À LAIA DE VAIDADES ESCUSAS - Manoel


Bons dias!

Leitores são leitores, quanto mais quando o são assiduamente das obras de um escritor, qualquer mínimo pormenor observam com percuciência e as perguntas logo surgem a toda pompa, a qualquer momento podem nos encontrar e as fazem, esperando que res-pondamos com sinceridade, não adianta tentar tripudiar, são sensíveis e intuitivos, percebem logo as intenções, e com isso podemos perder não só a leitura deles como também a amizade que nutre por nós.
Empolo-me mesmo desde a raiz de cada fio de cabelo até as unhas dos pés por amar de paixão catar os alhos e bugalhos em todos os lugares por onde ando nesta cidade à soleira do inferno, refiro-me ao calor demasiado – por vezes a empolação vem seguida de calafrios, isto quando chove e os pingos batem-me nas costas, quando abaixo e me curvo para catá-los. Sinto prazeres inusitados com este hábito que adquiri desde tempos imemoriais, tornou-se um hobby para mim. Se pudesse eu ser mais específico quanto ao tempo de catador de alhos e bugalhos, apenas para ser localizado no tempo? Isto é irrelevante, leitores, importa que faz longos anos; se não pensam assim, digo-lhes que a curiosidade matou os gatos, devem pensar nisto com percuciência. Inclusive, segundo alguns conhecidos e amigos, vivesse eu tempo dos vampiros não teria qualquer problema com eles, ficariam todos a léguas de distância de mim, cheiro a alhos e bugalhos. Em nossa modernidade, não mais existem vampiros, mas há seres mais ameaçadores e perigosos que eles, os hipócritas e os imbecis são eles. Sendo tão curiosos quanto vocês o são, digo-lhes que em todos os séculos e milênios de história da humanidade os únicos homens que sobreviveram foram os imbecis e hipócritas, o restante há muito estão enterrados, tornaram-se cinzas.  Eis o que consegui saber a respeito deles nesta longa data de catador de alhos e bugalhos, e isto a curiosidade de vocês estava sedenta por saber, não respondi  à curiosidade do tempo, em compensação o faço em relação a de que modo fiquei sabendo foram os únicos que sobreviveram.
Entendem com estas palavras que lhes digo os alhos e bugalhos que cato, o cheiro incrustado na carne, que amo de tanta paixão, são os repelentes dos hipócritas e imbecis, mantêm distância de mim. Não são repelentes a esta laia de indivíduos – se não existe remédio que cure hipocrisia e imbecilidade, nem orações a Deus de todos os fiéis para se converterem à dignidade e honra, não repelentes para elas, jamais existirão. Fossem repelentes, as indústrias do mundo inteiro já teriam fechado as portas por falta de matéria-prima. São os meus olhos, o modo que os olho, quando os encontro pelas ruas da cidade, sentem na carne nos ossos a repulsa, asco, náusea, nojo que por eles nutro. De uma coisa estou convencido, são sensíveis em demasia, vêem as coisas com extrema facilidade; coisas que os dignos e honrados precisam pensar, refletir para saberem dos seus prejuízos e benefícios, para eles são a absoluta verdade.
São os alhos e bugalhos a minha incólume paixão, além dos entretenimentos em catá-los pelas ruas desta cidade à soleira do inferno. Os hipócritas e imbecis são a matéria-prima do ácido critico que constantemente destilo no meu laboratório. Ah, sim, eis como ganho o meu pão de cada dia: sou vendedor de ácido crítico para as lojas especializadas no ramo, compram e borrifam na caça inteira, não os espanta, mas evita das invejas, despeito deles. Devo ressaltar que os alhos e bugalhos não são ingredientes dos ácidos críticos que fabrico. Catá-los é meu hobby. Aquando criança, catava tampinhas de garrafa pelas ruas para construir castelos, a infância passou, veio a idade madura, passei a catar alhos e bugalhos para nada, apenas divertimento. À noite, retornando para casa, coloco-os todos num saco de aniagem e os jogo no córrego Santa Maria.
