#AFORISMO 301/A VIDA FAZ TEIAS NOS VASTOS MURAIS# GRAÇA FONTIS: PINTURA Manoel Ferreira Neto: AFORISMO



Ali, à face da montanha, vejo sumir-se, nos pingos dágua, expressando de outro modo asco e náusea que me habitarão, enquanto for vivo, mesmo debaixo de sete palmos, mesmo por toda a eternidade até a consumação dos tempos, e serão sentidos por qualquer indivíduo, embora a sua sensibilidade seja apenas para sobreviver no mundo, a mentalidade bem menor que o salário do egregíssimo Prof. Raimundo, seguido também do egregíssimo Orlando Lero-Lero, o milagre da obra humana, a magia das esperanças de algo ser construído à luz da verdade e do amor. Na minha voz tranqüila, impérios ruíram, orgulhos e vaidades escusas desmoronaram, ostentações de moral e ética indevassáveis quedaram sem direito a único suspiro, até as letras, em princípio, uni-versais e eternas conheceram o nada e o vazio do nascimento da razão, uma luta de morte pré-cede todas as mudanças, no sil-êncio da ordem uni-versal rigor da razão cobre o tempo novo, a fé nova que nasceu, as velhas que se transformam, mudam de fisionomia, mudam as faces.

Todo dia, faça chuva ou faça sol, há o jogo de luz e sombra, jejum repleto de gula, o réptil subreptício com sua gosma de íntimo. Quem não sabe dos buracos negros nas profundezas do poeta? Quem não conhece os vazios e nadas nas pré-fundas do escritor? No observatório do coração alucinado, perdido nas costelas das constelações, nas costas das estrelas e da lua, de sonhos e atônitas realidades, o escritor, o poeta são galileus no breu das inquisições. Todo cair da tarde a toada de medo, de insegurança, poema ou prosa de merda, merda de prosa poética, o morrer que começa feito cócegas nos dedos.

Ouço, só, só no ser e verbos entre todas as ad-jacências do amor aos sonhos e utopias, quimeras e fantasias, o silêncio, silêncio afogado e úmido como um longo suor frio, na medula espinhal ou no joelho que separa a perna da anti-perna, silêncio branco e sepulcral. Quero amanhã lembrar-me que fui embora, larguei o passado à mercê do esquecimento do tempo, da indiferença e desprezo humanos. Jamais me esquecerei do olhar do ator John Wayne no filme Rastros de Ódio, o olhar perfeito do desprezo, só por ele merecia um Oscar inédito na história do cinema, o Oscar do Olhar verdadeiro e sincero, e nenhum ator senão John Wayne seria capaz de mostrar-lhe nas telas mundiais. A Academia não dera a mínima para este filme. É com esse olhar que olho a hipocrisia humana, a história de certo povo. Na face dos prédios alastram-se manchas de água, o rodar dos carros estruge no enlameado da rua feita de pedras, o meu bafo quente coalha nos vidros turvos – disse-o nalgum instante de minha vida, em circunstâncias e situações de que não me lembra, mas agora expilo a fumaça do cigarro à mercê do vento que se dirige ao leste do paraíso celestial, naquela época a diferença de sentido e sentimentos reside aqui, hoje o éden está muito íntimo, entrelaçado em mim, comungado a todas as dimensões de minhas re-versas razões e in-versa sensibilidade, avessa intelectualidade e intuições do cogito ergo sum, lembrando-me do filósofo Descartes, apesar de que não tenhamos quaisquer semelhanças nos interesses e objetivos, nas idéias desfaço-lhe as seguranças e certezas do que há-de vir, o por-vir tranqüilo e sereno, sem quaisquer dúvidas, a ciência pura e absoluta da vida, acompanhada da intuição, percepção, imaginação, inspiração, enquanto que o paraíso celestial ao leste está bem distante de mim, só mesmo na imaginação o concebo, e o desejo é de me aproximar dele, saber-lhe. E imerso assim em umidade, quase alcançando a lod-icidade, com os pés frios, esmaga-me um cansaço sem tempo, um abandono absoluto da vida e da morte.
Sempre um sepulcro sutil debaixo do edredom e cobertor, altas horas da madrugada, minutos antes do canto do galo, na arapuca de Morfeu os pesadelos de Sísifo, assim ou assado, em si mesmo petrificado – narsísifo en-si-{mesmado}. Vomito finalmente o mito repelente, o mito indecente e indecoroso, o mito refutável e descartável: ad-mito ser gente, con-sinto em ser humano, estar à mercê do tempo, estar sujeito a trans-formações, estar sujeito a ser o outro de mim, envolvido em todos os princípios e verdades do final.

