FIO DE LUZ PLENIFICOU-SE NO BARÍTONO DA MORTE GRAÇA FONTIS: FOTO(ARQUIVO) Manoel Ferreira Neto: SÁTIRA ***



Ao saudoso amigo Antônio Carlos Fernandes(TONINHO FERNANDES)
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A chuva do princípio da primavera caiu bem forte no final da tarde, começo da noite, quase uma tempestade, por pouco não fora tão eloqüente. Estava eu sentado num galão de pinga numa garagem que se assemelha mais a um porão, na parte lateral da casa, o portão semi-aberto, a chuva caindo.
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Conversava com o amigo, enquanto ele, com um funil, enchia litros de pinga, faz comércio com ela, é produtor.
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Olhando a enxurrada – as águas sempre descem por suas descidas menores e uma verdadeira ladeira considerando a subida, embora a gramática, seja de quem for, não admite nada que desce por descidas, aceitaria exultante de novidade se subisse por descida, a cidade fica toda lavada, a água suja desce para o Rio Grande, considerando que resido no centro.
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Nisto há a vantagem de tempestades não alagarem a cidade.
O amigo convidou-me para uma dose de sua melhor pinga, de qualidade sim, não estas encontradas numa grande parte dos bares até famosos do centro. Enervou-se ele, pois, alguém abriu a garagem, talvez a esposa, a governanta, esta é mais difícil de fazê-lo, tiraram um copo de plástico do lugar. Não pedira a ninguém para levá-lo. Não pedira a ninguém para tirá-lo. Onde põe as coisas deve permanecer - é intransigente neste mérito das coisas.
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Em princípio, fora nosso primeiro colóquio, a qualidade de sua pinga, o fato de alguém haver retirado o copo de onde pusera, podia até estar no caixote de lixo. Era o copo que servia a sua pinga aos amigos mais considerados, enfim sua garagem não era um antro de piguços dissidentes. Sugeri que levasse o computador para a garagem, tornasse-a seu escritório, escrevendo os seus ensaios sobre a cidade, sua História, um grande conhecedor, considerado o mais eloqüente historiador de todos os tempos. Uma bicudagem sem eiras nem beiras, ensaios de história regados a cachaça, valer-me-ia Deus saber o que se passa na cabeça dele num ocaso de bebedeira, as idéias e pensamentos. Adorara a expressão “...num ocaso de bebedeira...”. Aurélio Buarque de Hollanda deveria estar presente para registrar mais esta expressão.
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De soslaio olhava a luz do poste que incidia na água corrente, fazia uma sombra nas pedras brilhantes da água, perguntei-me se haveria outra vida que purificasse o espírito. Naquele instante o que iluminava a de dois homens era estar ambos sentados em galões de pinga, conversando, jogando conversa ao léu. Na opinião do amigo, solidão não implica em não estar com alguém, pode-se estar no meio de um grupo de homens, numa multidão, sente-se sozinho, isto é muito comum, todos têm esta idéia. Para ele, a solidão é a lida, a convivência com a história que não conta os fatos passados, mas os fatos que estão aí, buscando um conhecimento e mudança de toda a questão da individualidade, da identidade de um homem consigo próprio, com a mulher, os amigos, os íntimos, enfim, é isto que é lindo, esplendoroso. Assim se sente ele, um homem conhecedor da História, diante da solidão dele com a História, uma constante busca.
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Lancei uma questão, às avessas, sem relação com o que estávamos conversando, se somos a consciência da terra, a terra existiria sem esta consciência do homem, existirá quando a raça humana for extinta. Lecionou verdadeiramente a filosofia descartiana, “penso logo existo”. Fizera matemática – precisava de colocar alguma ordem no caos, no vazio, na solidão, decidiu que a matemática faria esta organização, fé-la, sente-se realizado, mas sua paixão é a História. Através deste início, deu-me uma aula de geologia, que não entendo bulhufas, mas ouvi, compreendi suas idéias e pensamentos, mas não os entendi, isto é lá com o tempo.
