me disse sobre o numinoso, com idéias lindas, com sentimentos esplendorosos, com mensagens cristãs as mais divinas. Eu sempre o adorei como o olhar profundo de Deus. Ele basta para me dar vida. Não morrerei hoje, decerto. Hei-de morrer no dia em que alguma nuvem cobrir o astro do dia. Então as sombras me levarão às sombras. Acredite.
- Oh! não fale em morrer.
- Ser-lhe-á difícil a minha morte, não? Compreendo. Tantos anos de amizade, tantos anos de sinceridade e lealdade, tantos anos de questionamentos e buscas do eterno e sublime. Mariinha outro dia me ligou, pedindo-me para persistir na vida, querer viver mais longos anos, será muito difícil para ela, para vocês todos.
- Pois é...
- Já estou sofrendo muito, Henrique. Este câncer no pulmão tirou-me todas as energias.
- Se houvesse nos ouvido, a mim e a Mariinha, em parar de fumar. Engraçado isto, você fez tudo o que quis, conseguiu realizar coisas bem difíceis, mas o cigarro não foi capaz de largar. Veja o seu cinzeiro, está cheio de tocos de cigarros.
- Não tive força de vontade para isto... Olhemos a morte como ela deve ser olhada: livramento e não aniquilamento.
Silenciamo-nos. Passei a olhar através da janela, o azul do céu naquela manhã. Na transparência das angústias e tristezas, de palavras falsas e mentirosas, a alma-solidão me parece mais profunda do que as águas límpidas do rio, passando ao lado do sertão, sendo inspiração de poetas e prosadores: a lua iluminando na superfície o movimento de passagem, de travessia, as águas seguindo os desígnios, re-flete no coração a poesia que embala; se ofereço as águas para saciar a sede do espírito, é que são leitmotivs para o sonho do eterno sublime. Sinto as águas passando-me na intimidade, na fonte de meus sentimentos de sensibilidade outra, seguem as veredas do rio especial que fora criado para eles, deixando na pó-eira das estradas os seus traços, e atrás outras águas vindo, passando, e nos versos do poeta a estesia e arrebiques das quimeras e fantasias. À luz de sentimentos e emoções, ideais de canduras e pureza, re-cria sendas, tece caminhos de busca e desejo, e morre na praia  de seus idílios, antes mesmo de entrar na água, entre nado e mergulhos profundos, põe-se a seguir até chegar à lua no horizonte.      
São as sensações e intuições que estou sentindo, enquanto penso, olhando as nuvens azuis do céu límpido e transparente desta manhã, o amigo Henrique sentado na poltrona ao lado de meu leito, como seria interessante estar desenhando letras nas linhas de papéis sem margens, esquerda e direita, sem margens de ambos os lados, ímpio de merecer as glórias do tempo e sorrelfas, pois que mostraria a mim os senões de ermas ilusões, as poeiras que escondem as pedrinhas redondas na terra seca, mostraria a mim todas as coisas que me habitam, quiçá acreditasse são o que irá fecundar os séculos e milênios vindouros, e não simplesmente cinzas misturadas à terra, que cobriu os restos mortais de uma esperança.
- Você não gostaria de escrever um poema? – pergunta-me o amigo Henrique; não me assusto com a sua pergunta, sabe ler com perfeição os meus pensamentos – Há alguns meses que não toma da pena para uma única letra.
- Não consigo segurar a caneta, meu querido... Tremo muito.
- Se ditasse, eu escreveria para você com muita alegria e satisfação.
- Quer ter consigo como lembrança minha o meu último poema, que guardará com muito carinho. Você leu tantos poemas meus, de alguns tem mesmo muita admiração. Os que tinha de escrever já estão escritos; com muitas dificuldades consegui pro-jetar-me, os professores não liam minhas obras, se alguém comentasse sobre elas viravam a cara, torciam os narizes, desconversavam, tudo porque dissera numa entrevista que professores não me ensinaram nada, não tinham competência para isso. Se os alunos conhecem alguns poemas meus é por influência dos pais. Provei com dignidade que nenhum artista, poeta ou escritor, precisa das interpretações dos professores, não precisa de suas palmas, isso é dos leitores, eles é que fazem nossas vidas. Se os professores estudassem com seus alunos as minhas obras, com efeito só ouviriam deturpações, adulterações, tudo conforme suas ideologias e interesses escusos. A minha obra não teria tido valor algum. Só muito mais tarde, quando não sobrasse nenhum deles no mundo, outros iriam descobrir os seus valores estéticos, sensíveis e transcendentais. Cumpri meus desígnios, realizei a vida, deixo agora para os talentos novos. É hora de partir, deixar o espaço para outros. Nada mais há o que ser escrito, meu querido. Desculpe-me frustrar os seus desejos, é quase como o seu último pedido a mim, é você aqui quem o faz, eu não teria nada a pedir senão que seja muito feliz e realize os sonhos que ainda não foram como idealizou, e que conheço bem.
