ANA JÚLIA MACHADO ESCRITORA POETISA E CRÍTICA LITERÁRIA ANALISA O AFORISMO 290 /**SOU A VOZ DA VIDA**/


Gracinha, penso que afinal é deste que não gosta, mesmo assim brilhou na sua arte e embelezou muito o escrito...pessoalmente gostei muito, mas um texto muito intrincado.
O aforismo da voz da vida de Manoel Ferreira Neto é para mim belíssimo, mas de difícil interpretação…interpreto como aquilo que engendramos, se seremos nós ou não….Penso que estará a falar nas fantasias que idealizamos e que o que trabalha é o nosso subconsciente…e o que será isso da alma? Tentei fazer algo do que penso….


Sabemos que o desvario foi engendrado pelos sonhadores. Nessa escola, o capital do devaneio já se esboça: o afrouxar da percepção, que se desabrocha e conversa com um Outro incluído em si idêntico — um outro que, hoje, apelidamos inconsciente.
O desvario atingiu, a partir de então, lugar nos registados apaixonados, reais peritos desse gênero. Com Jung, converteu-se inclusive em lógica terapêutica, sendo sentido de muitas formas: a pintura, a dança, a escrita automática, próprio resultado da invenção ou do sonho.


Cada sujeito incrementa uma forma peculiar de ter ingresso aos fios de imaginação que não consegue o facultar autenticar para onde vão e nem de onde afluem. A opção de cada uma dessas rotinas há a ver com a pujança proibitiva da percepção; às vezes essa energia é de tal ordem, é tão desmesurada, que só as garras alcançarem idear, modelando ou esboçando formas inteiramente desconheces à consciência.


Quando a defesa da consciência anui, quando adotamos o antirracional e o ininteligível, quando conseguimos ceder as realidades sucederem por si mesmas, é vestígio de que demos um relevante passo no processo.


Somos convidados a praticá-lo apartados, no instante em que um afecto dominador nos subjuga, quero verbalizar, quando habitámos violenta tensão do inconsciente, ou seja, quando uma grande abundância de devaneios e ficções sucedem o tempo todo, ou então quando, sob veemente violência do inconsciente, os devaneios estão travados. É nesse momento que vale à pena engendrar, cogitar activamente, deixar-se acarretar pelo emaranho que, então, ganha emancipação: devaneio desvelado.


A imaginação activa nos faculta ingressar em convívio com essa rede de sentidos saturada que são os complexos autônomos da psique: um complexo é a saturação de sentidos, de fantasias, de impulsos para a atuação, de energia.


Quando um complexo autônomo se constela, o excesso de sentido nele inscrito é devorador, mesmo quando é um “complexo-pedinte”, mesmo quando é pedinte, mesmo quando a carência é o seu cunho! E porque devorador exige, busca, interrompe. É igualmente incivilizado: não possui molde sabido, é sem perfis, quando não defeituoso, anormal, pois que amalgamado com outros formatos sem perfis. Instruir esse desregramento de sentido não é empreitada acessível! Igualmente é coletivo, coletivo que é acessório à alma do planeta, ao inconsciente coletivo. De onde advirão? Ninguém retorquiu a essa questão, pois não possuímos passagem ao que vai para além da consciência, nossa derradeira extremidade; para além disso, o ignoto, e em conexão a ele não nos é facultado enredar oportunidades. O fato é que, como bem diz Jung, enquanto residirmos amarrados a essas ideias coletivas não somos senão grupal!


Jornadear assim por um tempo alongado nos possibilita eleger uma etnografia da alma e, desta feição, vamos nos topando com locais mentais demasiados, incivilizados, coletivos e energizados ao máximo. As imaginações e os rasgos coletivas se avolumam. Reconhecemos a execração que somos. Mas, igualmente, e muito aos poucos, essas forças e imaginações se metamorfoseiam em experimentado e sentido e, com isso, nutrimo-nos e nos adjetivamos de nós próprios! Muito aos poucos, começa a haver uma não ativação das forças e das ficções. Muito aos poucos, vamos jornadeando para o esvaziamento desses lugares psíquicos. Muito aos poucos, esses lugares se transfiguram em espaços: com redução de eficácia e com poucas — e de escolha — descoradas imaginações.


