ESTILO E IDÉIA DO NARRADOR - Manoel Ferreira.


Bons dias!


Antigamente, há uns quarenta anos atrás, se o aluno não escrevia, garranchava letras no papel, ilegíveis à professora e, às vezes, a ele próprio, existiam cadernos de duas linhas para melhorá-las, embelezá-las, causarem brilhos aos olhos, queixos caídos de todos que as lessem, causarem até inveja. Ninhos de guaxos, garranchos eram censuráveis, proibidos. Além dos deveres de casa que eram obrigações de serem corrigidos pela professora, os cadernos de duas letras eram vistos por ela, às vezes valendo pontinhos para o devido incentivo às melhoras das letras.
Não me é dado saber se ainda existem tais cadernos, sei que os professores não dão a mínima se os alunos garracham letras, se são elas dignas de admiração. O que há de letras horrorosas, não só de alunos, mas de profissionais não está no gibi. De médicos, então, são terríveis, só farmacêuticos lêem, sentem-se orgulhosos, são famosos pelos garranchos. Inclusive, é de práxis dos farmacêuticos escreverem nas caixas dos remédios o que os médicos prescrevem nas receitas, cujos objetivos são evitar equívocos do paciente quanto ao uso dos medicamentos, até a morte.
Mas há pacientes que procuram farmacêuticos para indicação de um remédio para algum problema de saúde que estão com ele. O médico prescreve receitas ilegíveis, o farmacêutico fala de modo que poucos entendem, e na hora de usar o remédio o perigo é ainda maior, fazem de modo errado. Melhor morrer com a doença, com todas as dores, sofrimentos, que tomar remédios para a cura.
Assim é que seu Jacinto Pereira, fazendeiro podre de rico, mas um verdadeiro mão de vaca, procurou o farmacêutico Diógenes para receitar algum remédio para uma tosse daqueles de sua filha, estava ele num difrusso daqueles, estava ele preocupado. Diógenes sugeriu que procurasse médico, era o melhor, visto a situação de Ermengarda estar tão ruim. Consulta estava um absurdo, exploração, roubo mesmo; às vezes, não adianta nada, a pessoa até piora. Não levaria a filha ao médico, dinheiro não era capim, não achava no pasto da fazenda. Já estava acostumado com os remédios de Diógenes, verdadeiros pás-e-bife, só tomar e sarar. Iria receitar ou não? O farmacêutico não teve alternativa, embora fosse de opinião que a situação de Ermengarda exigia cuidados médicos.
Como persuadir um homem analfa de mãe e betos, nem cachaprar o nome próprio sabia. Só tinha dinheiro, e muito mesmo, podia rasgar, jogar fora, simples tostões; só se sentiria persuadido, se recebesse alguma quantia considerável. Pensara até, enquanto explicava a Jacinto Palmeiras a necessidade de cuidados médicos, dar-lhe os comprimidos, se não surtissem os resultados esperados, procurasse médico, mas o orgulho dele não permitiria sua gentileza, ouviria dele ofensas e humilhações diversas.
- Seu Jacinto, Ermengarda, conforme os sintomas que o senhor me disse, deve estar com pneumonia – disse-lhe, olhando-o de esguelha, pensando que assim o sensibilizaria, qualquer ignorância sabe que pneumonia é fatal, mas permaneceu sem reação alguma, acreditava na prescrição do farmacêutico, aquela velha crença popular de que a ciência não é nada frente ao coração dos homens sensíveis, e Diógenes era considerado quase um santo, seus remédios curaram pacientes em fase terminal.
- Vou mandar uns remédios para ele. Vou escrever como tomar cada um.
A letra do farmacêutico não era ruim, qualquer pessoa leria, mas escrevia como o povo fala. Por exemplo: “Treis cumprimidos di manhã, tardi e noiti na hora das refeissões”. Nunca estudou, aprendeu a profissão de farmacêutico intuitivamente, enquanto empregado de Hercínio, que era graduado em universidade, o primeiro, nunca houve outro em nossa comunidade; inteligente e sensível aprendeu a sinceridade e honestidade, a humanidade com os pacientes, mas em termos de escrever era uma negação. Só fizera o curso primário e muito mal.
- Deus lhe pague, seu Diógenes. No final de semana, eu vorto para dar nutiças de Ermê.
Passada uma semana, Jacinto Palmeiras voltou e Diógenes logo perguntou, antes de se cumprimentarem, Diógenes perguntar como iam as coisas na fazenda, quantos bois vendeu para os frigoríficos e açougues.
- Como foi lá, Jacinto? Ermengarda sarou? Tomou os cumprimidos direitinho, na hora certa? O xarope, a injeção de vitaminas, tomou direitinho?
- Diógenes, vou ser muito franco. De nada... Adiantou, mas foi diferente.
- Ermengarda sarou.
- Sarou. Está bem. Já está colhendo espigas de milho, ensacando, mandando para os fregueses. O senhor é bom mesmo, seu Diógenes.
- Graças a Deus. Fico satisfeito. Mas o que foi diferente.
- Diferente?
- O senhor disse que Ermengarda sarou, mas algo foi diferente.
- Ah, sim...
- O que, então?
- A veia morreu!
- Que véia, seu Jacinto?
- Minha muié.
- Sua mulher. O senhor não falou que Dulcinéia estava doente.
- E não estava. O senhor não disse que era para mode dá a injeção na veia?
- Meu Deus... Sinto muito, seu Jacinto.
- Morreu, morreu. É a vida.
- Claro.
O erro de interpretação de escrita ou fala, às vezes, pode custar uma vida.  


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