- Deixe de besteira. Vamos mudar de assunto.
- Se revelo quem sou, se me digo sem linhas ou entrelinhas, o que poderia estar desejando após, uma estratégia de missão se faz mister, um arrebique de mentira se faz imprescindível, um ornamento de hipocrisia des-faz dos idílios as sorrelfas. Se não tripudio com os “us”, “pós” e “ins”, como compor das letras-arrebiques-da-forma as palavras que desfacelam os brios, esvaziam os méritos, infernizam as glórias, como amar a vida no que ela tem de in-glórias e in-tempéries? Para mim, Henrique, isto é que é ser esquecido sem direito a reclamar, dizer haver sido injustiçado, antes os poetas e escritores tinham vidas outras por sina, desígnio, herança dos tempos, hoje são utensílios, por inveja e ciúme, despeito, para justificar suas mazelas e incompetências. São condenados em vida ao desprezo, e na postumidade serem lembrados e louvados, haja glórias que id-ent-ifiquem suas importâncias. Por todo o sempre – isto! Pela eternidade, aquilo! Tudo o que está por serem sonhos dentro de outros sonhos quero con-“templar” à luz de meus dias, quando por uns, poucos sempre, sou hóspede, sou quem trás no bojo e algibeira novas ilusões e sorrelfas de idílios, sou eu visto e encarado como realidade contra as hipocrisias, sou eu convidado a re-presentar.
São onze e meia. Henrique despede-se, terá de lecionar a uma hora, precisa antes passar no banco para fazer um saque,  tomar banho, almoçar. Retornará amanhã cedo para me fazer outra visita. Irá procurar em sua estante um livro muito interessante para eu ler, irá fazer-me muito bem. Rindo, diz-me que irá tentar reproduzir as minhas palavras sobre a revelação de quem sou. Muitíssimo poética.
- Não me ditou o seu poema, mas recitou-o com muita vivacidade e sentimentos puros. Satisfez-me o pedido, querer ter o seu último poema – disse a si mesmo, desejando que tais palavras o confortassem, soubesse ele con-viver com a idéia de que tenho pouco tempo de vida, dias apenas.
Despede-se com um abraço muito caloroso.
Risíveis perspectivas de nada nos lábios em cujas superfícies inferior e superior a língua ardente toca com volúpia de sensações excêntricas que se transformam em palavras, mas nada é capaz de sentir, talvez de interesses espúrios id-ent-ifica a mofa, deboche dos homens que perambulam, deambulam pelas ruas e avenidas. Não sorriem, nada riem, mas quem os percebem e intuem vêem, acreditam, pia crença, que se sentem no íntimo alegres e saltitantes, querem despertar todos para sentirem serenos, tranqüilos, esbanjarem felicidades, a vida é linda, esplendorosa. Deus nos doara a plenitude, Deus nos doara um tesouro inestimável, nada se lhe assemelha, rendamos graças e tributos – estão todos equivocados, em verdade, debocham das esperanças que alimento nas pré-fundas mais íntimas, riem das posturas e condutas de moral ilibada, mazelas e pitis, são verdadeiros ilusionistas, estão iludidos com o sentimento de esperança que nutrem num cantinho bem especial do coração. 
Uma hora da tarde... O calor está infernal, nem um ventinho disfarçado entra pela janela aberta de cabo a rabo, o ventilador está com problema. Estou sem camisa, sentado na poltrona em que esteve Henrique. Acabei de almoçar uma sopinha leve de macarrão com sardinha. Acabo de ler duas páginas dos Salvos de Davi. O rei-poeta consolou minha alma. É destas consolações que preciso, destas que preparam o espírito para a eternidade. Se, como queria Henrique, escrevesse um poema, não estaria consolando, preparando-me para a eternidade, estaria desejando consolar as pessoas que estão nas mesmas condições minhas, até piores que eu, num leito de CTI, só esperando o último suspiro, enfim ninguém escreve para si mesmo, com as minhas letras, ao invés de consolar-me, desesperar-me-ia, outro poema estaria escrito no íntimo, esperando o instante de ser registrado, e talvez não tivesse tempo de fazê-lo, morreria com ele.
