PEQUENOS ATOS DE TERNURA - Manoel Ferreira



Setenta anos alvejavam aqueles cabelos brancos, hoje raros, raríssimos. Outrora, haveriam de ter sido fartos, moldura para um rosto de traços sobremodo delicados, bem fotogênica, Fábio Corrêa, pintor, se a houvesse conhecido, teria pintado o seu retrato com perfeição, teria sido uma verdadeira obra-de-arte, devido aos seus talentos e dons. Porém, agora, volvidos setenta anos... setenta? Oitenta? Lembrou-me que, há algum tempo, me confessara setenta e nove. Hoje, aquele rosto bem feito já se mostrava como uma pré-caveira? Descarnado, descolorido, rugas, olhos pretos, sem qualquer brilho, pela ressequida, papada. Vivia só. Só, o que é bem pior do que sozinha! Ocupava um quarto construído nos fundos, com uma janela donde se vislumbrava um fiapo de rua e donde podia ser vista pelos transeuntes sentada à soleira da porta, pregando botões, remendando as roupas dos vizinhos, fazendo tricô. Como arrebique, a janela debruçava-se sobre uma jardineira onde só crescia mato.
Eu passava bem cedo a caminho de meu escritório de contabilidade abaixo do Correio novo, Praça Benedito Valadares, e cumprimentava-a com bondade, abanando-lhe a mão. Certo dia, senti vontade de entrar (o portãozinho de madeira estava aberto) e cumprimentar de perto a doce figura da velhinha. Naquele dia sentia-me um pouco nostálgico, estava precisando de conversar com alguém, não sobre coisas de contabilidade, de minha família, filhos, esposa, de futebol, sou torcedor doente do Cruzeiro, mas outros assuntos, ouvir histórias. Tomamos amizade. Comecei a prestar-lhe pequenos préstimos como comprar feijão, arroz, carne, verduras, linhas para costurar, dedal, botões, postar correspondência para o primo Ewérton residente em Pirapora. Contou-me lances de sua vida. Era de Três Corações. Os pais vieram para Curvelo quando era ainda adolescente. Tinha vários irmãos, cinco, dois do primeiro casamento do pai, um já falecido de câncer na cabeça, três do segundo casamento, ela era do último casamento da mãe, um deles era falecido também, de câncer no estômago de tanto tomar cachaça com conhaque. Como era a mais velha, teve que ajudar a mãe, o pai morrera de enfarto fulminante. Trabalho duro. Na lavoura. Em Três Corações deixara o único amor de sua vida: um primo que nunca mais vira. Nem esqueceu. Claro que tinha parentes aqui, mas tornara-se um traste, um incômodo para o único irmão vivo, que a pusera ali, naquele fundo de quintal a morar de favor.
Não saberia dizer o porquê, deu-me uma ternura grande e, tomando aquele rosto sofrido e entristecido em minhas mãos, curvei-me, carinhosamente, e beijei-lhe ambas as faces ternamente, confesso nunca haver dado um beijo tão terno e carinhoso noutra pessoa. Sabemos quando um gesto delicado atinge o profundo da alma de alguém, quanto mais quando se trata de uma pessoa idosa, carente de amor, amizade. A resposta gratificante é que nos reclama a repetição do carinho. O ser humano é como um animal, que se amansa com mimos e pequenos atos de ternura.
No dia seguinte, dormira profundamente, creio até que sonhara, o que não o fazia havia um bom tempo, sentia-me descansado, tranqüilo, quando passei pela rua e lhe disse: “Bom dia, Dona Fia!” – a velhinha estava a arrancar as gramíneas que brotavam na jardineira de sua janela. No outro dia, estava a fofar a terra, iria plantar alguma semente. Uma semana depois, já se percebiam os primeiros raminhos brotados do gerânio recém-plantado.
- Bom dia, Dona Fia! Que belas flores! Gosto muito de flores, sabe. quando criança, eu tinha minhas plantinhas plantadas em latinhas que eu regava todas as manhãs e todas as tardes. Depois, já mais grandinho gostava de aguar o jardim de minha casa, cortar os galhos das rosas secas, arrancar os matinhos dos canteiros. A senhora é muito cuidadosa.
- Obrigada, meu filho! Ainda hão de ficar mais belas!
Trato e amor não lhe faltaram. Todas as manhãs quando passava à porta de sua casinha estava ela com um pequeno regador aguando os gerânios com um carinho sem precedentes. Era a sua ocupação pela manhã antes de começar a costurar para os vizinhos, o seu ganha pão.  Os gerânios penduraram-se em cachos de flores. Dava gosto passar por ali, vendo os gerânios crescidos, a velhinha feliz da vida com a sua distração.
Faz uma semana aquela janela não se abre.
O sol vivo e ardente tem castigado e muito as flores, que estão murchas e sem colorido, quase a mesma coisa do jardim da casa de minha mãe que falecera de câncer no estômago. Todas as manhãs aguava as suas plantas, varria a área de frente à cozinha.
- Bom dia, dona Fia!

As suas flores choram pela senhora!... 

Comentários