NO BURACO DA GIRULIKA GRAÇA FONTIS: PINTURA Manoel Ferreira Neto: PROSA SATÍRICA ***



Quando tenho algum tempo na redação – o trabalho e as responsabilidades são imensos; visto sofrer de uma doença incurável chamada pelos grandes psicólogos de “neurose de perfeição”, não aceito qualquer deslize, não admito erros e enganos nas minhas opiniões, na minha consciência, tudo tem que sair como manda o figurino -, sou eu quem vai ao açougue para Girulika. É impressionante como os açougueiros passam a pobre para trás. Pede uma qualidade de carne, é servida de outra. Os dentes é que sofrem com a mastigação.
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Algumas vezes eu quis ir ao açougue reclamar, mas ela não deixou, não criasse confusão só porque o açougueiro serviu chã de fora, quando fora pedido chã de dentro, um quilo de carne acaba logo. Ela não entende que se vamos permitindo as coisas acontecerem, sem qualquer insatisfação, resultando em reclamação, damos asas às coisas permanecerem do mesmo jeito, a cada dia piorando mais e mais. Assim, jamais haverá mudanças. Prefere ser tripudiada, engabelada do que exigir seus direitos.
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Não digo apenas neste buraco de mundo, mas em todos os outros, as pessoas têm medos indescritíveis de fazerem inimigos, além de terminarem os dias de vida sozinhas, não vão conseguir coisa alguma na vida, na hora das grandes e urgentes necessidades não encontrarão mãos que lhes estendem e as tirem das dificuldades. Todos aproveitam disso. Quem não aprecia os oportunismos? Tudo é permitido, para sempre imperarão as condutas e atitudes de não.
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Vivi na capital por oito anos. Levei uns três até me adaptar à realidade. Ninguém conhece ninguém. Ninguém convive com ninguém. Aprendi a duras penas a conviver comigo mesmo, só contar com as minhas capacidades. Não existe isto de “estou na pior”, alguém vai me ajudar. O que se tem de dizer a alguém, diz-se logo e com todas as palavras para não haverem dúvidas ou desconfianças. Não se vai mais encontrar com a pessoa.
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Para mim, pouco me importa um inimigo a mais só porque lhe disse o que penso e sinto sobre as suas atitudes, sobre as suas falcatruas. Digo, assunto encerrado. Sempre fora homem direto e franco, tendo vivido na capital solidifiquei a franqueza. Dizem alguns amigos que, querendo ser gentil, sou bastante, mas querendo ser grosso, sou um verdadeiro cavalo de ferradura e tudo o mais. Girulika não entende estas coisas, chama-me a atenção sempre quando rasgo os verbos na “lata” de alguém.
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Dia desses, um pouco incomodado com o fato de não estar podendo escrever as minhas crônicas nos botequins, enquanto tomo a minha cerveja, haver quem se aproxima e começa a perguntar isto e aquilo, comentar sobre esta ou aquela crônica, não sou grosso, dou a atenção devida aos leitores, uso de minha finesse, além de dizer respeito ao carinho e amizade que sinto por eles, é lhes agradecer o renome que desfruto, renome que foram eles a me legarem com o mesmo carinho e amizade, fui para a periferia, num botequim copo-sujo.
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Dizem alguns que os artistas são conhecidos por todos, os artistas só conhecem alguns. É e não é verdade. Haverá alguém que não conheça. Não iria adiantar andar tanto para poder escrever sossegado. O tempo circula por toda a cidade. Mesmo assim ousei fazê-lo. Olhei as pessoas, nunca as tinha visto mais gordas ou mais magras. Não me pareceu que me conhecessem. Sentei-me, pedi uma branquinha, cerveja, tirei a agenda de dentro da pasta, abri-a numa página em branco, comecei a escrever. As pessoas ficaram me observando. Não fosse alguém que me conhecia chegar, ficaria lá o quanto me aprouvesse, não seria incomodado.