Hoje, de manhã, quando acordei e entrava pela veneziana os raios vivos e ardentes do sol, acusei a natureza por vir garrida e alegre assistir talvez ao meu último dia, dizer-me que a curtisse, que deixasse todos os prazeres se manifestarem em mim, oportunidade como esta é difícil, no túmulo encontraria trevas e sombras, escuridão perene, e com elas impossível me será vislumbrar o sol vivo e ardente de todas as horas, o perfume das rosas, os rios, as florestas, montanhas, o chão seco e rachado do sertão. Como estava meu coração? A dor desvaira e eu não sei o que sinto nem o que digo. A verdade é única, qualquer outra é elucubração ridícula que serve para despistar o medo da morte, a verdade é esta grande verdade. “Ó infinito,/ é enfim para ti que eu vou,/ como gota de água desviada/ de outras águas atrás/ que se recolhe ao oceano”. Dissera a Henrique a morte ser livramento, não aniquilamento. Sinto que há dentro em mim uma coisa que anseia por livrar-se desta prisão para lançar-se na eternidade e no infinito. Desejo libertar-me das palavras, sem elas teria eu sentido a beleza da vida, seus momentos, suas situações, seus esplendores, sua simplicidade, a cada verso que escrevia sentia-me preso ao mundo, à terra, aos sofrimentos e dores de todos os homens, suas frustrações, fracassos, desejos de liberdade e transcendência, não podia transformar isto, ficava só nas palavras de fé e esperança, com imagens e metáforas de sonhos que podem ser verbos de outras realidades. Mesmo depois que adoeci, conhecendo intimamente as dores do câncer e os sofrimentos da morte à soleira de minha escrivaninha, nunca deixei de escrever, pó-etizar as alegrias, felicidades que habitam os interstícios do espírito, sem ser romântico, jamais o fui, mas re-versificando os problemas, angústias do não-ser em busca do ser. Houve críticos e mesmo amigos dizendo que antes de minha doença meus poemas e minha vida no quotidiano de minha existência se comungavam, era eu autêntico e verdadeiro, a vida vivenciava a arte, a arte vivenciava a vida, mas depois de minha doença só me preocupei com a beleza de meus versos, com as mensagens de suas entrelinhas, distanciei a obra de minha vida, no fundo de mim só dores, sofrimentos, medos e angústias da morte, do fim irreversível.
Ninguém morreria por mim, ninguém merecia sofrer com as minhas dores, ninguém era responsável pela minha doença, só eu tinha de isto viver, mas as minhas palavras e versos podiam intensificar mais e mais a esperança da vida, até mesmo sublimarem a morte e a eternidade.

Grande, suave, consoladora esperança!
Sem ti,
que fora o passamento
senão a maior dor e o maior suplício?
Mas, deixar o mundo com a esperança
de que aos olhos mortais
se abre mundo novo,
tão outro que não este,
mundo em que a virtude resplandecerá
e a paz eterna
compensará as atribulações da vida!

Alegra-me, comove-me, alvoroça-me a idéia de que não vou por inteiro à sepultura; é que ali, à porta do cemitério só ficará de mim o que há de pior em mim, mas que o espírito, a luz desta lâmpada, a que tão cedo vai escasseando o óleo, há de re-montar ao foco da grande luz o verbo da Vida, o amor à Vida, à vida do Verbo Amar.
Deixarei saudades? Deixo. O amigo Henrique sempre lembrará de uma vez que havia num de meus poemas escrito “o homem é a continuidade dos seus sonhos e utopias”, e que ele quase chegara a rogar que mudasse a disposição das palavras: “a continuidade dos sonhos e utopias é a verdade do homem”. Satisfiz a sua vontade, e ele se sentiu feliz e alegre como eu jamais o vira tão extasiado. Sempre lembrará  de nossas tardes andando nos arredores da cidade, entrando e saindo de ruas, crianças maltrapilhas, raquíticas, brincando à porta de seus casebres, e nós falando dos pobres de quem serão o reino do céu, nossos sentimentos profundos por assistirmos a tanta miséria, tantas vidas sem destino, sem sonhos, talvez fossem mais felizes que nós que tínhamos nossos sonhos e utopias, não sabíamos se iríamos concretizar-lhes, se seríamos felizes e realizados.
