#NÃO FLOR NEM LILÁS# GRAÇA FONTIS: PINTURA Manoel Ferreira Neto: PROSA ***



Para tirar o retrato do instante, assim o penso agora após alguns dias da situação em que estivera envolvido, e que deixara seus traços e passos, mantive o rosto isento, como se o fotógrafo houvesse pedido um rosto e não a alma, esta não interessava por interferir nos traços e perspectivas do espontâneo – seria mesmo este o termo, não o sei, não me é dado saber acerca da arte da fotografia, a sua nomenclatura específica.
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Abri a boca, inerente à vontade, a cara tomou por segundos a expressão de desprendimento cômico – a intenção talvez fosse a de esconder os sentimentos que me habitavam, sabia de sofrimentos e dores atrozes, e não poderia permitir fossem aflorados – que usara para esconder a gafe – talvez devesse dizer “vexame”, quando ouvira as palavras humilhantes e ofensivas.
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No momento seguinte, desviei os olhos com vergonha pelo despudor de apresentar um rosto cômico, onde não havia graça quis criá-la para não me entregar de corpo e alma ao destrate a que passara, fora obrigado a passar, embora não houvesse para tal qualquer motivo ou razão.
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A tensão caiu. Sentei-me à mesa, pus-me a olhar indiferente e alheio a tudo o que estava acontecendo, quando alguém perguntara se estava pensando em minha senhora, estivesse com saudade dela. Dissera que sim. Estava pensando sim nela; havia três dias que estava fora. Isto acontece estando fora, aliás costumo ligar para desejar boa noite, dormir com Deus.
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Os traços do rosto, os que sobraram após ouvir as palavras humilhantes e ofensivas, cederam a uma grande “lombeira”, como se costuma dizer após minutos consecutivos de grande tensão, relaxando-me.
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Desconfiado de haver alguém quem de soslaio olhava-me, percebendo claramente que me debatia com muitas dores e sofrimentos, misturados com sentimentos de mágoa e ressentimento, como quem fosse enfim terminar por dar uma gargalhada ao constatar o absurdo, não havia qualquer motivo ou razão para me sentir humilhado, ofendido com tais palavras, teimei, no entanto, em manter o rosto enviesado, de onde olhava de esguelha quem houvera dito as palavras. E de onde começava a não poder me impedir de ver-lhe sentado com as mãos cruzadas no colo, com a serenidade de com quem nada houvera acontecido, nada dissera.
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No olhar castanho e ingênuo – creio que o termo adequado seria “inocente”, mas preferi ingênuo quem sabe por desejar não me confessar abertamente, não dizer que no fundo o embaraço vaidoso de não haver replicado, dito também o que me passara na alma como resposta, mas que decidi não o fazer. Havia qualquer coisa muito esquisita e estranha na atitude de nada replicar, de permanecer calado.
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Não podia impedir a derradeira piedade que tomara conta de mim por inteiro, a piedade estava nos meus olhos que o observava de soslaio. Não pude impedir a piedade sentida, entregando-me com alívio à comiseração que com esforço conseguira guardar no peito.
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Tantos sentimentos desencontrados, emoções confusas atravessavam-me de um lugar ao outro, e outra coisa não poderia ser feito senão responder à ofensa e humilhação, de modo que não fosse jamais esquecida, mesmo que trancafiada a sete chaves nalgum baú íntimo. Como iria responder? Não havia qualquer modo senão que tomasse de um pedaço de papel qualquer, escrevendo um bilhete bem apimentado. Não havia caneta, não havia papel. Estava mesmo condenado a levar para casa um desaforo, um desplante sem eira nem beira.
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Não havia qualquer outra alternativa senão despedir-me de algumas pessoas com quem me encontrava sentado a uma mesa, indo embora. E jamais recebera qualquer desaforo que não houvesse replicado, correndo risco de levar um tiro ou um murro pelas fuças sem dó e nem piedade. Dissera por inúmeras vezes que, recebendo alguma humilhação, não levaria para casa, e se não houvesse possibilidade de replicar, não voltaria para casa, dormiria na rua.
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Era uma noite fria e escura, mais que outras. A branca nebulosidade deixava o fim da rua invisível. Tudo estava algodoado – esta a única imagem possível que encontrei para dizer a respeito, para descrever, se assim posso dizer, não estando enganado, não estando a me utilizar de um lugar-comum – não se ouvia o ruído de alguns passos subindo a rua. Andava para o imprevisível da rua.
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No ar escuro, mais que no céu, no meio da rua uma estrela.
Não, não estava sozinho. Se me perguntassem dali até à eternidade, apesar de esta idéia por inteira idiota, sabemos e não sabemos para onde estamos indo, o que sobrará de nós, ninguém o sabe, mas decidi com as letras romper as fronteiras da existência, tornar-me uma idéia, postura, decisão, responsabilidade e ética a partir disto a que ninguém até então não dera valor, não acreditara ser possível tornar a vida as letras até que um dia os ossos, que nunca emagrecem, com certeza, sejam as sílabas, frases, pensamentos, idéias, e, além de tudo a certeza e a convicção de que era por isto que sempre sonhara tanto.
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Mas por que aconteciam determinadas situações e circunstâncias, apesar de todas as questões éticas e morais haver instante em que é preciso romper com elas, entregar-me ao nada, traços e passos com enormes dificuldades de relacionamento, o que não é agradável, a humanidade sempre o soube, quem sou eu para mais saber que ela que sobrevive a todos os instantes, renasce de suas próprias cinzas, e o único modo de romper com estes limites é mostrar a real postura que se me afigura no momento, embora as imaginações, erros, enganos, mas por uma questão de dignidade e honra, tendo com que mostrar como estão sendo construídas.
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O que restaria fazer quando a madrugada passasse, renascesse um novo dia, perguntava-me a todo instante, talvez fosse necessária a saída de imediato, deixar o tempo ir se refazendo. Sim. Não havia dúvida de que deveria pela manhã, no mais tardar à tarde por volta das cinco, tomar o ônibus de volta ao lugar onde de um modo ou de outro estou construindo o que sempre acreditei ser a salvação, e, se não fosse, ao menos iria servir de questionamento acerca do sentido da Vida, o de viver é muito simples, suficiente a decisão radical e consciente de que é isto que redimirá a mim mesmo de todos os enganos e erros durante a vida, mas é isto que mais pode causar felicidade a um artista, a um escritor, isto de estar buscando os caminhos do campo por onde outros homens podem tranqüilamente passar, sem medo ou hesitações.
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Ah, sim, esqueceu-me uma última palavra: alguém dissera: “O abismo é seu. Terá fim quando decidir que sim. Aí, poderá retornar à superfície, começar um novo rumo de vida e de princípios”. Não é que apostei tudo nisto aí de terá um fim quando decidir que sim, mas quem diria que não estou nem um pouco interessado em voltar à superfície, quem sabe não tenha sentido na carne e no espírito, tornando verbo, a entrega à humanidade, e não é que Deus colocou o homem no mundo exatamente para servir aos outros, mas nos deixou a liberdade de decidir os caminhos das relações, com ou sem respostas agressivas, ignorantes.
#RIO DE JANEIRO(RJ), 12 DE JUNHO DE 2020, 18:35 p.m.#

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