#DECORAÇÃO VISÍVEL# GRAÇA FONTIS: PINTURA Manoel Ferreira Neto: PROSA SATÍRICA ***




Caríssima amiga Eleanor Regnis:

Êxtases portáteis poderiam ser engarrafados, em bujões, e não por pouco tempo os clímaces de conveniências expostos em galerias, e a paz de espírito como complemento e preenchimento dos interesses poderia ser remetida em galões pela diligência do correio, passando por territórios íngremes, solo rachado pela pujança solar, vegetação esturricada, aquele jingle-jange devido aos buracos, quê coisa linda não é viajar de diligência! Imagine piquenique num bosque, sendo conduzidos dois amigos por uma diligência, o panorama, a paisagem, à beira de um rio, ouvindo o cântico dos pássaros, sui romantique, non?
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Expressando-me neste estilo, e se houver intrujice e galhofa, ficam a piedade e lástima, o leitor e ouvinte poderão pensar que estou brincando, experimentando o risível, ironizando, e sinceramente é um dos poucos instantes em vida que me encontro bem instalado no mundo, ouvindo músicas, com o cigarro no canto esquerdo da boca, sem camisa, descalço, de shorts, digitando no computador, cuidando de minha espiritualidade e redenção, por vezes levanto-me e, dançando sob o ritmo blue, instigo a alma a revelar sentimentos ocultos e interditos na performance da dança e das intenções sui generis dos desejos de vida, vida, há coisas a serem expressas, o tempo artificia-las-ão Posso assegurar, entretanto, que ninguém brinca muito tempo, quando estiver sem qualquer intenção ou interesse, aí há uma originalidade sem limites e fronteiras, o que é em demasia perigoso, não se sabe de onde sairão as oportunidades e favores.
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Tenho o costume de gracejar, fazer pilhéria, ironizar, de vez em quando em meio à minha própria consciência da miséria humana, de verter lágrimas, deixá-las escorrer nas maçãs do rosto, mantendo um caráter grave e solene e, a menos que seja atingido por sentimentos mais poderosos, temo ser culpado da prática indecente até nestes anais de sofrimento e prazer.
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Não irei negar que algumas verdades são enviadas para o mundo a respeito de estado tão insolente, desumano, insolicitado, acerca da miséria humana, assim como os eruditos afirmaram repetidamente que se me entrego inteiramente a elas provavelmente morrerei com os olhos esbugalhados, a boca cheia de dentes amarelados pelo vício do fumo, o que é particularmente desagradável para qualquer homem de hábitos singulares e regulares. Imaginei ontem um homem, entupigaitado de fricotes de endinheirado, manias às pencas, indo ao sítio de amigos para o final de semana, pegando bicho-pé, os hábitos singulares intensificando-se, quantos pitis se somariam aí. Mister encontrar médico especialista em bichos de pé, dinheiro não é o problema. Todas estas difíceis e intragáveis observações e afirmações de dores, culpas, remorsos, que preenchem os espaços vazios, e constituem singularmente a miséria, são realmente verdadeiras, isto queira ou não, pense em injustiça ou perseguição, sou obrigado a endossar, pendendo um pouco a cabeça para o lado esquerdo, semi-fechando os olhos, uma atitude tão trigueira de indiferença e pouco caso, sou obrigado a assumir que são verdadeiras, Não posso negá-las a menos que esteja sim ficando demente. Se o cinismo é a indiferença às leis, normas, regras, ao poder, por que não ser cínico? A verdade sempre foi e será recomendável.
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A verdade é que, mesmo vinho, até uma certa medida, e em determinados homens, geralmente tende a exaltar e sustentar o intelecto: eu mesmo, que nunca fui um grande bebedor de vinho, costumo achar que meia dúzia de copos de vinho afeta vantajosamente as minhas faculdades, deixa a consciência mais brilhante e intensa. O vinho costuma levar um homem ao extremo do absurdo e da extravagância, e depois de um certo ponto, ele com certeza evapora e dispersa as energias intelectuais. Resumindo, um homem que está bêbado é, e sente que é, um indivíduo cuja condição apresenta a supremacia do simplesmente humano, frequentemente a parte ridícula e violenta de sua natureza. Sente que está sob o domínio da parte mais divina de seu ser; isto é, as afeições estão em completa serenidade e acima de tudo brilha a luz do majestoso intelecto.