Convertem-se em espaços psíquicos não potencializados.
Desocupados — porque não só autenticados, mas igualmente ornados psiquicamente — os lugares psíquicos da progenitora, do progenitor, do bem-querer, do domínio, da erudição, do másculo, da fêmea, de Divo podem facultar lugar e privação para faculdades criadoras. É preciso persistir nisso: não se exaurir um lugar psíquico sem excessivas porções de desapontamento. Esses lugares psíquicos são a morada, num primeiro instante, de imaginações coletivas, oriundas, paradigmas.
É quando começamos a possuir pasmos, pasmo de um cogitar não conjecturado, pasmo de novas faculdades criadoras, de insights imparciais: admissão de oferendas de sentidos não inventados pelo ego e igualmente não resultado do partilhar.
O indivíduo é súdito do tempo, sim o real criador que nos engendra e nos desfaz. Brinca connosco e faz com que sejamos peregrinos ou estranhos no globo Terra. Não sabemos onde a alma reside — quiçá nem exista! Sabemos que possuímos um físico limitado e que, provavelmente, seja nele que a alma cause a sua morada. Disso sabemos todos. Sabemos igualmente que fazemos vigia e significação e que acercam componentes bruto-afetivos que imaginamos que apareçam do físico e que, com muito empenho, fortalecemos o aguardar, hospedamos e trasladamos para o que apelidamos espaços ocos da alma. É do físico e no físico que algo da seriação do inexplicável surge e impõe hospitalidade e auscultação.


E como diz o autor:
Ao alvorar do porvir distintas peças suaves e aromatizadas desabrocharão ornatos rudes nas semíticas e caminhos por onde pisar...


Ana Júlia Machado


#AFORISMO 290/SOU A VOZ DA VIDA#
GRAÇA FONTIS: PINTURA
Manoel Ferreira Neto: AFORISMO


Rouxinóis em colóquios a intervalos, e ouço como voam sobressaltados de um lugar a outro. Um rouxinol tentou instalar-se numa folha de mangabeira num terreno baldio frente à minha residência, e, quando saí à porta, ouvi que se mudara para além, numa antena de televisão, onde trinara uma vez e calara-se, igualmente em expectativa. De que estava ele à espera?


Era em vão que procurava acalmar-me: esperava e desejava algo, e não sabia, de antemão e revezes, se seria realizado, até cria que havia possibilidade de não o ser, por outras razões muito diferentes da que estava a imaginar; e isto me exasperava sobremaneira, uma tristeza muito profunda perpassava-me as entranhas, necessitando de algo que me despertasse a atenção para a vida, para as coisas, para o mundo, enfim, para toda a eternidade.


Ao mármore, pastas, sob o mármore, pasto serás, sobre o mármore, quanto tempo, não mais sendo... quanto tempo, sob o sol, ficarás?


Entre mármore, és, foste, serás: Com ele, por ele, nele, Os Extremos dos matizes Esgotaste e esgotarás, Mesmo que in-vertas, Per-vertas, con-vertas... A ordem natural das coisas...


Decorando-te a noite o dia e enfeitando-se o dia a noite.


VERNEINUNG. - “Ferirei o Pastor e as ovelhas se dispersarão”. - Ainda que todos se escandalizem de ti, eu nunca me escandalizarei... - “Em verdade, eu te digo que, nesta mesma noite, antes que o galo cante, três vezes, me negarás”. - Ainda que me seja necessário morrer contigo, de modo algum te negarei... “E, da mesma forma, diziam todos, também!”


Querendo negar, não negou: Verneinung.
No clímax da saudade alegria não há, prazer não há, felicidade não há, não há sequer miríades de ínfimas alegrias. Não há pecados, nem recados.


Sem querer negar, negou: verleugnung.
No clímax da saudade longínqua, num lugar que não há, sem distância se estendendo, se esconde a razão da saudade em espaços não conhecidos, sabidos.


No entretanto, na ausência de vento, a nuvem desce cada vez mais; tudo se torna mais quieto, mais cheiroso, um cheiro de mato, de serras, de terra, e de repente cai uma gota e como salta sobre a vidraça da sala de estar, onde fumo um cigarro.


O que é isto? Será, de verdade, a voz da vida que me questiona. Talvez não. E a voz interior responde-me: “... sim, é verdade, sou a voz da vida...” Seja sim a voz da vida, gostaria que me respondesse a uma única questão que me venho fazendo desde que me entendo por um indivíduo. Responde-me: para que o sofrimento? Olhando-me de soslaio, um sorriso nos lábios, as faces límpidas, dir-me-ia “...à toa, sem finalidade...”. Só poderia ser ironia, sarcasmo, cinismo da parte da vida, com certeza estava a fazer menos de minha inteligência, um destes pitis de homens que estão prontos e acabados para qualquer eventualidade, para as grandes coisas, mas em se tratando das pequenas são uns fracos e covardes, sabendo de antemão que a resposta não poderia ser outra, a vida é à toa...


Dolmens, menires, cavernas abrigavam o homem primevo. O civilizado erigiu seu teto, de variada forma, palácios, arranha-céus...


Valia-se o primevo da água do mar, do lago, da lagoa, do rio, do arroio, da catarata, da cascata, da bica. O civilizado trouxe a água
para a sua casa...


Lá fora, de dia, arde o sol. De noite, a lua e as estrelas, Com sua vacilante luz. O civilizado trouxe a luz para a sua casa...


Ao amanhecer do devir distintas pétalas brotarão flores selváticas nas sêmitas e trilhos por onde contundir...


(**RIO DE JANEIRO**, 18 DE OUTUBRO DE 2017)


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