Sempre tive muita vontade de dizer a Henrique que com a minha morte seguisse a sua vida, não ficasse lembrando de nossas vidas sempre juntos, nossas esperanças e fé, não sofresse, tivesse em mente que o importante realizamos juntos: a amizade sincera e verdadeira. Nunca tive coragem de dizer-lhe isto por saber que no íntimo deseja-me a vida, deseja-me poemas e mais poemas, deseja-me a felicidade de encontrar com os leitores pelas ruas da cidade, recitando passagens de poemas que apreciaram bastante, dizendo o quanto a minha obra é importante para eles.
As saudades dos leitores, passando à porta dos restaurantes, vendo-me sentado, compenetrado, escrevendo meus poemas, tomando cerveja, dizendo-me, rindo: “vocês os poetas e escritores não vivem sem o botequim, sem os aperitivos e cervejas. Inspiram. Por que inspiram?” O tempo as consolará, e a “esperança de que dia surgirá em que o consórcio moral das criaturas se realizará  o trono de Deus, deve ser a grande esperança dos que ficam e dos que se vão”
Tive um sonho esta noite. Creio que este sonho é que me inspirou a refletir tudo isso neste dia. Antes, por mais que me sentisse angustiado, entristecido, não tinha coragem suficiente para fazê-lo, mergulhar profundo em mim, na minha vida, em meus sentimentos íntimos diante do fato irreversível de que tenho poucos dias de vida, não chegarei a viver um mês mais a partir de hoje. São reflexões que levarei comigo para a sepultura. É o que levarei de minha vida, é o meu inventário de uma vida voltada às letras, aos desejos de espiritualidade e eternidade. É o meu muito que irá comigo, é o muito de que sinto orgulhos inomináveis. Poderia pedir a Henrique que escrevesse para mim. Seria o meu testamento, testamento de poeta é hipocrisia sem limites.
Sonhei que assistia à minha coroação na posteridade. Foi sonho! Que fiz eu para merecer os aplausos dos homens, considerações e reconhecimentos? Gastei a minha mocidade... em quê? Aqui entra a parte  sombria do meu sonho. Gastei a minha mocidade em amar, com as forças ardentes e vivas do meu coração, o etéreo, a sublimidade, os diamantes que riscam o éter, as pérolas que enfeitam o que há-de vir, o por vir de todas as verdades que nutria em meu espírito, a amar a quem mostrou que me não merecia. Embalde procurei desviar de meu espírito esta lembrança que me acabrunhava e me levava à sepultura, tão logo acordei; por minutos a fio fiquei a imaginar -  como o fazia na juventude, para mim isto era muito importante, era o húmus de minha vida, depois de haver sido reconhecido e considerado, deixei de pensar nestas coisas - as ruas e avenidas entupigaitadas de pessoas assistindo à passagem do meu féretro em cima de um carro do corpo de bombeiros, leitores chorando, outros entristecidos, lembrando-se de minha presença nos botequins, quando passavam e me viam escrevendo meus poemas, dizendo seria difícil outro poeta como eu na história de nossa comunidade, um espírito rebelde, polêmico, sarcástico, extremamente crítico, nunca deixei pedra sobre pedra, dizia o que pensava e sentia, jamais senti medo disto, alguns leitores até diziam se eu fosse prosador com  o meu espírito crítico seria crucificado, viveria solitário, faria inimigos até por correspondência, extremamente odiado pelos hipócritas, farsantes, falsos, imbecis, ridículos, medíocres, mesquinhos, mas por ser poeta e a linguagem e estilo sensíveis disfarçaram nas entrelinhas o que pensava das criaturas de Deus.
Pobres rosas aquelas do meu jardim! Lembra-me o lado feliz da história de minha mocidade. São as relíquias da fé pura e da paz do espírito. São os tesouros da esperança que alimentava em mim, esperança de em todos os jardins as rosas embelezassem as ruas, desse prazer aos transeuntes que passassem sentissem profundo o odor delas e isto lhes despertassem para as felicidades e alegrias, a vida coroada de prazeres e realizações. Naquele tempo eu me julgava um querubim, escrevi muitos poemas inspirados nos querubins. E era-o. Não sei que demônio as perseguiu depois e fez-se-lhe introduzir no espírito. Desde aí perdi o ideal das rosas dos jardins embelezarem as ruas para ganhar a morte. Nem podia ser de outro modo... As ilusões não acrescentam nada à vida humana, diria até que são as causas de todas as desgraças, frustrações e fracassos. Cumpria-me deixar as ilusões, quimeras e fantasias, tão queridas e amadas aos poetas, para me entregar por inteiro à procura do “Ser”, à procura da “Sublimidade” e do “Verbo” que selassem com primor e galhardia a vida em sua essência.