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Mostrou-me que a terra existiria sem a consciência do homem, fundamentado em Darwin, o filtro desta consciência estava nas pedras receberem a água da chuva com toda a generosidade e consentimento. Intrigava-me sobremodo o não saber e viver que haveria que purificasse a vida, era a questão em que pensava, enquanto conversando com o amigo, olhando de soslaio para a enxurrada, a luz incidindo na água, a sombra.
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A vida privada, ao menos fora neste sentido que entendi as suas palavras, nem fora o fato de estar bebendo uma pinga, diante de um bom e excelente colóquio, perde-se o fio das águas e se entra nos dentes de um destino sem limites e fronteiras. Dois homens se encontram sentados em galões de pinga, chovendo, a enxurrada, os dois homens solitários em considerando a chuva, a enxurrada, a luz, a sombra nas águas, mas, sempre, alegres e realizados por estarem fazendo o que apreciam, discutir as grandes idéias, sonhar o fio de luz que se plenifica no barítono da morte.
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Numa prova em seu curso de matemática, ficara quase todo o tempo com os braços cruzados, olhando as questões em todos os seus detalhes, sem a menor vontade de resolvê-las, até aquando o professor se aproximou assim como de soslaio, aprendera isto “de soslaio” e compreendera o que com isto significo. O professor fizera a pergunta mais imbecil e comum que já houvera assistido a, indagou se não iria resolver a prova. Respondeu-lhe com todas as embófias e achaques possíveis, estaria criando liberdade e desejo de responder ao óbvio. De imediato, a outra quase tão eloqüente quanto as embófias e achaques seus, os do professor, se ele estaria interessado em tirar sarro, enfim, era o gênio, o maior de todos. É que estaria ele interessado em responder a última questão de outro modo que não o vulgar que os professores, aliás, aceitam e julgam uma genialidade sem limites, queria outro modo de resolver esta questão.
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A chuva diminuíra e a esposa, alegre e aconchegante, companheira e doce, fora saber, diante do fio de luz que se plenifica no barítono da morte, se estávamos bem, como estava sendo o colóquio entre nós, algo ainda que inteligível.
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Perguntei a esta esposa apaixonada, amiga, confidente, inspiradora de seus caminhos do campo, seus fios de luz que plenificarão o barítono da morte. A esposa saíra, algum dos três filhos dormira chateado com alguma coisa, necessitava de algo, se não estaria desembrulhado, enfim está chovendo, o filho muito agitado está sempre desembrulhado, o que é compreensível por não saber o pai compreender e entender o que é isto de fio de luz plenificar-se no barítono da morte.
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A sombra que a luz incidia nas águas, o espírito é a vida que purifica a própria vida, quem salve a unidade dos caminhos do campo, paixão e amor. Imagine o leitor que para mim o fio de luz se plenifica no barítono da morte... Imagine o leitor-amigo: é o espírito quem me torna homem e indivíduo. Não haveria dúvida de que é o próprio sofrimento deste espírito que aumenta o seu saber, a sua felicidade baseia-se em ser ungido pelas lágrimas, em ser vítima sagrada da solidão íntima e particular.
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A esposa saíra da garagem, deixando-nos a sós, conversando coisas que os homens comuns e normais normalmente julgariam que fôssemos em absoluto insanos, falando da solidão num princípio de noite, a chuva caindo incessantemente, como a sombra segue o sepulcro de um homem e a todo momento revela e manifesta uma novidade destes restos mortais debaixo da terra.
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O amigo, então, desvencilhou-se do tema da solidão e do silêncio, passando a tratar da chuva, a delícia que é dormir numa noite de chuva, o que achei interessante, enfim falaríamos de um tema atual, a chuva, mas esta logo terminou, sendo o horário propício para retornar a casa, a esposa estaria preocupada comigo, não avisara com quem estaria conversando, dividindo as reflexões da noite de chuva, fazendo da sabedoria uma hóspede de péssimos poetas, mas de insignes intelectuais os mais excêntricos e insanos sobre a terra, esta terra que inspirou Darwin a escrever sobre a origem das espécies.
#RIO DE JANEIRO(RJ), 07 DE JUNHO DE 2020, 15:53 p.m.#

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