SEM CONCEITO INTELIGÍVEL GRAÇA FONTIS: PINTURA Manoel Ferreira Neto: PROSA SATÍRICA ***



Seria até interessante se os indivíduos começassem a se expressar através de meias palavras, ou seja, dizendo apenas parte delas. O problema seria se seriam entendidas, compreendidas como acontece com a comunicação com as palavras completas.
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Digo isto, pensando em algo que sempre ouvira: "para o bom entendedor meia palavra basta", adágio, inclusive. Se a pessoa é boa entendedora com meia palavra, então, uma excelente entendedora com as palavras ditas completamente, com a boa pronúncia. Em verdade este dito popular significa unicamente que as intenções podem ser logo descobertas, não necessitando uma maior explicação. Não haverá quem pense, imagine, elucubre, com o aval de todos os psicólogos, testemunho das intenções das palavras, estar eu enviando alguma indireta, recadinho? Nada disso.
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Por mim, tenho dificuldades muito grandes em perceber as intenções das pessoas com a linguagem usada por elas, e muitas vezes, para não passar como imbecil e idiota, sou obrigado a supor o que estariam dizendo, a estabelecer um sentido a respeito, apesar de algumas vezes estar com eminência equivocado, tendo de perguntar o que mesmo querem dizer. Se usam uma linguagem mais apurada, demonstrando algumas regras e normas da língua escrita, aí sou capaz de entender e compreender, podendo então continuar o colóquio com desenvoltura e liberdade.
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Sendo assim, teria ainda maiores dificuldades de entendimento se as pessoas começassem a se expressar através de meias palavras, não teria eu condições alguma de saber o que estariam falando. Tomando-me desse exemplo: "ter e com algum sa o que estari fal...", não tem qualquer sentido, nem mesmo na linguagem poética, se não houver uma razão de ali figurarem, semântica, linguística. Ademais, a questão mais contundente seria como eu me comunicaria, pois não teria a destreza e perspicácia de dizer apenas uma parte das palavras em todos os momentos, em todos os lugares, em quaisquer situações e circunstâncias. Ter-me-ia de calar para sempre, fechar a boca vez por todas, e apenas ouvir sem qualquer possibilidade de conhecer o que está sendo dito.
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Sentir-me-ia um estranho no ninho. Teria de ajuntar as minhas tralhas, participando a minha mudança para o mato, vivendo em contacto com os animais; acredito até que os nossos colóquios através da sensibilidade seriam sim muitíssimo enriquecedores e de fácil acesso de entendimento.
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Existem coisas neste sentido realmente difíceis de compreensão nesta mesma linha de pensamento, para o bom entendedor meia palavra basta. A questão do uso corrente e vicioso da palavra “trem”. Este termo é usado para substituir qualquer outra palavra. Em princípio, se a pessoa indica a coisa desejada, dizendo que pretende adquirir aquele trem... – de um modo inteligível: alguém num bar indica uma empadinha, tendo esquecido o nome do alimento, dizendo que deseja comer aquele trem, é inteligível. Agora, se alguém pede alguém para ir à mercearia comprar um trem para comer, aí nem os gênios conseguem saber o que a pessoa está querendo dizer. De antemão às revezes, não se come trem, haja dente para triturar o aço, estômago para digeri-lo, intestino para eliminá-lo. Houve quem inclusive de modo cordial e gentil, indagara se sou do time do personagem de Francisco Millani, minha tolerância é zero.
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Se é comigo que isto acontece, de imediato, digo que somente na Estrada de Ferro Central do Brasil ou na Estação da Luz é possível encontrar um trem. "Poderia ir até lá e tentar comprar um, já que a vontade é tanta, mas como fui operado duas vezes de hérnia não posso carregar peso, seria preciso contratar um guindaste para levar o trem até à sua casa." Fora ipsis litteris o que dissera a uma amiga com quem almoçava num restaurante carioca, com certeza em Botafogo, quando ela dissera: "Tem hora que me dá vontade de comer um trem!" Saíra ela da mesa, pisando duro, chamando-me cretino e imbecil. Logo questiono o nome da coisa mesma que a pessoa está desejando, e muitas vezes ela não sabe explicar. Ah, irrito-me bastante com esta palavra. Não sei se é devido ao fato de eu sempre ter me preocupado em nomear as coisas, definindo bem as minhas intenções e desejos de expressão, ou se é pelo fato de ser eu um homem muitíssimo exigente com a expressão das coisas, sendo isto quase o mesmo.