Tenho uma idéia. Vou fazer uma coisa que chamarei o meu testamento. É a revista de meus papéis. Entregarei em mão de Henrique o que julgar não fui autêntico o suficiente em meus sentimentos, desejos e vontades, esperança e fé, escrevi por escrever, para não ficar sem a pena em mão. Em verdade, já quis queimar esta papelada, mas ele próprio me pediu que não o fizesse, faz parte de minha história por mais não concorde, desse-lhe de presente, guardaria com muito carinho e amor, se não quisesse que publicasse, não publicaria mesmo. Diria: “Foi-me presenteado. Pediu-me que não fosse publicado, não permitisse qualquer acesso”. Deixarei o que puder dar alguma idéia, não à posteridade – posteridade, imortalidade, eternidade têm importância enquanto a obra está sendo realizada, para satisfazerem a vaidade e o desejo de poder, depois perdem qualquer sentido, quanto mais no fim da vida -, mas aos meus amigos. Eles não sabem talvez nada do amigo que lhes morre. São poemas que não figuram nas antologias publicadas.
Cerremos um pouco estas cortinas. O sol queima demais. Assim é melhor. Meu Deus como estão estas gavetas!  A mesa está repleta de livros, papéis, uma bagunça generalizada. Dir-se-ia haver matéria aqui de sessenta poemas... – nesta gaveta, há muitos outros dentro de pastas de plásticos no arquivo. Era eu muito cuidadoso com a minha vida, metódico, mas com a doença deixei de sê-lo, perderia tempo em arrumá-las, tinha muito a escrever ainda, o último poema não fora escrito. Sinto que não o escrevi, não o farei. Talvez. Que sou eu senão poemas verbais do ser! Houvesse algum tempo trabalharia todos eles, quiçá publicasse a última antologia de minha vida. Gostaria sim de fazê-lo. Conversarei com Henrique, terá minha autorização para revisá-los. Já conhece a linguagem e o estilo, não lhe será difícil  revisão criteriosa.
Deitemos isto fora que não presta: cartas, cartões de alguns indivíduos que se diziam amigos meus, no princípio, no meio e no fim. Por anos cercaram-me interesseiros, hipócritas, oportunistas, a ralé do métier literário, até que lhes mandei catar coquinhos no asfalto. Nossa, meu nome virou osso na boca de cachorros. Por onde andava percebia fofoquinhas ao pé dos ouvidos! Não dei atenção. Não é amigo aquele que alardeia a amizade: é traficante; a amizade verdadeira sente-se, não se diz – sempre dissera haver coisas que se dizem, haver outras que não se dizem, dentre elas a amizade, não se lhe diz, sente-se-lhe bem profunda no espírito. Sempre quis dizer de minha profunda amizade por Henrique, dediquei-lhe vários poemas, só a senti. Mas a que vem esta filosofia? Deitemos fora, simplesmente, estas cartas e cartões. Henrique não vai querer guardá-las, só as coisas verdadeiras foram seus interesses na vida, enquanto viver a verdade será a sua vida. Certa vez perguntou-me o porquê de guardar cartas e cartões de quem traficou amizade comigo, eu que sou por inteiro contra os hipócritas e falsos. Respondi-lhe que objetos de defesa, não mais cair no mesmo. Riu de chorar.
Aqui estão uns versos: Crisântemos de antanho. Ah! foram versos que escrevi quando uma leitora me presenteara no lançamento de uma antologia de contos, a única publicada, não escrevi outros. Henrique até hoje insiste e persiste em saber o porquê de não mais tê-lo feito, a minha veia de contista  era excelente, estilo e linguagem autênticos, originais, sobretudo em termos da sátira. Não deixou de ser verdade o que lhe explicara: contista satírico é muito comum, tornou-se até lugar-comum, mas poeta satírico é dificílimo de encontrar. Existe outra verdade nisto, mas jamais pude verbalizá-la. São versos do bom tempo, tempo em que as flores eram símbolos e metáforas da esperança. Devo guardá-los? Para quê? Não, não servem; eram talvez bonitos, mas cantavam a mentira, endeusava a falsidade... Não prestam.  
