#SÁTIRA À BASE DE PERMETRINA# GRAÇA FONTIS: PINTURA Manoel Ferreira Neto: PROSA SATÍRICA ***



Perguntais-me vós o que preferiria fazer, se catar coquinhos no asfalto ou pentear macaco no crepúsculo do bosque, à soleira de uma caverna, clima ameno; respondo-vos no riste da língua de imediato que "procurar outra coisa para fazer", o significado da expressão idiomática, ao invés de forçar a mente a trazer à superfície a idéia, a palavra, o nome, etc., etc., é o mais aconselhável, pois causa angústia, agonia, desespero a demora, pentear macaco no crepúsculo, cuidar da minha vida, o significado da expressão popular, faço-o com todo esmero, desejo cair aos pedaços de tão velho. Respondo-vos que prefiro procurar algo para fazer, pois no crepúsculo da vida nada mais faço senão assistir à passagem do tempo.
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Num outro ângulo de visão, ainda conservando e preservando as duas expressões populares, respondo-vos a plenos pulmões que no asfalto não dá coquinhos, não há como plantar a semente, regar com água colhida da cisterna, esperar a colheita, a menos que algum caminhão num aclive bem acentuado do asfalto tenha deixado alguns caixotes caírem, tendo eles se esparramado, não seria louco de catá-los, pois que asfalto é trajeto de veículos em alta velocidade, mas pentear macacos seria perfeitamente realizável nas condições por vós descritas, uma excelente terapia para as moléstias psíquicas.
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Perguntais-me vós que diferença estabeleceria entre tirar bicho de pé, sentado numa tora de madeira à soleira de casebre, no alvorecer do primeiro dia de verão, calorzinho já prometendo ser de lascar os ossos e catar piolhos numa cadeira no alpendre de casa, ouvindo cães renascidos chorando continuamente. Respondo-vos que não tratarei da questão em termos científicos como esperava fizesse eu: a alternativa para acabar com piolhos é usar xampus à base de permetrina, substância que mata os bichinhos, e passar o condicionador com o pente, tirar bicho de pé é removendo-lhe da pele, de preferência num posto de saúde, com uma agulha estéril. A diferença está nos verbos das situações: tirar bicho de pé seria mudá-lo de lugar, fazendo-o sair do lugar onde está ou fica - quê despautério isto de trocar o bicho de pé de lugar!... Catar significa procurar, buscar, e procurar piolhos, lêndeas, ovos de cor branca que dão origem aos parasitas por hora é preciso ter muita paciência, pois ficam grudados no fio do cabelo.
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Felizmente vós pedis apenas que estabeleça as diferenças. Se houvésseis pedido a minha escolha, tirar bicho de pé ou catar piolho, responder-lhe-ia, a contragosto, de modo atravessado, isto é, preferiria retirar a pérola de dentro da ostra da conchinha, sentado na praia, no crepúsculo de inverno.
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Perguntais-me vós para onde desejaria eu ir, para a tonga da mironga do kabuletê ou para o raio que parta. Tomando em consideração que fazer feitiço para indivíduo reles lavrar a terra jamais estivera nos meus projectos, nos meus sonhos inestimáveis, com que ingredientes faria este feitiço, jamais alguém prescreveu a receita, e no que concerne ao "raio que parta", não sei se teria coragem de estar no meteoro que, nas tempestades, se manifesta entre a terra e as nuvens. Mas se é para ir para algum lugar, com efeito, iria para as prefundas de meu inferno, alfim a psicanálise é em essência a cura pelo amor.
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Estimo solenemente que as respostas aos questionamentos que vós me apresentais na missiva a mim endereçada, com o propósito de me fazer pensar, se é algo que não gosto de fazer é isto, o que constitui uma mente sedentária, haja satisfeito a vossa curiosidade sobre questões tão complexas, haja vos mostrado que por não gostar de pensar não significa que seja alienado, vejo as coisas sob a luz dos instintos.


#RIO DE JANEIRO(RJ), 07 DE JUNHO DE 2020, 13:13 p.m.#

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