#LÚCIFER PERNÓSTICO# GRAÇA FONTIS: PINTURA Manoel Ferreira Neto: PROSA SATÍRICA ***



Não sei se devesse chamar de expressão, de ditado, de adágio. Contudo, a fim de superar esta dificuldade, prefiro dizer “linguagem de gozação”. Há inúmeras delas que são felizes, achincalham as pessoas, mostram-lhes o lugar que devem habitar ou estar por longo tempo. Ademais, fazem os presentes cair na gargalhada sem dó nem piedade.
***
Andava devagar, subindo a rua do hospital, uma ladeira difícil. Não há quem ao atingir o topo não pare por alguns instantes até recuperar a respiração normal. Algumas pessoas dizem com as letras em ordem: “Só falta o bofe sair pela boca. Está na garganta”.
***
Talvez por esta razão esteja andando devagar, cabeça baixa. Não tem interesse algum de chegar ao fim da ladeira com um palmo de língua para fora. Vi-o outras vezes desembestado nesta mesma subida. Só não pude saber se ao final colocou a língua para fora, empacando-se, recuperando a respiração. Estava eu no início.
***
A curiosidade de imediato se apresentou. Surgiu-me à mente que a cenoura estivesse murcha, não mais lhe despertando a vontade de comê-la. Assim, não teria mais sentido algum andar desembestado com a esperança de abocanhá-la. Olhei com bastante atenção. Não estava murcha. Ao contrário. O carroceiro trocou a que estava velha por uma novíssima, o seu brilho natural era intensificado pelos raios solares.
***
Quem sabe estivesse aborrecido por seu dono haver trocado. Era com a cenoura velha que estava acostumado. A contestação com a atitude arbitrária era andar devagar, cabeça baixa. O seu dono, ao final do dia, sentado ao degrau da escada de seu barraco, iria despertar-se para a razão de haver ele andado devagar desde as seis da manhã até às sete da noite.
***
Uma das duas alternativas explicaria a razão da troca: primeiro, correu tanto no “beco do moinho”, outra ladeira que deixa os transeuntes com o bofe na garganta, que o carroceiro fora jogado ao chão. Não quebrou alguma parte de seu corpo por milagre; segundo, fazia uns três dias que andava devagar, de cabeça baixa. Era a cenoura. Estava velha.
***
Intuição infeliz. Não era a cenoura. A velhice. È um asno de muitas primaveras. Já se encontrava cansado de suas andanças por toda a cidade levando e trazendo fretes. Estava cansado, necessitando de férias.
***
Curioso com a atitude do asno, veio-me à mente o melhor teria sido se o carroceiro houvesse tirado a espécie de varal que mandara colocar à frente do asno, com a cenoura dependurada. Assim, correria, quem sabe até mais. Nalgum lugar da cidade, iria encontrá-la, abocanhá-la, comê-la com maior prazer ainda.
***
A especulação fora infeliz. A ansiedade por compreender o que estaria acontecendo fez-me pensar besteira.
***
Saberia a razão. Mesmo que tivesse que correr atrás da carroça até alcançá-la. Perguntaria ao carroceiro o que estava acontecendo. O seu asno só é visto desembestado pelas ruas. Naquele dia, ao contrário. Qual seria a razão?
Já era demais a situação, a preocupação com Lúcifer Pernóstico, o nome real do asno, embora com letras sábias, as que movem fáceis, construo algum acróstico que no momento não me é dado saber, por não estar escrevendo, esteja subindo a rua do hospital. Algo inconsciente, mas em se tratando de Lúcifer Pernóstico acabei de crer tudo ser possível, realmente me inspira e muito. É a oportunidade que tenho de mostrar o lugar que ele ocupa dignamente na história da humanidade, o patrimônio nosso de cada dia que ele representa.
***
Ora, se desejava tanto saber tinha de adquirir fôlego e correr atrás da carroça. Impossível. Se andando devagar, ao final, só não coloco a língua para fora por precaução de comentários jocosos. “Nem Lúcifer Pernóstico a põe”.
***
Colocar-me-iam no lugar do asno. No sentido de realizar a língua alheia, teria de arrumar uma carroça para puxar por todo o dia, levar e trazer fretes. Paro. Recupero a respiração. Sigo em frente. Às vezes, passando no barzinho de um grande amigo, um poeta, com quem tenho prazer de alguns dedos de prosa.
***
Assim, diante de tanta curiosidade, só me restaria uma alternativa. Perguntaria a algum transeunte que subia a rua junto comigo o que estava acontecendo com o asno. Temi a resposta. Poderia responder: “Por que você não pergunta para ele?” Resposta malcriada, mas, em verdade, inteligente: quem melhor sabe de seu estado de espírito é quem o vive na alma.
***
Quem sabe o melhor seria perguntar ao carroceiro. Sabia. Para isto, teria de correr atrás da carroça. Não era possível. O hábito do fumo está acabando com o meu fôlego. Isto é uma justificativa: em verdade, tinha medo dos comentários dos transeuntes. O asno não corre mais, agora é ele quem corre atrás dele. Poderiam até encontrar uma solução para o problema: seria aconselhar o carroceiro a trocar o asno por mim.
***
Uma lembrança me surgiu, quase na metade da rua: o que as pessoas dizem, quando alguém age de modo arbitrário, mostrando bem a ausência de inteligência, a falta de estratégias para realizar os seus desejos mais íntimos e ocultos. Dizem: “Aquele ali só falta as penas para burro”. A fala contrária surge: “Mas burro não tem pena”. Conclui o outro quem disse: “Então, não falta nada”.
***
Inclusive, não havia percebido algo diferente na carroça, devido ao fato de me haver centrado no andar lento do asno. O carroceiro a havia pintado de vermelho. Seria uma explicação. O cheiro forte de tinta fresca incomodava Lúcifer Pernóstico.
***
Movido pela intensa curiosidade, não encontrei qualquer outra alternativa senão a de perguntar algum transeunte. Olhei para todos que subiam, observando a fisionomia, os traços.
***
Desejava perguntar a alguém que me inspirasse confiança, fosse educado, não me desse resposta malcriada.
***
Uma moça de cabelos curtos, corte que muitos chamam de “Joãozinho” por quase ser possível ver o couro da cabeça. Trajava uma blusa “amarelo-cheguei”, decotada, calça preta, olhos azuis. Pareceu-me alguém muito educada, gentil.
Aproximei-me, perguntando se poderia me dar uma informação. Sorriu, dizendo que sim. O que desejaria saber?
***
- Você conhece aquela carroça?
***
- Sim. Esta carroça é famosa aqui na cidade. Quem não a conhece?
***
- Por que será que o asno está andando tão devagar? O costume dele é andar desembestado.
***
- Moço, aquele ali só falta a pena.
***
- Para ser burro!... Mas ele já o é.
****
- Não. Com a pena, escreveria a nossa História com tanta dignidade e sinceridade que faria o queixo de muitos cair. Nada de interesses e ideologias chinfrins.
***
Dei uma gargalhada daquelas. Uma resposta muitíssimo espirituosa.


#RIO DE JANEIRO(RJ), 16 DE JUNHO DE 2020, 10:52 a.m.#

Comentários