Três horas da madrugada: reclamam as asas da alma espaço para voar além do corpo e do catre, além do bairro e da praça, além do chapadão e dos córregos, quer a alma excitada voar além da cidade, além das florestas silvestres, apesar dos morangos e pêssegos deliciosos e apetitosos, que tanto aprecio, além dos mares que se perdem no infinito, confundem-se com as nuvens brancas e azuis, deixam olhos extasiados e voluptuosos de prazer com a beleza e magia do uni-verso, universo que des-lumbra o barroco de sua apoteose, que a-lumbra o expressionismo dos sofrimentos e dores da alma, suas tragédias homéricas e ulisseanas. Pois que voe a desalmada, voe mais que águia, deixando o corpo em soluços, dissolvido sonrisal, alka-seltzer num copo de solidão. Sempre uma dose de angústia sobre o acrílico do medo no barzinho da periferia onde, amargo, me exilo, penso e sinto o que me convém, o que está de acordo com a minha alma e ser, as saudades indescritíveis e indizíveis de minha querida Pitibiriba se me anunciam todas, sou todo saudades, sinto-me sendo o outro de mim, e mando o resto para a “tonga-da-mironga-do-cabuletê” ou pentear macaco no pálido crepúsculo das montanhas...

Apesar de tudo quanto mais latir mais assustarei, deixarei os ouvidos sensíveis, até paranóicos, a alma em alvoroço com todas as dores e sofrimentos. Apesar de tudo quanto mais discriminado e perseguido mais o que latir irá ser inscrito nas laias e estirpes da história das hipocrisias e falsidades da raça humana. Apesar de tudo quanto mais perdido mais encontrarei as veredas por onde trilhar os passos em direção aos infinitos da eternidade e imortalidade. Apesar de tudo quanto mais traído mais resplandeço, mais a minha estrela brilha no espaço sideral – sensível e espiritualmente envio beijos a amiga muito querida, quem num cartãozinho dissera-me da minha estrela que brilha. Apesar de tudo quanto mais responsável e compromissado com os ideais de liberdade e sinceridade mais me sentirei disposto a seguir a jornada que a mim foi vocacionada desde toda a eternidade. Apesar de tudo quanto mais unido às buscas mais menos serei. Minha memória eriça a fúria das ondas e nas profundezas do coração, lá nas suas pré-fundas, uma velha bandeira de pirata.

O céu, forrado de estrelas, é um olho arregalado na penumbra do alpendre onde sombras se apalpam. Onde sombras se fazem de carne, cheiro de vida, de carne sendo mordida, de carne, luz encarnada. A lua, em quarto - minguante, é um seio de soslaio que uma língua procura.

Sigo a jornada dos obedientes, sabendo que no meio do mundo há quem empurre a pedra com dinamite nos olhos. Montado num jegue, saudando sertão a fora com os braços desenhados no ar. No canto, peças do cangaço que se paira, e paira o sertão nas sombras ócias da noite, nos vultos preguiçosos da madrugada. Cangaceiro é lua cheia no sertão, e vem a noite, vem a brisa; no sono, a recordação. Na verdade, na verdade, a lua não se interessa pela conversa baixa, cochicho, sussurro dos gatos, dos ratos e dos homens – uma fraude fatal a favor de fulano de tal e cicrano bis. As paredes de cores e cores e cores estão imitando o poeta dos versos livres/oprimidos, o escritor de prosa re-versa/inversa, o homem de silêncio/latido; estão imitando o filósofo das revelações e averiguações do porque da vida obscura, misteriosa e seus desencontros; estão imitando o apenas e o tudo/nada sem igual, sem raiz de um touco morto pelo progresso, pela indiferença, pela modernidade que enfim assumiu que morreu, caiu vez por todo no chão duro e trincado pelos raios do sol, seu esquife está sendo levado para o sepulcro no pálido crepúsculo da primavera, em verdade final dela.

Onze e meia da noite, pós aula no curso de doutorando, encontro-me na Peixaria de Salomão, comendo um peixe à passarinho, tomando um gim, ouvindo a algazarra dos clientes, o silêncio do lugar, terrenos baldios, lotes vagos, latidos de cães, grilos.

