INSIGNES DIAMANTES PUROS Manoel


Confio do Tempo, que é, assim crio e artifício a imagem que se me acaba de a-nunciar, é um insigne alquimista. A sabedoria popular, dos homens, diz com propriedade o tempo cura todas as feridas, doenças, ameniza os sofrimentos e dores, resgata o moral perdido, e isto é verdade inconteste. A incontestabilidade desta verdade, para mim, trans-cende tudo isso, o tempo assina a vida do homem, no tempo a vida em sua profundidade é revelada em toda a sua plenitude, através das experiências, vivências. Dá-se-lhe um punhado de lodo, ele o restitui em diamantes puros e singelos para ornamentar coroas, tiaras; quando menos em cascalho. Jamais devolve o lodo que lhe fora dado.
Não são estas palavras de sabedorias, são de experiências e vivências minhas e de outros que sofreram na carne e na alma dores inestimáveis, foram vítimas de traumas, conflitos os mais variados, quase perdendo a fé e as esperanças, quase mesmo dando um fim na própria vida, mas com fé em Deus e no Tempo superaram suas dores, puderam sentir o que são alegrias e felicidades, puderam sorrir terna e meigamente para o mundo, puderam abraçar a vida com amor e felicidade. A vida lhes mostrou outros horizontes e uni-versos, e com eles habitando-lhes as mais abismáticas profundezas do ser conheceram a paz, o amor, a compaixão, viver é um tesouro inestimável.  Imagino o íntimo de um homem que conheceu sofrimentos atrozes e o Tempo lhe mostrou alegrias inomináveis, creio que as primeiras reações são as lágrimas pujantes, as orações de joelhos e mãos postas em agradecimento a Deus por lhe haver dado o Tempo, o húmus de todas as esperanças. A primeira reação minha, tendo percebido estar livre de anos de sofrimentos e dores, foi dizer-me: “Tempo de construir o que sempre sonhei”. Não vieram lágrimas nos olhos, anunciou-me lúcida e transparente uma fé avassaladora na vida e em Deus.
Assim é que, se um homem de Estado escrever suas memórias, tão sem escrúpulos, tão sem pejo, tão sem vergonha, e outras “cositas” mais neste âmbito, que não lhes falte nada, nem confidências pessoais, nem confissões íntimas, nem segredos profundos, segredos de governo, corrupções deslavadas, nem até amores, amores particularíssimos e inconfessáveis, rasgue todos os verbos, queime todos os substantivos, dilacere todos os adjetivos, esgane todos os pronomes de tratamento, ponha sua vida e da nação às claras e em jogo, verá com nitidez que escândalo indevassável levanta o livro. Dirão, e dirão com propriedade, que o autor é um cínico, um verdadeiro traste de gravata de cinco voltas, indigno dos homens que confiaram nele, puseram em suas mãos o direito e o dever de lhes representar e defender em todos os níveis, sociais, políticos, econômicos, e das mulheres que o amaram. Meu Deus, o que é isto! Clamor sincero e legítimo, mister ressaltar com aspas e itálico, porque o caráter público impõe muitos resguardos, omissões e mentiras, segredos, enfim a política é a célula mater, o DNA, dos interesses que ligam todos os homens, se único for afastado, nada será realizado, e, se o for, não será completamente, porque quem foi afastado será sempre uma pedra no sapato, e com ele virão centenas de outros. Os bons costumes, os saudáveis hábitos e manias, os divinos comportamentos e o próprio respeito às mulheres amadas constrangem ao silêncio. O senso verdadeiro diz ao homem de estado que não deve mesmo escrever livro cujo tema é a sua vida, mesmo que não seja para se defender de suas condutas espúrias, das acusações e denúncias injustas, enfim nenhum homem é canalha perfeito. É preferível carregar nas costas todas as censuras e condenações a mostrar a verdade que em si traz. É preferível não ser conhecido por ninguém no mundo, nada saibam dele. As conseqüências serão absolutas, a morte sempre os espreitarão. Só de colocarem a boca no trombone vários já foram assassinados. Não escreveram livros. Se houvessem feito isto, sou incapaz de imaginar como seriam suas vidas antes de serem assassinados. Quantos foram assassinados por revelarem coisas que não deveriam ser reveladas?