Onde ninguém mete os alhos, por medo de críticas e censuras, de preconceitos e discriminações, enfim a conseqüência é desastrosa, a perene solidão, e mesmo de serem surrados por alguém que não admite as suas verdades, aí entram os meus alhos e bugalhos, com a curiosidade estreita e aguda que des-cobre o cheiro deles não neles, que cuidei de tirar deles, não vou re-velar os segredos, mas naqueles que percebem com percuciência a presença deles. Daí vem que, enquanto amigos me disseram do desvio de cem mil reais dos cofres públicos, o jurisconsulto da prefeitura foi jogado no olho da rua pelo Zé das Calças Arriadas, devido a assédio sexual com o secretário de assuntos aleatórios, coisas que entram pelos olhos, nublam as pupilas, dilata-as, quebram os nervos óticos, tergi-versam as retinas, entram pelos ouvidos e quase surdam as orelhas de tanta tremedeira, apertei os meus olhos para ver coisas miúdas, agucei os ouvir para ouvir o canto das lavadeiras à beira dos córregos e rios, o canto dos urubus com os seus passos rebolantes em direção à carniça próxima, cosias que escapam à sensibilidade dos homens, especialmente dos hipócritas e imbecis, aos ouvidos dos cães de plantão. A vantagem dos míopes é enxergar onde as grandes vistas não alcançam, dos surdos aos burburinhos da sociedade e ouvir coisas além das morais, dogmas e princípios dos tempos passados e do presente.
Há uma chapelaria nesta cidade que se inaugurou com chapéus altos em toda a parte, nas portas, vidraças, balcões, cabides, dentro das caixas, tudo chapéus altos. Os hipócrita e imbecis eram os clientes, bons clientes, compram a dinheiro, não os tiram nem para comer ou dentro da igreja, divulgam a todos os ventos o bom produto da chapelaria. Assim, se não há outros, apenas alguns, que têm a sensibilidade e percepção de os sentirem a léguas de distância, é só olharem para as cabeças, se houverem chapéus nelas desta chapelaria não há duvidar são imbecis e hipócritas. Ontem, passando à sua porta, não vi mais um dó daquela espécie com que a loja foi inaugurada; eram muitos e baixos, de vária matéria e formas variadíssimas, o que mostra que a venda aumentou e muito e os gostos também se multiplicaram.   
Não nego que as punições aos pedófilos sejam necessárias, urgentes, especialmente em relação aos padres, enfim é adulterar de modo imoral e indecente as palavras de Cristo, “Vinde a mim as criancinhas”, porque nelas habitam a pureza de espírito e coração, a inocência, ingenuidade, para “vinde a nós as crianças”, porque nelas a carne é fresca, tenra, uma delícia de se tocar, os prazeres são indizíveis. Os pedófilos podem dar de si mesmos uma contribuição inestimável aos valores eternos e espirituais. Mas penso que, ao invés de os padres embarcarem na pedofilia para amenizarem suas carências sexuais, não ficarem se masturbando em seus quartos, deveriam assediar as gatas lindas que freqüentam as missas todos os domingos, manterem encontros libidinosos com elas em lugares bem escondidos, nem Ferluci des-cobrindo; se a mulheres não lhes diz respeito, assediem os gatos, e com eles mantenham relações nalguma beirada de rio ou córrego da periferia da cidade, onde não existam coelhos atrás do mato, onde outras coisas não existam atrás dos coelhos, pois algum(a) fiel pode pegar no flagrante e ir de imediato contar ao bispo, assim serão felizes e acabarão vez por todas com os dogmas da carne. Só a parte moral. A grandeza da fé na ressurreição, na redenção, o direito ao paraíso celestial, faria o elogio a estes padres revolucionários. O regime da abstenção sexual dos padres inspira a descompostura, libertinagem, visto que obriga a todos agirem atrás da moita, real-izarem seus desejos eufóricos e “calientes” na surdina. Se fizerem filhos, e não assumirem a paternidade, para resguardarem os princípios dogmáticos da Igreja, para preservar as tradições, para não acabar com a fé e esperança dos homens, não os obriga a criá-los e educá-los, os bastardos serão a grande e insofismável esperança da verdade e do absoluto. Quanto aos valores que Cristo a-nunciou a todos os homens, esperou em Deus que todos concretizassem, e os padres se entregaram por inteiro a seguir-lhes digna e divinamente, são por parte deles tão contrários uns aos outros que não há crer neles. Os padres exercem funções essencialmente vitais e alheias à melancolia e ao desespero. Antes de a Santa Fé jogar-lhes no olho da rua, era natural fechar as portas dela, enfim ela é o cancro da humanidade.  