A vida, uma alegoria ou um pó que grita, que passa, explode e mofa? Hoje sinto a emoção verdadeira de uma entrega, e com tantos dissabores e enganos, uma entrega que se torna um fruto delicioso de sentir o seu gosto, pois reguei a semente até ver a árvore dando os seus frutos. Não digo que chegou o instante de chupar os frutos de minha árvore. É instante de ver os frutos amadurecerem e caírem da árvore – isto é muito bom, excelente, maravilhoso, mágico, pois que é a-núncio de que outros virão, ainda mais deliciosos. A árvore sente e repele, rejeita a nudez crua do boêmio não original, farsante da boêmia, vestiu a camisa, o corpo encolheu, diminuiu, tornou-se nada, de ouvidos elétricos.

Re-nascer é inevitável. Re-nascer como homem, ser humano é um privilégio, ser divino-contingente é uma dádiva. É o único estado que permite realizar o despertar de nossos pecados e culpas. O raio almíscar e gelatinoso de nada, esvoaçante nas dobras de uma cortina adocicada: um vôo, um alçar vôo no tudo, no nada, na imensidão de uma brisa serena e simples, em sua pequena asa esvoaçante. Uma bailarina passando no fundo azul e dilacerante de asas e gritos e sussurros, de uma leve brisa de nada e de silêncio. Um gemido na noite do nada e do absoluto. Uma pausa. O eco. O eterno profundo.

O que se ergue, desabrocha, floresce e dá frutos, sorrindo ao Sol e ao uni-verso é a semente que virou árvore. Mas somente pode triunfar porque o húmus, rico e fecundo, lhe deu generosamente os nutrientes, ingredientes. Triunfa a águia porque abre caminho para frente, triunfa o homem porque transforma suas dores em esperanças e utopias. A cada instante se muda não apenas o instante, não só o lugar do ponteiro do relógio, mas o que se crê nele, espera-se dele, deseja que ele realize, a vida passa entre viver e ser, entre re-versos pilares e horizontes. Quiçá a vida seja inglória, não sei se deveria pensar assim, pois que há instantes em que é pura glória, é puro resplandecer, outros há que não, é inglória, mas, com efeito, conhecê-la é inglório, a sede de conhecimento transcende o próprio conhecer. Se recordo o que conheci de mim, sentindo-me contente, prazeres e alegrias perpassando-me, outrem me vejo, e o conhecimento de antes, o passado é o presente que me habita a lembrança. Quem fui é alguém que amo, contudo somente em sonho. Feliz aquele a quem a luz do conhecimento se lhe a-nuncie, mas não todo. Que pesa o escrúpulo do pensamento na balança da vida?

Aluno, estando eu aqui na mesa comendo um ensopado de peixe, aproximou-se de mim, dizendo ser muito simples escrever numa mesa de restaurante, bar. Convidei-lhe a sentar-se, escrevesse o que desejasse, faria o mesmo. Depois de quinze minutos, tendo preenchido uma folha de agenda, ele escrevera apenas dois parágrafos. Disse-lhe haver ouvido de um professor, nas mesmas circunstâncias, comendo uma porção de carne com mandioca, tomando um branquinha, dissera-me ele: "O professor deve ter a engenhosidade e arte da escrita, quanto mais um catedrático de universidade. Chegará o seu instante de perceber isto. Necessário a entrega."

Estou só. Luzes acesas, sombras corporais. Paredes encortinadas, cantos semi-áridos. Janelas entreabertas, roupas, objetos e jornais. A vida faz teias nos vastos murais... Vai no meio em romaria, está no fim do verbo amar, é a razão de haver a ilha, aí de mim, eu morreria se parasse de remar essa barca redondilha. Ninguém o sabe, não porque não o permita, não o con-sinta, tudo faço para não me deixar ver nas percuciências de minha alma, simplesmente porque esta minha solidão é mais que particular, é a minha essência, é o meu ser. Silencio-me e finjo. Finjo sem fingimento, pois que assim sinto que não tergi-verso o que em mim habita, não tripudio com as verdades em que creio impiamente, não jogo a carta da proscrição, esperando ser absolvido do erro de querer ser perfeito, feliz – a cada coração o único bem de ele poder ser dele.


(**RIO DE JANEIRO**, 21 DE OUTUBRO DE 2017)

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