**MAR LÚCIDO DE TEU OLHAR** - Manoel Ferreira


Mesmo o fulgor do que acontece no tempo e salta para além dele, uma música de outrora, mistério das coisas simples, vêm ter comigo e é na dimensão última de mim que tudo se revela e tem razão. No contato comigo, na convivência com a raiz íntima de mim é que a beleza são o indizível e o insondável, é que a esperança são o ininteligível e o incompreensível, é que a esperança se pro-jeta para o que há de ser, há de vir. Assim a eternidade dessa manhã em que escrevo, o silêncio de estalactites da cúpula do céu, é na rarefação de mim que se abre e entende.



Da morte a fonte mais bendita,
Da eternidade, o silêncio último do mistério,
Da esperança, o mistério das coisas simples,
Da raiz íntima de mim, a beleza que se projeta
Para o que há de ser, há de vir.
Na rarefação de mim, o tempo salta para além,
Na música de outrora, tudo se revela e acontece.



Faço versos e conjugo verbos
Do indizível e sondável
Deixo fluir a morte,
Ser o outro de mim,
Ser o que em mim sou.



Para que o silêncio ressurja e o olhar suspenso e a aflição dos espaços e a surdez absoluta da montanha e o intocável da noite, é necessário transpor o limiar do imediato e aceder às origens de mim, aí onde a consistência se dissolve e a eternidade se desprende da sucessão do tempo, e o meu olhar se descola da apreensão do ontem e do amanhã, das situações e circunstâncias que me algemaram ontem, que me libertarão amanhã. Suspensos os meus olhos, o meu ser, um arroubo alevanta-me, vertiginoso ergue-me e o espaço abre-se da comunidade de mim com o espaço sideral, o alarme e o augúrio, o sufocante mistério, a profundidade da noite.



Ser o que em mim sou,
“Não bastasse o profeta
Se vingar do futuro”,
Deixo fluir em versos
A morte que conjuga
Verbos.



Somente quem está preparado para tudo, quem não exclui nada, nem mesmo o mais misterioso, poderá viver sua relação com outrem como algo de vivo e ir até o fundo de sua própria existência. Se imagino a existência de um indivíduo como um quarto mais ou menos amplo, vejo que a maioria não conhece senão um canto do seu quarto, um vão de janela, uma lista por onde passeiam o tempo todo, para assim possuir certa segurança, até mesmos certa confiança.
O que me questiono neste instante em que ouço músicas, deixando-as mergulharem bem íntimo em mim, alegrando o que há de triste em mim, o que há de dúvidas e inseguranças, o que há de medos e relutâncias, os sentimentos di-versos e ad-versos se a-nunciando, manifestando, re-velando, escondendo-se por vezes, o que é inteligível à minha sensibilidade, é quando é motivo de enfiar a alma entre as pernas e, de suspiro em suspiro, de olhares evasivos em olhares evasivos, ruminar perdas, aprendendo nas estradas, em seus aclives e declives, nas sinuosidades das curvas, na reta de longa distância, no encontro das árvores de ambas as margens que cobrem a estrada e lhe confere uma beleza toda especial, que o sofrimento é desvairada, enlouquecida, varrida alavanca para a esperança. Quer dizer, então, que a esperança só se mostra a partir do sofrimento, das dores múltiplas que habitam a vida? É uma verdade inconteste.
Enquanto no silêncio falsifico o verbo, defectivo suas conjugações, e me faço caverna, no teu corpo, oh esperança!, a eloqüência da forma, a verdade pontuda da carne e o amor, planície lúcida e transparente, olho para ela com olhos de criança inocente e ingênua, sinto-a com a sensibilidade de um grande sonhador, quem argumentaria não sê-lo eu, não o fosse, não estaria aqui trabalhando as idéias e os sentimentos, os pensamentos e as emoções, os desejos e os sonhos, de onde emerge a montanha do ser, de onde eleva as suas corcovas às estrelas que velam o ossuário do mundo e de sua história que anda na contramão de todos os princípios. Enquanto no silêncio desenho turvo a mímica das sombras, em teu corpo raia a claridade da transformação, raia a transparência da metamorfose, “´tá tudo mudando”, a esplendorosa e mágica revelação da fêmea em seu solar o sagrado ofício. Em teu corpo esplende o perfil das iluminações, a lua-cheia dos seios, o orbe rútilo do ventre e as redondas nádegas da luz.
Vou singrar teu sono feito veleiro louco e ancorar de repente no teu ventre virgem e livre; o mar lúcido de teu olhar, pouco a pouco, amainará o peixe de minha vertigem. Desejo arar tuas vigílias com palavras claras, com versos transparentes e ser, subitamente, fruto no teu chão, searas e prazeres que me eram raros por tua causa hão de brotar nessa canção silenciosa, que componho e musicalizo à mercê da criatividade e ilusões as mais diáfanas e também as mais obscuras.



Manoel Ferreira Neto.

(16 de abril de 2016)

Comentários