#VELHO MUNDO SEM PORTEIRA# GRAÇA FONTIS: PINTURA Manoel Ferreira Neto: AFORISMO SATÍRICO ***




O jogo e a ligeira agitação da água no seu jorro fazem desenhos mágicos com os eixos, formando figuras extravagantes que, por desaparecerem rapidamente, não se podem definir. Se esta é a lição da minha velhice, esta é a mensagem que intenciono deixar nestas páginas, esta é a sabedoria que pretendo seja refletida por todo o sempre, não o sei; sei apenas que, como prova da autenticidade de meu renome lendário, as galinhas não são maiores do que os pombos.
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O próprio céu olha o jardim com sorridente satisfação, como se estivesse contente por ver que a natureza fora capaz de reter um espaço vital ali, enquanto a cultura é toda encaminhada para fora das lápides poeirentas. Possuo um aspecto extravagante, movimentos reumáticos e um tom melancólico e sonolento nas minhas ruminações de senil. É evidente que a raça se degenera, como muitas outras raças nobres e reles, pela escassez de cuidados para mantê-la pura. Homens existiram por muito tempo na sua variedade distinta, e os representantes atuais, da nova geração, parecem estar disto cientes a julgar por todas as lúgubres condutas e posturas.
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Se eu tivesse a ousadia de assumir como é encantador enfrentar grandes e misteriosas calamidades, emagrecer, empalidecer e aos poucos me consumir, com efeito, não estaria a me sentir velho, senil. Esplendoroso gastar o tempo em ocupações que me dão um aspecto esquálido e feio, tornar-me agradável e até belo, pela graça espontânea com que eram feitas estas ocupações.
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A minha agradável e deliciosa personalidade, enfim me especializei no humor negro, este humor que denigre todas as atitudes virtuosas e esplendorosas da existência, não sei se o fiz por desespero, por descrença, por falta de fé na vida.
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O meu humor negro ainda permanece nos lugares em que vivera, como uma rosa seca perfuma a gaveta em que murchou. Se eu me pusesse a dizer sobre as dificuldades todas que enfrentei na vida, ouviria todos dizerem que nada mais fiz que repetir as mesmas baboseiras que todos os idosos dizem antes de chegar a morte, deixei no mundo a confissão de um velho sem esperança, sem fé, um velho desconsolado, um velho triste. Se me pusesse a dizer sobre as alegrias todas que tive na vida, os prazeres inúmeros que desfrutei, as felicidades todas que senti, diriam que sublimei tudo o que vivi, não tive a coragem suficiente de me colocar frente a frente comigo próprio. Além de velho, de senil, de estar caindo aos pedaços, de haver morrido e esquecido de cair, ainda um velho covarde, nem na hora derradeira tem a dignidade de ser sincero, sério.
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Há de tudo neste mundo. Há quem chore das alegrias alheias, a felicidade de ver as pessoas felizes e alegres dera origem ao choro, não me posso esquecer de interessar e mesmo me divertir com a presteza com que as lágrimas todas se adaptam às realizações, aos sonhos sublimes e divinos concretizados, as esperanças todas realizadas, as emoções e sentimentos mais esplendorosos dos homens, aquando alguém está alegre, feliz. Também há quem ria das desgraças alheias, o riso de ver as pessoas tristes, cabisbaixas, angustiadas. As pessoas geralmente são tão orgulhosas das suas deficiências como de suas qualidades.
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Estas palavras, contudo, não têm a franqueza de uma confissão de dores, sofrimentos, desilusões, decepções com a vida, como seria eu capaz de enumerá-los a todos, sem deixar um de fora, um único apenas, enfim, a memória não é a mesma de alguns anos atrás. Não têm a sinceridade hospitaleira que espera o leitor, este que espera de mim as sabedorias mais profundas, as mensagens mais verdadeiras, os ensinamentos mais percucientes, pois...
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A este preço ou qualquer outro, constato que a vida chegara ao fim. Nunca imaginara, melhor dizendo, nunca pudera imaginar que tão intolerável espaço de tempo se arrastasse entre o crepúsculo e a alvorada e que fosse tão tedioso isto de não poder arrastar os pés nos salões, festas, velórios, pois que estou velho, estou fazendo hora extra neste velho mundo sem porteira, morri e esqueci de cair. O melhor seria deitar-me logo resignado, deixar que a vida, com suas fadigas e tédios, maltrate meu corpo já quase prostrado de todo.
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Pessoas cujas vidas atingiram um esplendor sem limites geralmente se mantêm de esperanças tanto mais magnificentes quanto menor o coeficiente de possibilidades de ainda viverem um longo tempo. Quanto a mim, acaricio sempre a idéia de que alguma mudança inesperada da fortuna me favoreça.
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Quase desejo estar entre os jovens, os moços, nas longas tardes de inverno. É aborrecido, para um velho como eu, ficar perambulando, sem outra companhia senão a sombra refletida nas calçadas, nas ruas, nas paredes dos estabelecimentos comerciais, das casas de família, dos botequins. No outono, que pode haver de mais agradável do que ficar o dia inteiro, sentado na sala-de-visita, no tronco de uma árvore cortada à soleira da porta, a conversar com alguém quase tão velho quanto eu. Ou então desperdiçar o tempo com algum simplório que saiba madracear, mesmo porque os homens de meu tempo nunca souberam como utilizar o tempo! Palavra de honra, nunca fui tão feliz quanto sou na minha velhice, que alguns chamam de senilidade.