Mais versos... São fragmentos de um poema satírico: Tabernáculo de eunucos. É do tempo em que a academia queria enjaular-me em seu covil de velhacos. Diziam todos que era a minha veia a sátira poeta, sera o “sangue que corria nela”. Quê metáfora mais insossa! O que esperar de velhacos? Poeta não tem veia específica. O que respondi ao membro e também à academia: “meu sangue não corre em veias de um covil; meu sangue correrá nas veias de quem deseja a verdade”. As circunstâncias, situações mudam tudo, o gênio, o caráter e as tendências;  e o homem de ontem nem sempre é o de hoje, as águas de outros atrás nem sempre serão as águas que chegam à soleira do oceano, e nele se perdem, se confundem. Foi o que me sucedeu. Se eu tivesse direito a uma biografia ou a um elogio histórico dava este ponto ao escritor ou ao professor Henrique para estudar e desenvolver. As mudanças de gênio, caráter e as tendências iriam dar “pano para manga”. Não os diminui, não os negligenciei, exacerbei-os ainda mais, tornei-me um homem paradoxal, mas foi assim que pude vislumbrar e contemplar a estética, a beleza.
Este poema, se eu houvesse terminado, haveria de agradar, talvez. Tem por assunto o aparecimento em Atenas de três eunucos que adoravam o tabernáculo, rendiam-lhe graças por serem eunucos, e toda a gente de lá deitou-se a imitá-los, para cobrir, mesmo aos seculares, as deficiências aleijões de suas personalidades, condutas e posturas, caráter e moral, ética, atitudes e gestos, sobretudo as canalhices di-versas. O ideal era retornar a Sodoma e Gomorra e realizar tudo o que não fora possível lá, uma comunidade destituída de qualquer senso. O sacrílego Nilton Borges era o meu herói em cuja boca punha eu minhas idéias e sentimentos acerca da hipocrisia reinante em nossa comunidade.
Começa com ele na passagem de ano, jantando com dois amigos num restaurante ao lado de uma papelaria na rua Afonso Pena, gritando a plenos pulmões: “Feliz 10010! Que os jegues andem sempre de quatro pés com o rabo no meio das pernas”. Devia tê-lo terminado. Infelizmente, ficou no primeiro canto, doze páginas. De que serve mais? Os jegues andam de quatro pés, perderam o pelo os rabos de tanto roçagarem nas pernas. Não foi preciso meu poema para a realidade se re-velar. Se houvesse terminado, publicado, com certeza os jegues seriam extintos, nenhuma cultura ou sociedade vive sem eles. São de extrema importância no desenvolvimento e no progresso social, político; só não o são em termos da religião e das artes. Jegues puxando a carroça pelas ruas e avenidas não é nada poético, nada religioso; religiosamente, é um desrespeito à criatura que Deus mais caprichou nos instintos, não possui qualquer inteligência.
Uma carta de Lidiane Vergueiro. Foi das primeiras que me escrevera. É apaixonada. Não declama nem recita em cântico e versos o seu amor por mim, éramos grandes amigos. Fala de seu amor inconteste pela natureza, por Deus, o artífice do universo, da felicidade, o primeiro degrau para a espiritualidade, a ternura aos íntimos e familiares, a graça da pureza. “Amo-te, ó poeta das esperanças e do ser, como nunca amei a ninguém; sinto que encontrei em você o corpo vivo e ardente dos meus sonhos de ser plena e sublime, de atingir a inocência das palavras e dos gestos, de real-izar o verbo do amor e da fé. Fria eu, como sentem os que me rodeiam, os que comigo convivem? Sou reservada, fechada, porque é preciso sê-lo. Não se sai abrindo a intimidade a todos os ventos”.
Era o amor como eu o compreendia, como a minha alma ardente o desejava, amor sem interesses, amor sem efusões da carne e da libido, amor sem caprichos e vaidades, amor ao “ser”, amor à “verdade”, amor às “sendas perdidas”. Lidiane não teve tempo de ser amada por alguém que lhe revelasse ainda mais a profundidade do sentimento de amor que habitava seu espírito, falecera num acidente trágico na rodovia para Ipatinga. Amou-me como poeta, como amigo, quem lhe id-ent-ificara o que em sua alma e espírito habitava.
