#AFORISMO 282/POR QUE DES-LOCAR E DES-COLAR O POETA DO "EU-POÉTICO# - GRAÇA FONTIS: PINTURA/Manoel Ferrreira Neto: AFORISMO


Por que deslocar e descolar o poeta do "eu poético"? O poeta é o escrevinhador, quem empreende a longa viagem pela paisagem da linguagem intencionando um ser espiritual divinizado, viagem intros-pectiva, o conhecer o que habita as entranhas da alma a partir das situações e circunstâncias vivenciais e vivenciárias, dores e sofrimentos ocasionados pelo efêmeros existenciais, felicidade, prazeres, realizações, fracassos, glórias e frustrações, verdades e in-verdades, projetos e intenções, utopias e sonhos, o artista é a origem da obra.


Nenhum caminho está dis-ponível para se in-vestir nele, se o poeta não se conhece, sabe de suas con-ting-ências in-conscientes e conscientes, sua autenticidade e suas mentiras, suas condutas e posturas irresponsáveis e responsáveis, mauvaises-foi e manques-d´êtres. Assim o "eu poético" se a-nuncia, iniciando a viagem para o seu conhecimento que só acontece com o exercício da prática poética, o escrevinhar poesias em harmonia com o quotidiano das con-tingências.


Ao invés da re-velaçao do ser e dos entes na linguagem, tem-se buscado a adequação instrumental da semântica aos pers das esperanças do verbo e do espírito, do signo à sua designação, a linguística às pectivas do verbo que des-vela os mistérios da busca do ser espiritual divin-izado. A concepção do ser essencial da linguagem enquanto um dizer como mostrar guarda uma predominância implícita da visão como o sentido intelectual por excelência.


O dizer não é algo meramente adicionado aos fenômenos, mas sim a aparição radiante deles. O pensamento não é um a priori nem um a posteriori da linguagem mas ambos estão intrinsecamente ligados, um sendo a condição necessária de existência do outro. É a linguagem, enquanto casa do ser e moradia do homem, tendo por guardiães o pensador e o poeta - outra razão por deslocar o poeta do "eu poético", estabelecer um diálogo entre o pensador(o poeta) e o "eu poético"(o ser que busca a espiritualizada divinizada -, que possibilita e torna necessário o encontro do pensamento teórico com o texto poético. Aquela érita questão de saber se a crítica (por pensar o pensado, transcendendo-o e, portanto, colocando-se num estágio superior da evolução do espírito) tem uma dignidade maior que o próprio texto, ou se a literatura e o escritor são superiores à critica e ao crítico (pelo fato destes serem parasitários, vivendo da vida e da morte do texto) acaba por tornar-se ridícula, pois pressupõe a imposição do monólogo, seja do crítico sobre o autor, seja do autor sobre o crítico, impedindo o diálogo possibilitado e necessitado pela linguagem.
O encontro do pensador com o poeta, o encontro do pensador que sugere o seu não-dito ao procurar re-velar o não-dito do poeta, acaba sendo não só o mero encontro ocasional da personalidade de um pensador com a personalidade de um poeta, mas o encontro mais fundamental e originador que é a linguagem, e especialmente o não-dito ou não-ouvido da própria linguagem, a linguagem enquanto inter-pretação do mundo, enquanto relação do homem com o ser e com os entes. É o encontro dos guardiães - o poeta e o pensador - na casa do ser: a linguagem. Aqui, pode-se endossar com excelência as palavras de Mia Couto: “Cada um tem duas margens: uma em cada lado do tempo". As duas margens que me habitam são o poeta de um lado, o pensador do outro.


O diálogo entre o pensador e o poeta é possível devido à relação fundamental e diversificada de ambos com a linguagem. Todo pensamento verdadeiramente re-flexivo é poético, e toda poesia é um modo de pensar. Ambos estão necessariamente juntos, próximos entre si, sem se confundirem - como duas paralelas que só se encontrarão no infinito. Na tensão entre ambas há o mover-se. Uma não deve reduzir-se à outra. A aproximação possibilita o diálogo: este se mantém enquanto não ocorre o encontro redutor. A aproximação do filósofo com o poeta não é ocasional: pertence à própria natureza do pensar e do poético, sendo também condição necessária ao desenvolvimento de cada um deles. O dito "poeticamente" e o dito "pensativamente" nunca são o mesmo. Ambos podem tentar dizer de modo diverso o mesmo, ambos podem tentar encontrar-se num in-finito, mas não são o mesmo: querer que o pensamento se torne poesia, e a poesia, filosofia, é querer anular a diferença entre ambas, a diferença que possibilite eventualmente o avanço para um infinito.
Retalhos de liberdade elaborando a colcha de escolhas entre o pret-érito das volúpias da glória nascida de conquistas das querências de as virtudes serem a luz do ser, o in-fin-itivo dos êxtases da cor-agem de des-envelar, des-vendar o oculto do que trans-cende das intempéries da con-ting-ência do bem e do mal, do inaudito e o clarividente, a neblina que cobre a montanha e os raios de sol que in-cidem nas margens do terreno baldio da alameda que leva ao pampa de orquídeas e lírios, a gnose do saber a sabedoria que vela a omnisciência do absurdo, omnipotência do vácuo, é que tudo acaba onde começou, a contradição do nada que não é o efêmero e o efêmero que não é o nada, a dialética do não ser o que se é e se ser o que não se é...


A poesia é o nomear que instaura o ser e a essência das coisas, não é um dizer caprichoso, o "eu poético" cria, re-cria, inventa pers e pectivas da linguagem para revelar do verbo do espírito a espiritualidade, o poeta e o escrivinhador da poesia e do "eu poético".


(**RIO DE JANEIRO**, 17 DE OUTUBRO DE 2017)


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