E anteontem um traço negro. Registrou um fato triste e consolador ao mesmo tempo, que vem solidificar esta conversa com vocês leitores a respeito dos padres, ainda existem os de dignos princípios, condutas e posturas morais e éticas religiosas. Morreu às nove horas da manhã o padre Carlos Honório aos oitenta anos de idade. Por toda a sua vida, seguiu criteriosamente as Palavras de Deus, os mandamentos da Igreja, dizem os fiéis e beatos que morreu completamente virgem, nunca se apaixonou por uma garota, antes de ir para o Seminário, isto aconteceu aos quinze anos, jamais teve olhares escusos para alguma fiel linda, gostosa, extremamente sensual, e também ninguém o olhou assim, pois que sabia não seria correspondida. Um exemplo de clérigo, isto não quer dizer que os outros de nossa comunidade tenham atitudes escusas. Não. Não se tem notícias de qualquer deslize deles, sempre foram fiéis à batina que vestem. O que difere Padre Carlos Honório dos outros é que estes não são virgens de todo, na adolescência, antes do Seminário, provaram o sabor do fruto proibido. Só isto, e nada mais. Era ele, não elenco diferenças, falo dele próprio, inteligente, ilustrado e laborioso, era também homem bom, prestativo, solidário, compassivo. Os qualificativos estão já tão gastos que dizer homem bom parece que é não dizer nada. Mas quantos merecem criteriosamente esta qualificação tão simples e tão curta: ele é um homem bom? Quantos merecem rigorosamente esta qualificação tão verdadeira e tão real: ele é um homem hipócrita e imbecil? A quantidade destes homens superam a daqueles? O que assombra, o glorioso assombra, espanta, assusta, o intrépido arrebata, o hipócrita e imbecil estupidifica; o bom não produz nenhum desses efeitos. Entretanto, há uma grandeza, há uma glória, há uma intrepidez, há uma estupificação em ser simplesmente bom, sem aparato, nem interesse, nem ideologia chinfrim, nem cálculo frio; e sobretudo sem arrependimento.
Era-o o padre Carlos Honorário; e se a sua morte é um caso triste, o seu saimento foi um caso consolador, fica registrado na história um clérigo que morreu em absoluto virgem, porque essa virtude sem mácula pode subir ao céu livre e consciente que a sua carne foi para cobrir os seus ossos, tornar-lhe homem, e as orações e dignidades com as Palavras de Deus pedidos para que o verbo se lhe habitasse, agora está em absoluto por ele, enfim os verbos se re-velam mesmo na postumidade, na eternidade.
Um devotos riem, a esperança existe, padre Carlos Honório a declamou em versos nos sermões, em prosas, recebendo os fiéis na igreja, enquanto outros choram, e agora quem cantar a virgindade pura e absoluta, quem vai recitar o amor sublime? A providência, em seus inescrutáveis desígnios, tinha assentado dar a esta cidade um benefício grande; e nenhum lhe pareceu maior nem melhor do que certo gozo superfino, certo clímax sublime, espiritual e grave, que patenteasse a brandura dos nossos costumes e a graça das nossas maneiras, deu-nos a certeza e convicção da existência de virgindade de um padre; Ferluci tinha assentado dar a este cidade outro benefício  enorme; isto para equilibrar as coisas; nenhum lhe pareceu nem melhor do que certo prazer sereno, deu-nos a certeza  das alegrias e contentamentos dos prazeres da carne, deu-nos os imbecis e hipócritas, estes superam e muito a virgindade de um padre.  
Não é mais necessário dizer que amo de paixão catar alhos e bugalhos. Os leitores já estão tão convencidos que, talvez, à tardinha, terminando o horário de trabalho, antes de irem  jantar com os familiares, tomarem a cervejinha no restaurante em presença dos amigos e conhecidos, decidam catar alhos e bugalhos por onde passarem até chegarem em casa, fecharem o portão a cadeado, a porta de casa a chave. Os alhos e bugalhos que catei, depois que fui ao enterro de Padre Carlos Honório ainda não os joguei no córrego Santa Maria, cheguei a casa com os bolsos da calça, da camisa, nos braços , cheios deles, coloquei-os no saco de aniagem, e, como me desgastei muito ouvindo os discursos dos padres à soleira da sepultura, choros e até desmaios dos fiéis, estava sonolento, fui logo dormir, deixando o saco à soleira da porta de entrada de minha residência.
Antes de ir jogar o saco no rio, desejei antes cumprimentar os leitores, dizer-lhes do meu hobby, das últimas notícias, embora tristes e desconsoladoras, a morte do padre tocou fundo toda a comunidade













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