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Procuro, naturalmente, a solidão e o silêncio, condições indispensáveis para meus transes, ou sonhos profundos, que são o coroamento e a consumação de tudo o que a consciência da miséria humana pode fazer pela passagem do tempo.
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Eu, cuja miséria é meditar demais e observar muito pouco, e que estou praticamente caindo numa profunda melancolia por pensar em demasia nos sofrimentos humanos, conheço claramente as tendências de meus próprios pensamentos para fazer tudo o que seja possível para combatê-los.
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Parece-me que pela primeira vez me coloco à distância das desventuras da vida; como se o tumulto, a febre e a luta fossem suspensos, um prêmio para as secretas chamas do coração, um relance de repouso, um descanso das ocupações humanas. Aqui estão as esperanças que florescem no caminho da vida, reconciliadas com a paz que está nas sepulturas. Mas, quanto a isto, há desavenças: a rua do cemitério ser a da saudade e a da cadeia pública ser do bom fim. Sendo assim, o que está nas sepulturas é a saudade. Os movimentos da mente tão serenos quanto os do céu, e no lugar de todas as ansiedades uma calma e tranqüilidade reparadoras, uma moleza que não parece fruto da inércia, mas do equilíbrio entre os extremos e antagonismos; atividades infinitas, repousos infinitos.
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A miséria e o sofrimento estão, por assim dizer, em estado latente. Raro poder contar com minhas faculdades mentais para escrever uma carta; uma resposta em poucas palavras é o máximo que posso executar, e assim mesmo só depois de a carta ficar semanas ou meses sobre minha mesa de trabalho. Verdade verdadeira e verdíssima de tão vera: não sei mesmo escrever cartas.
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Você pode ver que todo o escrito se parece um pouco com uma resignação ininteligível com tudo o que diz respeito aos homens e a mim, sem dúvida, um gradil pintado de forma a dar uma impressão de relevo real e seguindo, naturalmente, a curva do teto. Todos os interstícios entre o estilo, caligrafia, estão recobertos de uma indignação e ressentimento com alguma coisa que não posso precisar, mas algo parecido com estar preso em uma elegante e belíssima gaiola para mim apenas. Devo acrescentar que a noite está muito bela, lindíssima, muito transparente, a lua muito viva, a ponto de, mesmo após ter apagado a luz, toda a decoração continua visível, não iluminada pelo olho de meu espírito, como você, ingênua e inocentemente poderia assim induzir ou deduzir, concluir ou interpretar, como você, em última instância poderia crer, mas clareada por esta bela noite, cujos brilhos embaraçam-se a todo este bordado de ouro, espelhos e cores mosqueadas, vistos de meu casebre à beira de um córrego - como lhe dissera, estava saindo da cidade, os homens perderam o freio de suas carroças, diligências. Resido hoje no Bosque das Marolas, exilei-me.
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A noção do tempo ou, antes, a medida do tempo é abolida e a noite inteira é bem mensurável para mim apenas pela profusão de meus pensamentos. Ainda que, deste ponto de vista, tenha eu parecido muito longo em escrever-lhe, aliás sem intenção alguma de dizer algo que se possa levar em conta ou relevar pelo absurdo e indiferença de todas as coisas, tenho a impressão de que levei apenas alguns segundos ou então que não havia tomado lugar algum na eternidade. A dor e a idéia do tempo esvanecem-se ou, se às vezes ousam produzir-se, são transformadas e transfiguradas pela sensação dominante e estão, assim, em relação à sua forma habitual, como a melancolia poética está para imaginação fértil e re-criadora.
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Não havia, afirmo, qualquer intenção de escrever-lhe algo, informar-lhe de como estou a viver os meus dias, inteirar-lhe dos últimos acontecimentos. Sentei-me com o propósito de exercitar os dedos escrevendo algo endereçado a alguém, mas não imaginei que fosse tomar outro rumo, e assim estaria eu revelando o que muito intimamente tenho pensado e refletido acerca de um coração, terno, fatigado pela infelicidade e decepção, mas ainda pronto a seguir esta procissão da imaginação humana até sob seu último e mais esplêndido repositório, até a crença do indivíduo em sua própria divindade.
Neófo Baciluz
#RIO DE JANEIRO(RJ), 08 DE JUNHO DE 2020, 11:32 A.M.#

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