PIRUETAS VENCIDAS AOS PÉS DO LOUCO - Manoel Ferreira


Não apenas palavras que se perdem, que seguem a poeira de curvas longínquas...

Que o humor seja negro disto não tenho a menor dúvida, mas, sabendo trabalhar adquire um valor e um sentido. Dois homossexuais estavam sentados numa esquina, quando passou um homem esbelto, estatura um pouco além da mediana, muito bem vestido. Um dos homossexuais, tendo sido vítima de acidente automobilístico, teve de cortar as pernas à altura do joelho, logo se manifestou com a passagem do homem, dizendo que era um homem muito gostoso, um homem esbelto, pele clara e tenra. Chegou até a estralar a língua para enfatizar mais o seu tesão pelo transeunte. O outro homossexual, cego de nascença, percebendo as verdadeiras intenções do amigo, sugeriu-lhe então que corresse atrás do homem a quem se referia com tanta água na boca.

Palavras ditas neste humor negro expressam e fazem chorar os homens perdidos em cada sombra das árvores de morangos silvestres, quando deveriam fazer sorrir os indivíduos em cada instante de suas vidas. Dito de passagem, estive eu a fazer caminhada, quando observei um homem com uma perna amputada, sem muleta, pulando, jogando bola com os amigos. Ainda lhe disse que estava eu muito emocionado com o que estava fazendo, merecia os meus parabéns. Respondeu-me com um sorriso nos lábios que a vida não pode parar. Continuei a caminhada. Retornando o rapaz continuava jogando bola com os amigos, mas naquele momento já com a sua muleta. De novo, repeti que estava de parabéns, a vida não podia mesmo parar. Sorriu e continuou a jogar a sua bola.

Deixou-me, sim, bastante orgulhoso e feliz ouvir que a vida não podia parar, seguia o seu itinerário, palavras que mostravam muito mais sabedoria e inteligência que, se voltasse a ter as suas duas pernas, andando com alegria e felicidade. Sabia este jovem que na contemplação de cada momento no per-curso das horas tinidas pelos relógios, pelos sinos de uma vasta área de plantações, estaria elevando o espírito à busca de um sentimento que expressasse a vida, que não a deixasse inerte por causa de uma infelicidade.

Se não estivesse vendo a realidade nestes tons, devido à muitas discriminações e preconceitos, decepções e medos, ainda assim estaria buscando um modo de viver uma sensibilidade e uma habilidade que necessitam ser expressas, de uma emoção que a concha de mãos deixa escorrer pelos dedos.

Continuando a caminhada, lembrou-me de a mamãe chamar-me a atenção, quando se me apresentava aos olhos alguém com alguma deficiência, dizendo-lhe eu: “Dinha, espia aquele homem sem os braços”. Dinha dizia-me que não ficasse olhando, a pessoa iria sentir-se muito infeliz. Ademais, não usasse em hipótese alguma o termo “espiar”. Algo muito vulgar e digno de pessoas sem qualquer sensibilidade. Aprendesse a sentir compaixão e solidariedade com todos os deficientes físicos e mentais.

De outro modo, não apenas observando o rapaz e a sua deficiência, disse-lhe que estava de parabéns por estar jogando bola com os amigos, aproveitando os bons momentos da vida, desfrutando da alegria e satisfação de uma reunião com aqueles que estima e gosta. 

Talvez, e disto tenho a certeza, havia sim estes pensamentos em seu coração, mas havia muito mais naquelas palavras, dizendo que a vida não podia parar, dizendo de sua alegria por haver superado a sua deficiência, podendo compartilhar dos divertimentos com os amigos e companheiros, desfrutar da alegria que é jogar uma bola.

Que, se de onde fremem os ventos houvesse um gesto de solidariedade, sentiria a presença de vasculhar cada palavra e a extensão de cada linha.  Se de onde sinto este brusco de compaixão e solidariedade, de alegria e misericórdia, com alguém que, mesmo deficiente, sentiu que a vida merece ser vivida com paixão e esplendor, desato a observar todas as coisas, todas as nuanças e veredas, de novo a vibração guarda um sabor úmido a carne que não esquece, a humanidade que não finda, a compaixão que não se esvaece.

Poderia ficar aqui toda uma eternidade e nunca seria capaz de abarcar todos os sentidos que percebi nas palavras do homossexual cego que não podia ver a delícia de homem que passava na rua, e o outro tentou ridiculariza-lo, esquecendo-se de sua própria deficiência. Também a do jovem que perdera uma parte de sua perna, mas jogava bola, e, quando o parabenizei pela sua superação da deficiência, disse-me que a vida não podia parar.

Sempre houve pessoas deste nível, que exigem da vida o que ela tem de mais alto e digno e não podem aceitar com simplicidade as deficiências e os obstáculos.  É precisamente de seus limites, obstáculos, deficiências, impossibilidades que cada um tira proveito e glória, e eu, certamente, ainda mais que os outros. Não haja qualquer discussão.

O que ocorre é que a inteligência é tão perspicaz, e seu sentimento é tão discreto, o vazio noturno revela-se como uma cortina estirada de um canto ao outro da parede, que re-constitui8r e partilhar outro palco onde habite esse sorriso que é o de superação saboreado, da alegria contagiante, da proximidade, abre o ápice das piruetas vencidas aos pés do louco, que leva do imaginário ao simbólico.





















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