Guardemos esta carta. Há-de ficar ao lado destas outra, escrita por Denise Amaral, quem cantava a todos os ventos e cata-ventos seu amor carnal por mim, seus desejos de acordar atracada ao meu corpo, olhar para o infinito através da janela e agradecer a Deus, render-lhe graças pelos prazeres da carne, dos ossos, do corpo, contraste tamanho que assusta e repugna, irrita e admira, faz-me lembrar Lima Barreto, as mulheres que o cercavam estavam só interessadas em seus méritos e talentos artísticos. Re-verso da medalha; face sombria depois da face brilhante; ponto corrompido depois do ponto são. 
Leio a carta de Denise, dias antes de participar sua mudança para Foz do Iguaçu, para ser secretária de um vereador, com quem se casaria dois anos depois:  

“O que devo fazer, ó poeta, é fugir de você. Se é real esse amor que digo nutrir por você, acredito que longe de seus olhos e de sua sensibilidade é que saberei ser verdade. Você é o poeta das esperanças e do verbo, sou eu a fuga da razão que me enclausura, algema e acorrenta. Ora, eu erro, errei. Salvo-me do erro, reconhecendo que foi erro e dizendo francamente que fui leviana, e que as minhas promessas de servir-lhe em todos os momentos da vida foram puerilmente falsas. Console-se e anime-se, irá encontrar quem o ame verdadeiramente...”

A carta continua; é toda no mesmo sentido.
Fecho a gaveta. Sinto-me sobremodo distante, circunspecto. Não continuarei arrumando esta gaveta. Tirarei um tempo para isto a cada dia. Preciso descansar um pouco, sinto-me estafado. Ficarei sentado na poltrona de meu quarto. Lerei algum livro.
Conheci um rapaz, poeta como eu, e como eu sonhador e crente, a mais não poder ser, nas melhores utopias, fantasias, quimeras, sorrelfas e ilusões desta vida.
Não era rico, devia viver por si; todavia, pôde alcançar meio de preparar-se para uma profissão literária. Foi estudar, embeber-se de conhecimentos e sensibilidades da arte poética, literária. Disse-lhe eu com empáfia: “Não se deixe corromper pela razão, se possível, para melhor proveito tirar de seus estudos, in-verta-a. A razão tem o poder de corromper as intuições poéticas, a transcendência do espírito”. Tinha ele ao lado de sua sensibilidade e espírito poéticos grande bom senso, e a ele deveu correr os primeiros anos de seus estudos sem cair nos laços de amor. Teve algumas fantasias, mas fantasias simplesmente, que começavam e terminavam na mesma noite. A sorte preparara-lhe. Depois de muitas circunstâncias que não vêm ao caso narrá-las ou descrevê-las, achou-se diante de uma mulher, com quem se sentiu divinamente id-ent-ificado, satisfazia os seus sonhos de amar verdadeiramente, de ser amado, os seus pro-jetos de poeta, de homem. Estava em circunstâncias especialmente romanescas. Força da iluminação divina que os impeliu, ao poeta, à professora, um para o outro. Conheceram-se, amaram-se. Naturalmente, pode haver quem pergunte com que amor se amaram? Foi com o verdadeiro amor, o amor que consorcia desde a primeira hora as almas, as vontades e os pensamentos para nunca mais se separarem. Nunca mais. O poeta real-izou sua vida de versos e sonhos. A professora real-izou sua vida de ideais de verdade e de justiça social e política.
Amaram-se pois. Quê amor profundo e verdadeiro existe entre eles! Quê vida de entregas este amor lhes proporciona! Quê harmonia e sin-cronia existem entre os desejos e ideais que nutrem pela vida! É preciso observar que o poeta tinha sede de amor, tinha sede de con-templar o conhecimento, a vida. Atravessara um deserto, onde as miragens sucediam-se de hora em hora, e chegava ao oásis da vida, uma fonte, um rio de águas cristalinas, uma floresta silvestre, uma palmeira. Determinou não seguir em frente e descansou, com a longa caravana das suas ilusões, sorrelfas, fantasias, e utopias, sobre a relva, à sombra da palmeira, à beira da fonte, à soleira do rio sem margens, sem pressa... Desculpe esta linguagem romanesca e oriental: é própria da imaginação exaltada que adquiri com a leitura de Tagore.
