**FRIOS ESPÍRITOS DE GELO NO LIMIAR DA APARIÇÃO** - Manoel Ferreira


Frios espíritos de gelo. A voz introspecta, circunspecta do tempo na mente. Lágrimas perdidas na chuva. Eco de um ponto no tempo, sombras de outro dia. Imagens surgindo e esvaindo-se. Nadas nadificados, vazios esvaziados, vácuos evacuados. Nalgum lugar longínquo, nada sei deste lugar onde me encontro, sentimentos me não são íntimos, me não são subjetivos, me não são. Flocos de neve.
Fora, a noite resplandece límpida, ponteada de estrelas que velam o ossuário da terra, des-vela o crepúsculo medieval de sombras no velório milenar de luzes, como de flores de ramo não invisível de todo, mas a visão quase pouca lá não chega inteira, lá não se realiza por completo. A cidade imobiliza-se desde toda a eternidade, imensidão do mundo, imensidão da terra, imensidão do espaço sideral, horizonte celeste, o ar é leve e suave, gélido - um êxtase.
As noites na cidade não são quentes, tão quentes que só mesmo com esforço é-se possível conciliar o sono. E se, mesmo com esforço e determinação, luta e persistência, não se é possível conciliar o sono, o melhor é sair de casa, andar a esmo pelas alamedas, becos, e, retornando, tomar banho, e tentar conciliar o sono, colhendo as lágrimas nas mãos feitas concha, lançando-as ao ar qual confetes. Com **faits** de lágrimas na escuridão numinando o espaço.o sono vai-se esgarçando na passagem das horas.
Ainda é inverno. Inverno de presenças pres-ent-ificando-se. Inverno de ausências ausentando-se. Inverno de ecos de silêncios ecoando-se, ouvem-se-lhes fora do mundo, lá onde as paisagens não são imagens, mas efígies destituídas de face e rosto.
A noite é límpida e fina - enorme diamante -, abre-se pelo céu a flor de vidrilhos. O ar frio, gélido, adstringente – interessante é que durante o inverno, fizera calor diferente, ao longo do dia, calor que produzia aperto, compressão no peito, nós de sentimentos, górdios góticos de utopias e fantasias - os enormes espaços noturnos dispersam-se a um cismar de recordações. Recordações são sensíveis no limiar de ecos do silêncio, glimpseando sons à sorrelfa de revezes recitando a lírica de ritmos e melodias do tempo.
A um cismar de recordações?!...
De que me recordo, debruçado ao parapeito da janela de guilhotina, ninguém passando na rua? – normalmente há trânsito de pessoas nos finais de semana, desde quinta à noite até domingo por volta das dez horas. Domingo de nostalgias pedindo cachimbo, sombra fria e água fresca. Domingo, prato com resto de comida. Domingo de piquenique na fronteira do pensamento e das idéias, regado a quitandas de ilusões e quimeras. Olho as luzes nos postes, luz que me chega através dos espaços vazios das galhas e folhas de árvore.
De nada me re-cordo. Amava re-cordar-me de algo? Aliás, se estivesse recordando de algo, creio não iria necessitar estar debruçado ao parapeito da janela de guilhotina, estaria sim deitado na cama, fumando, olhando através da janela, re-cordando-me de acontecimentos, outroras circunstanciais, inclusive de quando, num sonho, num quarto, similar ao de consultório de analista, abri uma gaveta e tirei de dentro um revólver. Fiz com ele inúmeros movimentos, mas, ao final, dei um tiro em direção à porta, abrindo-a e indo embora. Estive a lembrar-me deste sonho, deitado na cama, olhando a serra ao longe. Terminada esta lembrança, a cabeça esvaziou-se de todo; levantei-me, dirigi-me a outra janela, da sala de visita, debruçando-me ao parapeito. Não me sentia vazio, não me sentia fora de mim, não me sentia longe. Simplesmente não me sentia.
Esperava lembrar-me de algo, a fim de preencher o vazio que se revelou por inteiro? Quiçá haja sido eu quem despertou o vazio das re-cordações!...Esperava com as lembranças haver leve sorriso nos lábios, brilho no olhar? Desejava preencher as horas, olhando a cidade, luzes todas a iluminá-la, os tetos de telhas das casas, os domos das igrejas, as meretrizes nas calçadas seduzindo os transeuntes para os gloriosos prazeres furtivos.
O que, sobretudo, gosto de olhar é a cidade. Revejo-a no meio da noite, mansa, pacífica, branca, cercada de montanhas que olham de soslaio os domos da catedral, catedral de amores melancólicos, luxúrias preceituosas, ganâncias dogmáticas. A noite instala-se na montanha, cisma para a imensidão do espaço celeste, para a lonjura, onde me abismo também – desejo conseguir a existência de castanheira ao longo do campo aberto da montanha, revestindo-a de espaço interno, esse espaço que tem seu ser em mim, o eu de mim, o mim-mesmo tem o ser nela. A noite veste de branco a acumulação dos séculos como de um luar de morte, como de um limiar de sorrelfas adstringentes ao abismo de genesis.
O espaço esvazia-me até ao limiar da memória, absoluto no limiar da aparição, onde alastra o cansaço, solidão, afago e aconchego quente de choro milenar, o aceno de sinais que se correspondem em ecos de labirinto, ecos da mente. Num suspiro secreto, afloro o que estremece sob os gestos enfim apaziguados.
Às vezes, sobretudo à tardinha, tenho momentos em que me sinto completamente só - quando a solidão admira-se de seu esplendor de ser só a pensar, a cogitar... a recordar o passado, tanto alegrias quanto tristezas, realizações quanto fracassos, glórias quanto anonimatos; tudo passa diante dos olhos, diante de mim como névoa. Surgem outra vez diante dos olhos os rostos que conheci, as palavras, às vezes ternas e sensíveis, às vezes ríspidas e insensíveis, as vozes roucas e suaves se exprimindo lenta e comedidamente (creio que vejo estes rostos, ouço estas vozes, assim desperto, quase como costumo ver os seres e as coisas, quando sonho, isto é, oniricamente).
Esta manhã, quando retornei à alcova, após estar escrevendo a mesmíssima palavra, preenchendo folhas e folhas, desde as duas horas da madrugada até às cinco, senti o estômago embrulhando, leve tonteira, a pressão estava baixando, tive tempo de subir os vinte degraus de escada, chegar à alcova, deitar-me, e de repente parei de respirar, fazendo a companheira respiração boca a boca para que voltasse. Pressinto, sei que não hei de viver muito. Quem há de fazer o enterro? Não haverá velório, choro e vela, as orações do clérigo encomendando a alma ao descanso eterno. Quem irá atrás do caixão? Quem há de chorar por mim? Talvez o coveiro haja ido embora, deixarão o esquife à beira da sepultura, no outro dia, logo ao raiar do sol, seja enterrado. E se me acontece de a pressão baixar num lugar estranho e entre pessoas que me são por inteiro desconhecidas?
Onde me sinto mais satisfeito é precisamente no lugar em que me encontro. Uma pessoa se sente mais satisfeita, alegre, contente no cantinho a que se acostumou e, mesmo que nele se sinta pouco sozinho, solitário, ainda é o melhor de tudo.



Manoel Ferreira Neto.

(20 de abril de 2016) 

Comentários