**LEITURA DA ALEGORIZAÇÃO EM ROSA** - Manoel Ferreira


As artes são sistemas de convenções retóricas, não se limitando, reduzindo-se a metáfora, metonímia, alegoria, símbolo, paradoxo, a nenhum deles.
A literatura não pode exprimir uma verdade, pois toda verdade encontra-se do lado do sentido espiritual (allegoria in factis), de modo que a literatura é pensada como sentido literal figurado.
A Idade Média subdividiu a alegorização em dois tipos principais, allegoria in factis e allegoria in verbis; divisão esta, que já se encontra implícita na teoria do signo de Santo Agostinho, efetiva-se na obra de Beda, o Venerável, e consiste em afirmar que a significação das Escrituras, além de admitir uma leitura literal, também admite outra, alegórica: esta pesquisa, no discurso, as maneiras de representação indireta (através de tropos, principalmente a metáfora) de um outro – que hoje se chama de “referente” – coisa ou fato natural (trata-se da allegoria in verbis, estritamente lingüística, como seu nome o diz); tal “referente”, coisa ou fato natural, segundo a doutrina medieval da revelação e da criação, é também linguagem, embora linguagem secretíssima e muda: a Natureza é também um tecido de símbolos, presença de uma escrita sem letras – Deus, antes de aprender o hebraico, o grego e o latim, escreve o mundo sem alfabetos, inscrevendo em toda a sua obra as marcas de sua presença (trata-se da allegoria in factis).
No século XIII, sabe-se, Guilherme de Arvérnia inovou a questão, em seu De legibus (V, 40), quando postulou que a allegoria in factis não era propriamente um fenômeno inerente aos acontecimentos e desejado por Deus, mas produzido pelos exegetas: a união de Davi e Betsabá, por exemplo, não “significa” a do Cristo com a Igreja – trata-se apenas de uma analogia. Situada nos confins da ortodoxia, tal concepção não se impôs; a escolástica consolida a doutrina tradicional, a do “simbolismo das coisas”. O ponto de partida para o simbolismo generalizado das Escrituras é o poder de Deus, que ordena o curso das coisas de modo que elas também se tornam símbolos de outras coisas, é o que escreve Santo Tomás de aqui em suas Quaestiones Quodlibetales, VIII, qu. 6, art. 1.; há simbolismo nos acontecimentos históricos porque a Providência orienta o curso da História, exprimindo-Se desta forma, assim como os homens o fazem através de palavras. Confirmada a onipotência divina, Santo Tomás deduz todo o resto do sistema: como a allegoria in verbis não é simbolismo dos referentes, ela é excluída do sentido espiritual.
O sentido literal, por sua vez, pode subdividir-se em sentido histórico propriamente dito (narrativa pura dos acontecimentos, denotação) e sentido literal figurado, “similitude imaginária”, segundo Santo Tomás, que ainda se relaciona com o sentido histórico. Teológica, tal teoria afirma o primado da allegoria in factis, pois obra direta de Deus, que exclui de seu campo de operação a allegoria in verbis, confinando-a nos limites da retórica ou da poética, como tropismo.
A alegoria, como procedimento retórico – diábolon -, como metaforização, delicia-se no seu próprio deslizamento incessante de designação para significação, de significado para sentido – seu movimento é aberto e mesmo o inexpresso da proposição, pois ela admite uma “com-possibilidade” de significações proliferantes. A alegoria evidencia o procedimento, também evidenciando que a linguagem significa, como convenção. Tomando em conta a tese classicista, se o significante é uma espécie de invólucro imediato e explicito do significado ao qual é adequado, a imagem que recorre a um outro para dizer o significado de um mesmo é já invólucro segundo do significante primeiro que, por sua vez, é o representante autêntico de um Significado – este, realmente, o primeiro – numa ordenação que opõe sentido próprio e sentido figurado, representação direta e representação indireta, discurso nítido e discurso metafórico, discurso de adequação e discurso de ornamentação.
De que lança mão a alegoria? Da designação de uma coisa pensando-a duplamente: tem um sentido manifesto e um sentido oculto, ou seja, a designação tem uma significação primeira que, por sua vez, pode ser a designação de uma significação segunda – indefinidamente, numa troca incessante entre o espaço da referência e o espaço da significação. A tese medieval – e também a de Riobaldo, personagem de Grande Sertão: Veredas -, ao propor o substancialismo, pensando a operação retórica de análise e de interpretação de signos do discurso como revelação, hermenêutica dessa mesma interpretação, como se o significado precedesse o discurso, toma o efeito como causação desse mesmo efeito.
Como a língua é um sistema em que a polissemia é um jogo diferencial e não necessariamente diacrônico, como postula a estética da representação em sua convenção, a imagem não se determina como um segundo vampirizando o próprio e nítido de um primeiro, já que não há nenhum sentido primeiro prefixado na língua ou discurso. Assim pensada, a imagem deixa de ser um signo empírico, redutível a uma relação de reprodução visual em que ecoam as vozes da Ausência, passando a ser um modo, entre outros, de teatralização de uma idéia. Deixando de ser lida através da decifração/interpretação hermenêutica, que nela revela uma verdade, a imagem é mais uma técnica retórica entre tantas, e, como técnica retórica, também produz efeitos “profundos” e “primeiros”.
Desta maneira, repensando a alegorização como técnica retórica por imagens, como teatralização de idéias, seria possível determiná-la como uma cena em que atua um ator que foge, quando se mostra, não para um “antes”, nem sequer para um “depois” – e, em ambos os casos, para o sentido próprio, o verdadeiro etc. da sua aparição – mas lateralmente, na simultaneidade do sistema em que se dá, evidenciando justamente o diferencial do sistema em que ocorre como encenação da produtividade do sentido no nada.
Que se pense em uma imagem “fonológica” – no sentido de sistêmica, diferencial – que não se determina a partir de um primeiro, valendo só pela relação, e que realmente privilegia a designação – a coisa, seus aspectos sensíveis – não tanto para fixar o significado de uma coisa adequada às operações do bom-senso classicizante, antes para produzir sentidos e os ritmos de sua insistência simultânea, rebatendo-se no discurso e no sistema em que ocorre.
Pensar, teorizar assim, a imagem em Rosa poderia ajudar, esperamos que sem o muito cansaço demasiado do leitor, a construir uma tópica da imaginação em que a imagem é o material de um efeito (mesmo, e principalmente, de um efeito da enunciação que, para o sujeito que enuncia ou para o sujeito que lê, positiva-se como Idéia que a linguagem revela).
A alegorização de Rosa é primeiramente retórica, produtiva de efeito metafísico cujo hermeneuta é o narrador: todo primeiro é, assim, efeito, efeito diferido na enunciação e, em Riobaldo, efeito de efeito, indefinidamente, pois suas metáforas não são metáforas de substituição do próprio por um figurado, mas metáforas que espelham a Metáfora. Trata-se de platonismo: platonismo não apenas temático, como dispositivo da velha tópica da presença e da anamnese/ascese do narrador (coisa que também há), mas platonismo como formidável saber dos signos, como exploração das virtualidades ilimitadas da língua, como possibilidade metadiegética de dizer o outro do mesmo e vice-versa, como exploração das substâncias em que recortam forma da expressão e forma de conteúdo, jogo de espelho sem forma prévia de que a imagem seja o ícone.
Através da alegorização, Rosa evidencia um trabalho de contínua renovação e reinvenção da imagem por deslocamentos dos efeitos de interpretação. Por recusarem o elemento noético explícito – ou como Realismo ou como Classicismo – suas imagens são metamorfoses que, não visando a provar, a de-monstrar, a descrever, dão-se como simulacros de conceitos e, portanto, apontam, deslizantes, o sensível e a Idéia, o que Riobaldo, numa alta imagem, chama de “Absolutas estrelas” .
Representado como sujeito a falar ininterruptamente, é na fala mesma de Riobaldo que se produz o enunciado do passado – e de tal modo intenso que a anterioridade efetuada a partir do presente torna-se uma imagem mítica, estabelecendo-se como princípio causal. Pelo efeito de real que narrativas produzem, lê-se o texto como revelação ou rememoração; entre os dois tempos que se estabelecem, o presente da enunciação e, ficção da ficção, o passado do enunciado, dá-se uma circularidade de trocas em que o mito, como doador da significação do presente, é paralelo ou até posterior ao discurso que o constitui como figura, ou alegorização. Desta maneira, é o final do texto, em que se explicita a epígrafe



