#AFORISMO 305/ACOCORADO EM MISÉRIAS# - GRAÇA FONTIS: PINTURA/Manoel Ferreira Neto: AFORISMO


Estou só. Habito um mundo de brancura e de silêncio, a solidão de um homem sozinho que tem de reconstruir o mundo, quando tudo tiver regressado ao princípio de tudo, no cenário branco inicial da pureza.


Passam algumas bicicletas, homens debruçados sobre o guidom. Um grupo de jovens solitários, melancólicos, sonolentos, passam carregando enxadas, depois duas mulheres jovens, pedalando devagar, alheadas, as bicicletas balançando desajeitadas porque as moças estão com sono. Parece que as pessoas, como as ruas, se tornam transparentes e fluidas, pois junto a elas, atrás delas, entre elas pairam os mortos. Por detrás de edifícios em ruínas, erguem-se os contornos e formas da cidade que será ainda reconstruída.


A brancura das nuvens se confunde com a brancura do silêncio. Choro de alegria, prometi-me não o fazer estivesse triste ou desconsolado, desesperançado ou deprimido. Os sinos bradam para o vazio do mundo. Espero que me retornem ao ventre, acocorado em miséria sobre o lume que se extingue. Cântico dos anjos da anunciação!... Cântico dos anjos das trevas e do desastre!... Numa espécie de calendário interior, os acontecimentos vão marcando, pela incerteza, ambigüidade seqüencial, ao longo do tempo a memória, tanto pode haver ocorrido antes ou depois.


O sofrimento – curioso como quiçá me possa parecer – é o meio de vida porque é o único meio através do qual tenho consciência de existir; a lembrança dos sofrimentos passados me é necessária como um testemunho, uma prova de que continuo a manter a minha identidade. Entre mim e a lembrança da felicidade passada existe um abismo não menos profundo do que aquele que me separa da presença real da felicidade. Se a minha vida houvesse sido como o mundo a imaginava, uma vida de prazeres, libertinagem e risos, eu hoje não seria certamente capaz de lembrar um só momento dela. Por haver sido tão cheia de dias e momentos de cumplicidade cínica em que muita coisa não é dita, e que quase torna irrelevante o prazer de outros homens me invejarem, melancólicos ou desagradáveis pelas suas cenas monótonas e violências indecorosas é que posso reviver cada incidente nos seus mínimos detalhes, e, em verdade, quase não consigo ver e ouvir outra coisa além deles.


Em verdade, não sei dizer se, tão cheio de meu vazio, um deus cresce dentro de mim, estou só, e o universo à minha roda, poderoso e nulo, é a sensação mais nítida, na infinitude limpa dos meus olhos, a frescura, a claridade. Para tudo estou com a resposta pronta, não vacilo em coisa alguma, a respeito de nada tenho dúvidas, noto que possuo o hábito de muito e com frequência palestrar com pessoas inteligentes, nobres, sobre os mais variados temas. Na qualidade de indivíduo exótico, paradoxal, estou acima de tudo, e por isso não consigo dominar-me inteiramente. Quando converso, tenho o hábito de tocar levemente nos braços de meu interlocutor. Que é que pode significar a morte? Nada pode significar nada em face do que é exato, categórico...


Um fulcro, uma certeza fora de mim, por mim escolhida, mas existindo na realidade, conferido com ela, ordenando-a, fixa e apesar de tudo mutável, limite máximo da minha direção, do meu impulso cego e absurdo. Não posso mais fingir que nada observo, tudo me é de todo indiferente, não posso ver-me empalidecer, secar, chorar, não posso, não posso! Sinto-me como se estivesse na caldeira do diabo. Sinto náuseas, quero encerrar-me num claustro para sempre. Creio que a minha intenção em estar escrevendo isto é lavar tudo com água lustral de alguma prece. Desejo desperdir-me. Não desejo que me retenha.


Há algum tempo, um grande amigo meu veio visitar-me e disse que não acreditava numa só palavra do que afirmavam a meu respeito e desejava que eu soubesse que me considerava inocente, uma vítima de uma trama hedionda.


Velha solidão, desde a revelação da vida no espanto do mundo, olho-a com uma angústia sem razão. Mais velha do que o tempo!... é uma indiferença vazia, a nulidade do pensar, a ignorância que se não sabe ignorante.


Eu só, irredutível, princípio e fim, fechado, único e para sempre. Quê alucinante! Assim mesmo, como é fascinante imaginar-me em você, na sua fulguração.


(**RIO DE JANEIRO**, 22 DE OUTUBRO DE 2017)


Comentários