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A pessoa se aproximou.
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- Tudo bem? – cumprimentou-me seriamente; senti logo que estava insatisfeito comigo, visto o tom de sua voz.
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- Tudo bem. Obrigado.
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- Então, que negócio é este de em suas crônicas no jornal chamar a nossa cidade de “buraco de mundo”. Mais respeito, sujeitinho? Se não gosta daqui, vai embora, e não volte mais.
Prestei atenção em todas as suas palavras. A pessoa estava bem nervosa, qualquer palavra minha fora do lugar era motivo de dar-me um murro nas fuças. Naquele lugar, teria o apoio de todos os fregueses. Seria espancado. Manter o senso era necessário, ficar calmo e tranquilo mais ainda.
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- Verdade sim. Em minhas crônicas digo isso. Há crônica intitulada No Buraco da Girulika, Girulika é minha esposa, digo-lhe com franqueza, é de uma inteligência sem limites para dizer asnadas. Não sendo daqui deste lugar, as origens são do sertão, ela que nascera aqui, obviamente estou no buraco dela.
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- Não tem medo de apanhar não?
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- Nunca estive nesta situação de apanhar por isto, noutra situação qualquer já fora ameaçado.
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- Sempre tem a primeira vez – olhei ao redor e todos prestavam atenção. Enfiei-me numa fria. Não devia ter ido naquele botequim. Girulika já tinha me avisado que escrevesse minhas crônicas ou na redação ou em casa, nunca em botequins, se me sentia incomodado com as interferências dos leitores.
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- Senhor, dê-me licença de lhe perguntar uma coisa?
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- Que coisa? – fechou a mão direita.
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- Onde esta cidade foi construída? A menos que esteja ensandecido, está construída no abismo, num buraco do abismo. Ao contrário de estar criticando, como o senhor está insinuando, estou-lhe reconhecendo, enaltecendo-lhe os méritos, a sua verdadeira origem - o cinismo estava evidente, mas não percebeu.
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- Verdade sim.
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- Então?
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Alguém dos fregueses interrompeu:
- Aqui, meu camarada, dirigindo-se à pessoa que me havia interrompido a escrita para me repreender, se você pega táxi, só paga para subir, o motorista só desce na banguela. Nossa cidade está no fundo do buraco.
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Dei graças a Deus à interferência do freguês.
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- Desculpe-me se fui grosso com o senhor. Não havia pensado nisto de a cidade estar construída no abismo. Desculpe-me mesmo. Pode voltar a escrever as suas crônicas.
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Dirigiu-se ao balcão um tanto vexado, olhando para os fregueses, pediu uma pinga, tomou-a de um fôlego só. Pediu-me desculpas mais uma vez, foi embora. Não demorei muito mais. Tomei a cerveja às pressas, escrevi uns dois parágrafos, paguei, despedi-me de todos gentilmente, fui embora. Ficaria no centro mesmo, não mais iria parar nalgum botequim copo-sujo da periferia, é muito perigoso. Se não houvesse tido presença de espírito, respondendo-lhe como o fiz, poderia ter levado um tiro, observei algo debaixo de sua camisa, na cintura, pelo volume pareceu-me um revólver. Jamais vou deixar de escrever em botequins, com interferências ou não dos leitores, nunca mais na periferia. Aprendi com a experiência.
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Fosse nalgum botequim do centro, mandaria a pessoa catar coquinho no asfalto. Girulika não entende que a franqueza tem seu tempo e lugar devido. Não ando dando coices a deus-dará sem olhar ao redor, seria idiotice minha. Mas não nego que no íntimo estive para mandar a pessoa àquele lugar com todos os direitos de refestelar-se nas chamas mais vivas. A ameaça de morrer e ser eu quem iria para lá fez-me calar os ímpetos.
#RIO DE JANEIRO(RJ), 15 DE JUNHO DE 2020, 10:00 a.m.#


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