OUTREM DE RIBEIRAS PRÓPRIAS - Manoel Ferreira



Observava a palmeira que se incidia na parede da Igreja, a pequena planta com muitos galhos e folhas que também se incidia nela. Deveria indicar onde é que se encontra esta palmeira e pequena planta, mas não o faço, pois que estaria, de alguma forma homenageando o lugar onde estão plantadas, e sou de todo contra as posições e ideologias desta egrégia instituição de cultura.
À soleira da palmeira, revelando uma imagem e um contorno que não tenho a mínima preocupação em delinear, algo se me apresentou no espírito. Bem, antes de chegar a casa, a esposa me mostrou esta imagem da palmeira e da pequena planta a incidirem na parede da igreja,  guardei bem no íntimo. Tínhamos ido juntos à padaria para umas pequenas compras de fundamental importância para a saúde do corpo e da mente, leite e pão.
Reconheço, e perfeitamente bem, que, após estas breves e nítidas palavras, acerca da palmeira e da pequena planta com muitos galhos e folhas, não se me afigura outro desejo senão fazer incidir nos olhos e no coração as palavras, grávidas de imagens espirituais. Dito de passagem, estive primeiro, ainda pela manhã,  a rezar durante algum tempo o terço, implorando algo que eu não entendia, pois que deixava apenas o espírito se manifestar, até que por fim a língua já me ficava presa. O meu coração confrangeu-se por inteiro. Durante aqueles momentos em que estive a rezar, rogando que outra condição de homem e indivíduo me fosse merecida, a todo instante buscava mostrar esta outra condição de homem e indivíduo, intentando fazer um gesto com a mão rígida, para voltar outra vez a pedir, com a voz rouca e apagada, não sei o que... pois as palavras mais não eram do que sons incoerentes que eu não conseguia decifrar.   
 Estive por todo o dia pensando a respeito de meus desejos e vontades de superar a mim mesmo, como acredito tenha realizado com a arte, um dom gratuito de Deus,  e assim pude perceber que a verdadeira arte como a verdadeira oração são as que fazem o homem e o artista refletir, buscar compreensões e entendimentos, ansiar por desejos e vontades outras, desejar sonhos novos e inusitados, não importando se em sua essência são em demasia presunçosos, são com certeza uma utopia,  são  frutos de uma imaginação fértil; no mundo real, em contacto com as coisas, os objetos, os indivíduos, os homens, tudo se torna bastante diferente. Sou  eu quem assumo com todas as letras e sentidos possíveis, com todas as embófias e empáfias:  transformei a minha arte em um modo e estilo de viver.
Vivendo, reconheci que é preciso, além de tudo, acima de quaisquer nadas que se me apresentarem no decurso da viagem, considerando ser eu um viajante da ressurreição, que é preciso pensar, sentir, buscar, compreender e entender a Vida que se me revela, antes de apresentar qualquer sentido que Ela possa sugerir nas suas entrelinhas, mostrar em sua superfície. Preciso viver com todo esplendor e resplendor, preciso revelar esta sensibilidade sutil e profunda de minha alma, de meu espírito.
Verdade, sim. Não o faço, porém, como quem já andou todas as estradas de poeiras e crateras, vislumbrando um casebre à beira, pousando-me nele, sentindo, ao amanhecer, que posso continuar viagem, tranqüilo, calmo, sereno, encontrei desde então, longe de todas as antemãos e contramãos, a Vida.
Não faz ainda dez minutos que cheguei a casa, vindo direto para o meu escritório, tirado o paletó, a gravata, desabotoado os primeiros botões da camisa, sentado à mesa de trabalho e criação, ficando alguns minutos a vislumbrar e contemplar o título deste artigo, avaliando e investigando os sentimentos e emoções que me perpassam a alma, re-nascendo aí a esperança de uma emoção ou sentimento, uma ilusão e quimera, um desejo e uma fantasia, e não me angustiarei mais. Sei apreciar a bondade do Criador, que encontra a sua expressão na Natureza, e além disso honra-me ainda com outras várias amabilidades e compaixões.
É indescritível andar daqui para ali todo o dia, contemplando o mundo, as relações com as pessoas, as convivências das pessoas, buscando outros sonhos que possa eu ir construindo, cheio, às vezes, de impaciência, ansiedade, medo, e veemente esperançado, imaginar com antecedência a lâmina do machado que fere o sândalo, o encontro, o diálogo, a conversação, os acontecimentos do ser e do tempo.
Sigo o longo caminho, não me importando se haverá muitas curvas, se são bem acentuadas, se são leves e passageiras, se há algum momento em que se é necessário equilibrar-se, caso contrário, posso cair de lado, se o asfalto será por muitos quilômetros ainda. 
Acontece que o saber viver, o saber desejar um novo sonho, reconhecendo que não há novidades nos caminhos, mas um novo caminho a seguir, mostra-me com piruetas ininteligíveis de se imaginar os muitos desejos e vontades que existem no simples ato e atitude de querer existir, de transformar este existir numa vida plena de sentidos e de significados, capazes de iluminar a treva mais escura e sombreada existente nos liames de atitudes particulares, no outrem de ribeiras próprias.
Romper o véu de mistérios e enigmas, ir buscando eterna e ininterruptamente mutações em mim mesmo, conduz à eternidade. Não tenho uma única dúvida, uma dúvida sequer.
Perplexo e desorientado, estarrecido e vacilante, pergunto-me o que fiz da vaidade, do orgulho, da prepotência de minutos antes, quando afirmei que a verdadeira arte como a verdadeira oração são as que iluminam e transformam o  próprio homem, isto por uma única razão: o homem torna-se o criador de si próprio, inspirado nas Palavras de Deus, fá-lo tentar mais e mais arrancar-se de si mesmo, desejando e sofrendo com a necessidade de revelar o mais íntimo do espírito e da alma. Porque de subido e de antemão me parece que descambei para a vaidade, a eloqüência, o orgulho próprio, sinto-me muito mais só do que quando não acreditava o mínimo que fosse seria eu capaz de revelar o que de súbito e de estalo se me revela no espírito.
Sinto que já cometera todas as arbitrariedades, gratuidades, injustiças; sinto que já cometera todos os pecados, arrependi-me das palavras e atitudes de não, culpei-me por pensamentos e obras. Sinto-me puro para as novas conquistas, para os novos amores, para a esperança que desenrola bem no íntimo e surge no calor da imaginação fértil, a fé que tece bem no âmago do pensamento e da intuição do desejo e vontade de um renascimento uma renovação do espírito e da alma.
Vejo as noites sem quaisquer conversas na varanda. O café frio e quase sem açúcar ficará no bule sobre a mesa redonda, com um forro bege com uns estranhos desenhos que não consigo de modo algum identificar.

Hoje, embora o forro da mesa continue o mesmo, um forro bege com uns estranhos desenhos que não consigo de modo algum identificar, surpreendo-me com o poder que me surgiu nas mãos, com o dom de contemplar e vislumbrar que se revelou aos meus olhos. 

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