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Alguns, aquando se encontram comigo, dizem que ouviram dizer que tinha viajado, estava vendo fantasmas à luz do dia. Afinal, quando será a viagem derradeira, não me esquecer de convidar para a partida, terá ele imenso prazer de carregar as minhas malas.
Comprouve-me seguir uma outra aventura, excelsa e manifesta; comprouve-me consagrar, dia e noite, a minha vida à solidão, ao silêncio.
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Encontrei-me com um amigo a quem faz um bom tempo não o via. Mostrei alegria e a sua falta, o que o deixou muitíssimo satisfeito comigo. Disse-me que estava aquela casquinha. Não havia perdido as suas esperanças, não estava desiludido da vida. Não podia ser possível, ainda é muito novo, eu é que estou fazendo hora extra neste mundo velho sem porteira. Despedimo-nos. Segui o meu itinerário. Caminhava pela manhã. Andando, imaginei algo que seria o “cúmulo do absurdo”. Não seria isto de arrastar os pés nos salões, festas, enterros. Seria um homem casado, divorciado, viúvo, ferrado. Surgiu-me assim. O que estaria eu dizendo com isto não saberia de modo algum explicar, pois que não me casei, não tive filhos. Fiquei solteiro. Houve muitas oportunidades de casamento, mas preferi a solidão. Fui homem que sempre exigi contas aos mortais que se casam e que, no desvario do orgulho e da vaidade, não contribuem o mínimo para a eternidade do amor.
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Mas a título de uma resposta a quem porventura comentar isto nas esquinas, nas tabernas, até mesmo sendo o mais cínico, irônico, destilando os venenos todos, diria que quanto mais velho, mais amor; sem velhice, não há outros prazeres para os homens.
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Tenho muitos medos de falar livremente a todos. Não se tem medo senão do medo, e o medo aqui é que todos comecem a pensar que sou um velho inútil, estou caindo aos pedaços de tanta velhice acumulada na alma e no espírito, morri e esqueci de cair; enfim, descascaram os meus pepinos da velhice, e, se tomei da pena para dizer alguma coisa a respeito da velhice, a fim de amenizar tantas dores que me perpassam, sentir-me melhor, acabei foi destruindo a última luz que me restava para deixar registrado no papel os meus sentimentos e emoções. Após lido, não haverá quem não me olhará de soslaio, de esguelha, de esconso, cochichando: “Aquele ali escreveu sobre os seus sentimentos da velhice, está mesmo numa decadência de dar dó, está caindo aos pedaços. Veja bem que se dispõe a arrastar os pés nas festas, nos salões, nos enterros”. Sentir-me-ei o mais ridículo dos velhos.
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Disse-o, repetindo-o, que vão dizer que não respeito a minha velhice, quando me disponho a arrastar os pés nas festas, de alegria e felicidade, dançando, nos funerais, de tristeza e desconsolo, mas é que necessitava enfatizar um pormenor, e, não repetindo, além de não ser uma ênfase da ideia, não iria ser possível entender o que mesmo estaria eu desejando dizer. O fato é que a linguagem verdadeira, sincera, sem sombras, não de dúvidas, pois sem sombras de dúvidas suscita as dúvidas mais atrozes, além de ser um lugar-comum, e o que tento revelar é algo mui profundo; o fato é que a linguagem verdadeira, sincera, parece vazia de sentido para o ignaro, e para os inteligentes não parece ser vazia de sentido, mas é vazia de senso.
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Disseram-me que em procissões de enterro não se deve arrastar os pés nas pedras das ruas, nos asfaltos, deve-se caminhar com finesse e respeito; isto de arrastar os pés nas procissões de enterro é uma falta de respeito com os enlutados, com os presentes, pois que o barulho suscita lembranças da pessoa amada que no momento se dirige para a sua última residência, para o seu último lar. O morto deseja as suas homenagens todas, ou seriam as pessoas que desejam homenagear o morto com terços, rezas, choros, tristezas, saudades, não sei bem dizer, o certo é que me disseram que não se pode arrastar os pés em procissões de enterro.
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Ninguém me dissera antes que não poderia dançar nas festas, aquando chegasse à velhice, não seria uma atitude razoável – o termo não é este, sabia disto desde todo o início, mas me surgiu à mente, não desejando que não figurasse, poderia suscitar até outros questionamentos mais profundos, outros senões percucientes para isto de na velhice estar arrastando os pés nas festas; não seria uma atitude inteligível, se na mocidade, na juventude, na maturidade, não dancei, não aproveitei a vida, por que agora é que o farei, é estranho, esquisito, até mesmo ridículo fazê-lo.
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Vão dizer que não respeito a minha velhice, quando me disponho a arrastar os pés nas festas, de alegria e felicidade, dançando, nos funerais, de tristeza e desconsolo, caminhando lentamente, um bicho preguiça andaria mais rápido, mas não se trata de preguiça de ir até ao cemitério, ouvir as últimas palavras dos parentes e íntimos, os choros de saudade e desconsolo.
#RIO DE JANEIRO(RJ), 05 DE JUNHO DE 2020, 16:26 p.m.#

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