Deixai pingar, caríssimos leitores, os anos na cuba de um século. Cheio o século, passa o livro a documento histórico, psicológico, anedótico, motivo, razão, leitmotiv de mofas e chacotas dos homens, de toda a humanidade. Hão de lê-lo a frio, hão de lê-lo através de todos os cálculos da interpretação e análise, hão de lê-lo com lupas muito especiais, não apenas aquelas que aumentam as letras para os astigmáticos conseguirem ler, mas com as que re-velam as entre-linhas com primor; estudar-se-á nele a vida íntima de nosso tempo, costumes, idéias, ideologias, interesses, o modo e estilo de amar, a linguagem e forma de criticar e condenar, a de compor os ministérios e deitá-los abaixo, se as mulheres eram mais animosas que dissimuladas, como é que se faziam galanteios e eleições, com que oratória conseguiram ludibriar os eleitores e deles receberem os votos, se eram usados chapéus de coco, palha, bengalas, que veículos usam, se carroças, tilburis – imagino o general Geiser indo para o Palácio do Planalto depois de uma viagem a Roma de tílburi, que espetáculo esplendido não seria este! -, bíjugos, charretes ou carros de último modelo, se os relógios de pulso eram trazidos à direita ou à esquerda, se os homens os usavam à esquerda, as mulheres, à direita, vice-versa, para contrariarem a tradição, e punhados de “cositas” interessantes para a nossa história pública e íntima. Daí a esperança que me fica de não ser condenado em absoluto pela consciência dos que me lêem. E mesmo que seja, os leitores não me passem a mão na cabeça, me papariquem e façam de tudo para que a minha integridade seja respeitada, ainda me fica a esperança de algum dia alguém diga que os leitores estavam equivocados comigo, o Tempo, como já dissera no início, é um insigne almucábala.
E por que não? Sou homem livre, penso o que quero, sinto o que desejo, falo o que se me revela como verdade minha, não me importando ou dando a mínima para as opiniões, o que através de minha cultura, intelectualidade, sensibilidade, espiritualidades, mostra mesmo o que é a vida, sofrimentos e dores, sonhos e utopias. Fosse eu escrever minhas memórias – já pensei fazê-lo, mas desisti da empreitada  porque sei íntimos e amigos iriam censurar-me por haver dito coisas que não se dizem, mostrado verdades que colocam a minha dignidade em xeque -, nada seria omitido, não mentiria em quaisquer circunstâncias, como o tenho mostrado e demonstrado a cada momento de minha vida; não tenho medo ou vergonha de quem sou, mesmo que esteja colocando minha vida em risco. Penso mesmo que sou obrigado, é a minha função e responsabilidade ser verdadeiro.  Tomando em consideração o Tempo, depois de alguns anos de minha morte, os leitores que me lerem e interpretarem com os olhos de sua época, século, vão estudar a minha mais que extrema, paradoxal mesmo, habilidade com as letras, os jogos e subterfúgios de que me utilizei para fazer críticas ao meu povo, aos homens, às vezes às claras, às vezes às escondidas, não por medo de ser executado em praça pública com a presença de toda a comunidade, como exemplo e advertência, outro não fizesse isto, não denegrisse a imagem de um povo de condutas idôneas, lídima moral, mas por não ser historiador, e sim um literato; como eu pensava, se fui um estudante aplicado, disciplinado, respeitava os professores e obedecia a todas as suas vontades, ou se não fui aplicado, não tirava notas boas, precisei de aulas particulares de algumas disciplinas, sem em Português fui péssimo, se brigava com os colegas à porta do grupo, se os surrava ou se era surrado por eles; adolescente, se era paquerador, se era rebelde, se rasgava os verbos todos na cara das pessoas, se bebia muito, se tive traumas e conflitos atrozes, se fui rejeitado, discriminado, sofri preconceitos de todos os níveis, como fora toda a minha vida, e como cheguei a ser autêntico nas letras, estilo e linguagem inusitados e inéditos na minha terra. Depois vão estudar o meu pensamento, as minhas idéias, o que mesmo sonhava, quais eram as minhas utopias, em que acreditava, como idealizei o mundo. Descobrirão coisas que o meu tempo não teve nem noção, por isto não recebi os louvores e glórias que me eram de direito, por isto não fui compreendido. Todas as discussões, interpretações, análises atravessaram todos os séculos e milênios, e jamais chegarão a um consenso.

Em verdade, em verdade, não houve um só minuto em que estive sentado ao computador, ou nas mesas de bares, que não tenha pensado na eternidade, na imortalidade, queria-me atravessando os séculos e milênios de todos os tempos, queria minha obra sendo estudado por todas as gerações, e para isto era mister ser profundo, mergulhar fundo na minha vida, nas minhas idéias e pensamentos, sonhos e utopias, e ainda contava com os meus dons e talentos, com a iluminação divina, enfim me fora dada uma missão no mundo, e eu tinha de realizá-la com primor, embora jamais me fosse possível não sofrer, sentir dores atrozes,  sofrer, não ter respostas para nada, sempre dúvidas, sempre dúvidas. 

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