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Servindo-me do verdadeiro sentido do dito popular de para o bom entendedor meia palavra basta, as intenções podem ser logo descobertas, não necessitando maiores explicações, como vou saber o que a pessoa quer, deseja, necessita, se ela só sabe nomear as coisas através da palavra “trem”? Vou necessitar de maiores explicações até que eu possa saber o que deseja, e neste ponto ela terá de saber o nome específico das coisas, e muitas vezes não sabe. O "trem" usado na linguagem mineira, nestas mesmas situações, é inteligível, habita-lhe a cultura.
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Se fossem apenas as dificuldades de entendimento com as meias palavras, com o termo “trem” substituindo qualquer outra palavra, ainda poderia até tentar conviver com isto de modo razoável, pois que de outro modo creio seria até impossível, mas não é só isto. Se o uso indiscriminado, corrente do termo “trem” me irrita, irrita-me ainda mais ouvir as pessoas falarem errado, não saio é soletrando como se escreve a palavra pronunciada erroneamente, apenas a pronuncia, também ministrando a santíssima Língua Portuguesa quando diz respeito aos disparates da Gramática, gafes absurdas, não terem a menor preocupação com o que dizem, como dizem. Se se trata de uma pessoa que se observa de antemão não ter tido condições de estudar, o que estudou serviu apenas para assinar o seu nome, compreendo, embora o ouvido se sinta muito ferido. Agora, se se trata de personalidades, acadêmicos, irrita-me de um modo que o desejo é pedir licença, dizendo que numa outra oportunidade, aquando aprender a conversar direito, terei imenso prazer em ouvi-la, mas nas suas condições o melhor mesmo é ir embora. Como se pode ensinarem a Língua e dizerem "A maioria dos alunos não ligam para isto de falarem corretamente", aqui nesta frase, o verbo fica no singular.
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Estou ultimamente sendo muito condescendente, compreensivo com todas as pessoas de nível, ouvindo a sua linguagem ridícula, mas noutros tempos simplesmente interrompia o colóquio, corrigindo a pessoa, gostasse ela ou não. Algumas tiveram a ousadia de me perguntar se estava querendo corrigi-las. O erro é o mais certo neste mundo - dissera outra, deixando um convite - "pense bem nisto!" Respondi que não, quem era eu para praticar um ato deste, corrigi-las, estava apenas a lembrá-las da forma correta de dizer, os eufemismos ajudam bastante em certos instantes, alfim podia ter deixado a escola, formou-se e de imediato foi lutar pelo seu pão de cada dia. Não sendo "eufemismo", obviamente, mas o ouvido é mui sensível em relação à fala, não intenciono nenhum juízo, e se me perquirissem a razão da fala correta ser do modo como estou dizendo, não saberia explicar a verborréia gramatical, a queda no ridículo seria inestimável. Qualquer explicação não convenceria o interlocutor, persuadir-lhe-ia de ser o que canta a gramática, estava enrolando, tentando enganar. Teria de dizer a verdade: "Não sei explicar a razão de o verbo ficar no singular com a expressão "a maioria..." E a resposta sendo: "Concorda com maioria e não com alunos." Quê vergonha!... Corrigir e não saber explicar o certo. Não me utilizaria do eufemismo para me explicar, para suavizar ou minimizar o peso conotador de minha atitude de homem indelicado, sem educação, vive de corrigir as pessoas. Não mesmo. Simples assim: os ouvidos são de mais sensível à fala.
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Outras vezes, num colóquio, dizendo que os meus tímpanos acusam de imediato quando ouço alguém falando errado, talvez tivesse audição canina da Língua, disse-o em tom jocoso, algumas pessoas disseram que teria de partir deste mundo para um outro, porque aqui as pessoas não sabem a língua. Respondi-lhes que não, havia uns poucos que sabiam e eu convivia no meio deles. Sem conceito inteligível uma fala neste nível, há quem até seja especialista, doutor, mestre da digníssima senhora Língua Portuguesa, outros não, referia-me à questão do ouvido, alguém mencionou que o namorado havia presenteado a amada no Dia dos Namorados com um aparelho de ouvido, nada mencionava sobre a Língua específica. Estava no hall do teatro, conversava com algumas pessoas, nem poderiam imaginar a tolerância minha com a fala.


#RIO DE JANEIRO(RJ), 09 DE JUNHO DE 2020, 08:57 a.m.#

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