#PERDEU-SE A AGULHA NO PALHEIRO# GRAÇA FONTIS: PINTURA Manoel Ferreira Neto: SÁTIRA ***



Perdeu-se a agulha no palheiro - foi-se perdida agulha no palheiro: ativa ou passivamente a voz, fato é que houve agulha, houve perda - com que pregava os botões do paletó através de que expressava as atrozes moléstias dos instintos e da psique, assim alentando-me, acalentando-me das dores e sofrimentos por ser covil destas cositas tão medíocres, não mais sabendo o modo de encontrá-la, perdeu-se, perdeu-se, adquirir outra, cuidar para que não se perca outra vez, especialmente no palheiro, onde jamais encontrada nele será.
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Verborreias e falácias fluem livremente, dando gosto deixá-las soltas, não se faz mister idéia afilada, não se faz necessário pensamento afiado, senso de investigação e crítica, discernimento entre o que é explicação percuciente e o que é enganação solene, conhecimentos precisos para tecer um monólogo acerca da agulha no palheiro, pode-se criar inúmeras linguagens e estilo para tratar desta questão, o porquê de a agulha não ser encontrada no palheiro, questão inda suspensa no cabide das gaias filosofias, à espera da solução, e como se chegou à conclusão de que não é possível achar agulha em palheiro. Alguém pode até responder: "Cogitemos com percuciência. Perdeu-se - quem perdeu? Pelo que me consta não foi alguém que perdeu, a partícula "se" indica que a coisa foi perdida por si mesma. A agulha se perdeu. A pessoa não tinha qualquer noção de que ela havia se perdido no palheiro. Ela é que tem de se achar, não alguém achá-la. O que é a Voz Ativa e a Voz Passiva: serve para elucidar certas cositas entranhadas de mistérios! Não é veras?" Quaisquer investigações estão fadadas ao escárnio, mofa de tão ridículas, despautérios solenes. Quem ousa dizer disto só pode ser considerado cretino, não tem pedigree de filósofo e se mete a investigar a razão de uma vez perdida agulha no palheiro, estará até a consumação dos tempos, risíveis as explicações.
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Imaginar: porão abarrotado de palha, alguém perde a agulha. Que trabalho pesado o de tirar palha por palha até achar, conforme a quantidade e o esmo da procura levará dias tirando palha no porão e não encontrou - isto é de enlouquecer. Mais fácil consentir ser veras agulha em palheiro é impossível de ser encontrada a enfiar as mãos no palheiro e começar a procurar a agulha. Não servirá de objeto de chacota por empresa tão descabida. Quem ouve por bem é inteligente.
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Nada estou dizendo e já causei risos, apenas deixando livre o momento de devaneio, perquirição aleatória, se assim posso expressar-me sabiamente. Por que teria de explicar, mesmo que só a mim, a razão da impossibilidade de encontro de agulha perdida no palheiro? Pouco me interessa, a agulha não me serve para nada, não costuro roupas, não sou alfaiate, as minhas vestes não tem botões.
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Sou "pêta", para seguir a fala "Você é "pêta", isto é, não adianta provar por a + b as coisas que não persuade. Andava a divagar, passar o tempo enquanto acho o tempo nisto de esperar o garçom trazer-me o drink. Pensara com os meus botões que as coisas da vida perdidas no tempo, por mais que possam ser pensadas, cogitadas, não podem ser resgatadas, perdidas, perdidas estarão, há de se carregar nas costas a pergunta: "Por que fui deixar perder minhas coisas no tempo?", não havendo indício sequer de resposta inda que só plausível.
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Interessa-me saber a relação das coisas perdidas com a indiferença sentida pela agulha perdida no palheiro. Penso que ainda me resta esperança de preencher o que fora perdido com os desejos conscientes de consumar o destino com dignidade e honra, houve no que se perdeu ilusão fútil, hoje sei o que me apraz. E daí que a agulha haja se perdido no palheiro, ela que se perdeu, ela que se arranje com a perda, não sou quem a vai procurar, nem sabia de sua existência de perdida.
#RIO DE JANEIRO(RJ), 28 DE JUNHO DE 2020, 03:13 a.m.#

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