#AFORISMO 310/COZINHANDO O GALO N´ÁGUA FRIA# - GRAÇA FONTIS: PINTURA/Manoel Ferreira: AFORISMO


Viver é ser tangenciado a princípios, valores, ética e moral no singular ou no plural, regras e normas, mesmo que tudo isso seja conto do vigário, estória da Carochinha, seja nada, a vida tenha sido o incólume vazio, a morte acaba com tudo felizmente.


Seja assim, seja assado, seja cozido, seja de outro modo, seja nu e cru - imagine-se um galo nu e cru: quê delícia!!! As imaginações fertéis vão interpretar de modo jocoso, mas estou dizendo daquela ave que vive correndo atrás das galinhas no galinheiro o dia inteiro e por volta das três e meia, quatro horas da madrugada, começa a cantoria.


Lá vou eu, mochila nas costas, por este mundo sem porteiras a fora, cozinhando o galo n´água fria, e não me venha dizer "devagar e sempre: eis a questão", "é devagar que se chega ao destino", o estômago já me enviou mensagem, dizendo vai participar sua mudança para as minhas costas, a fome é secular. O que responder? Vou levar um cerca-lourenço daqueles: "Quem disse que água fria cozinha alguma coisa? Seu imbecil de galocha, bengala e chapéu de coco! Lerdo. Você precisa de uma mulher chata, ranzinza para aprender a ser esperto. Xantipas não existem mais. Seria um primor para você." Abaixaria a cabeça? Como jamais aceitei, permiti, con-senti abaixar a cabeça em quaisquer circunstâncias, poderia responder: "Está bem. Vou mudar a água fria pelo fogo morno. Vou cozinhar o galo em fogo morno. Vai demorar estar cozido, mas estará. Deixe comigo". O gambá iria pegar com todas as evidências possíveis e impossíveis, teria de enfiar a cabeça no buraco de tatu jamais tirando-a de lá. Imbecil de galocha, chapéu de coco e bengala seria pouco para ouvir. Pensemos com os cotovelos sobre a mesa, as mãos fechadas amparando o queixo, lábios cerrados, olhar perdido nas arribas de confins.


Galo do reconhecimento pelo que se ama fazer. Ontem arrebentei a boca do balão com um estudo sobre engenhosidade e arte na feitura de qualquer coisa, considerando o espaço em que acontece, o imaginário, como exemplo o cozinhar o galo. Em água fria, calmamente, deixando as coisas surgirem espontânea e livremente, de cara os epistemologistas diriam não haver qualquer episteme na água fria, não há o fogo para coser, água fria nada coze, alguém acreditava ser possível, reconhecimento pleno. Se hoje tenho dificuldades de redigir um bilhete para a cozinheira vir cozer o frango com a sua arte, o fogo no ponto, deixando a água ferver naturalmente. O sarrafo desce com vontade, sem dó nem piedade, sou um debilóide, comprei o diploma. Se amanhã enjaulo um presidente da república por corrupção deslavada, na cela dos comuns, sem quaisquer privilégios, a Nação aplaudirá, nem nas Alagoas dos Insurrectos isto foi possível. Isto não significa cozinhar o galo n´água fria? Ninguém quer saber dos abismos e planícies das jornadas: para ser reconhecido faz-se mister vitórias às pencas. E lá vou eu pelas estradas com as calças na mão...


Galo da felicidade...É mais fácil subir aos céus em vida, não morrer, não estar diante do Juízo Final, dando testemunho dos pecadilhos e pecados até além das fronteiras do inferno inconcebíveis... Casamento de entregas, verbais, incólumes, fidelidade e lealdade insofismáveis, atenções exclusivas impreteríveis, mas num momento da vida o vento soprando ao contrário, tudo isto se dá no mata-burro das contingências, na sarjeta das desgraças, o desquite é quase inevitável, depende de mim dar saltos sobre abismos um atrás do outro, qualquer deslize o sem-profundidade estará à minha espera, vou ter de cozinhar o galo da felicidade no fogo morno, vou demorar resgatar a felicidade vivida e vivenciada, mas resgatarei. Se não conseguir vou empurrando com a barriga o casamento. Nos tempos de Lourenço, o que Deus uniu o homem não separava. Hoje é o tempo de Zé Mané: o que começa errado termina errado, o que começa certo, haja tempestade, haja dilúvio, há-de de continuar certo.


Galo das buscas da eternidade... O eterno, dizem, é imaginação fútil, é fuga das dores e sofrimentos, é incapacidade de se ser útil na vida, mas desde tenra infância ouvi da minha saudosa mãe que ser eterno é dançar com as mãos, trocar os pés pelas mãos, na linguagem mesma dela: "O saci dança com as mãos e pula numa perna só". Neste sentido, de cozinhar o galo na água fria significa andar à luz das contradições e dialéticas, o saci dançar com as mãos e pular n´única perna, digo: "Na sepultura, tudo se tornam cinzas, na contingência da vida tudo se torna cozinhar a vida na água fria carioca à beira de uma praia isolada."


(**RIO DE JANEIRO**, 24 DE OUTUBRO)


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