O amor do poeta e da professora prosseguiu cada vez com mais força e mais intensidade. Mil projetos, mil planos formavam ambos na doce intimidade dos seus corações. Eram duas almas sinceramente poéticas. Viam e con-templavam o resto do mundo pelo prisma do amor e da fantasia, do respeito e solidariedade pelas pessoas, pelos pobres e miseráveis, pela fé em Deus, pela esperança do verdadeiro amor entre as criaturas como Jesus pediu-nos que o real-izasse.
Não desejo entrar nas mil particularidades do amor entre o poeta e a professora. Versos, flores, ósculos sinceros e castos, tudo isto que se troca entre casais enamorados, todos esses episódios romanescos e tão velhos como o mundo, tudo isso se deu entre os meus amigos. A professora não versificava, de vez em quando contava, escrevia contos cujo tema era o amor sincero entre as criaturas de Deus, não publicou, doou-lhes ao marido que os guardava com muito carinho, para se inspirar neles e versificá-los.
São nove da manhã.
Passei uma noite tranqüila – creio haver sido resultado de me cansar com a arrumação de minha gaveta, as lembranças e recordações que me habitaram. Não acordei única vez. Há alguns meses que isto não acontece. Acordo e fico a pensar na vida, na minha ida deste mundo. Sonhei que estava bom e vivia com minha mãe em nossa casa completamente arborizada, estávamos sentados num banco de mármore encostado na amurada da sala de televisão de janela de vidro. Deitado em seu colo aconchegante, lia poemas de Mário Quintana, enquanto ela, ouvindo, olhava para os transeuntes passando, saltando a linha do trem de ferro. Voltavam os meus dias de poeta, e eu cantava em estrofes inspiradas a ventura que me dava a paz do coração e do espírito.
Não sei por que, esta perspectiva de felicidade já me não desgosta, e nem já me causa ressentimento a alegria sensaborona, expansiva e radiante da natureza, como ontem pude viver assim que acordei e me deparei com os raios de sol vivos e radiantes entrando pela veneziana aberta de meu quarto de dormir.
Ao mesmo tempo, a idéia tão poética dessa vida difícil e dolorosa de quem não tem mais muito tempo de vida, está-se despedindo do mundo, dos íntimos, dos amigos, das noitadas escrevendo versos, vivenciando outras emoções e sentimentos, experimentando outros reais e realidades, dos encontros com os ad-miradores, de suas recitações de passagens de meus poemas de que tanto gostaram, e lhes deram outras esperanças e fé. Isto me traz a vida real, e eu olho já os sonhos do passado e o desta noite como ilusões sem realidade prática. A prática é outro verso. Não trans-igir com os desvios dos homens, mas viver preparado para eles, tal é a lei regular que se me afigura devem ter todas as consciências honestas, dignas e previdentes.
Sou agora o homem-prosa, vivo terra-a-terra, livre das quimeras que me atordoaram e nas quais não encontrei senão  expectativas e ansiedades. Quis forçar a ordem das coisas e opor aos sentimentos comuns a idealidade dos meus sentimentos. Hoje, se não reneguei o culto da poesia, não faço praça dele, de modo que ontem que me vi tão desanimado com a idéia de que não me restam muitos dias de vida, logo, logo, serei mais um habitante do “jardim santo”, lá me tornarei cinzas, ficarei só na memória dos amigos e íntimos, de alguns leitores e admiradores, foi, por assim dizer, o último dia de um poeta.
Henrique prometeu-me voltar hoje para mais uma visita. Mas tive a alegria de recebê-lo por volta das sete e meia em minha residência. Pedi-lhe que se sentasse à máquina de escrever, datilografasse o que iria ditar-lhe. Exímio datilógrafo que é não demoraríamos a noite toda ditando eu, datilografando ele. Ditei-lhe este Águas de outros atrás, que o felicitou muito, por anos vem esperando voltar eu ao conto. Terminamos às onze e meia da noite. Despedimo-nos com um projeto: mandar publicar um livrinho só com este conto.
- Procure esquecer, meu amigo, sua doença, e, sem esquecer a missão que Deus lhe deu, não confie de um mundo frio e egoísta as santas aspirações e inspirações de sua espiritualidade e do seu ser – disse-me ele, dando-me um abraço afetuoso e amigo.- Agora, tome um leite frio e descanse. Amanhã será outro dia para você.
- Obrigado, Henrique... Muito obrigado por tudo.
Ouvi seu assobio, fechando o portão de minha residência. Assobiava Sem lenço nem documento, de Caetano Veloso.      




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