O diabo na rua, no meio do redemoinho...



- quando Diadorim e o Hermógenes se matam um ao outro na rua do Paredão – que determina o início da ação de narrar, pois nele o narrador regride até encontrar-se com a figura do jagunço que foi para, desapossando-se dele, inventar a ficção de um passado em que a estória ficou acabada e na qual, finalmente, ele tornou-se o narrador de seu próprio passado - afinal, “narrar é fazer escolhas visando a um final e a seu efeito”, sendo mesmo sempre o final que determina os começos e sua interpretação.
Quando conta, Riobaldo se representa preformado pela significação daquilo que ainda não contou, e que nós, os leitores, não sabemos, e que pode ser que o “senhor” que o visita saiba: a explicitação da identidade de Diadorim e de sua cegueira. A cegueira advém da visão reminiscente que o predetermina e que, imposta como modelo para que ele se auto-constitua como identidade, determina-o em todos os pontos de sua fala, sobrepondo-se àquilo que ele diz como interpretação, de modo que ele muito esquece quando revela – donde freqüentemente dizer que “contar é muito dificultoso’. Alegorização, pois aquilo que fala é, em todos os pontos do discurso, uma posfiguração, imagem que cai depois, como figura de um significado dado: contudo, suas operações de designação e significação indicam, desde que fala “Nonada”, que o significado ainda não se disse – afinal, o tempo da enunciação é o da leitura – embora, nos “fatos”, é anterior ao “Nonada” inicial. Assim, é porque Diadorim morreu que Riobaldo conta até chegar ao final quando Diadorim morre quando, então, Riobaldo passa a contar: modo oblíquo de citar e desconstruir o artifício de narrativo, os termos “nonada “ e “travessia”, seus ecos e sinônimos, indiciam a construção romanesca. Temporalmente, ainda, o eu do sujeito da enunciação Riobaldo tende a confundir-se com o eu do sujeito do enunciado Riobaldo – devido ao caráter simultâneo, recorrente e sistemático das associações textuais, pois ele é situado pelo termo “Nonada”, em que se faz o narrar, no presente contínuo do texto.



O jagunço Riobaldo. Fui eu? Fui e não fui. Não fui! – porque não sou, não quero ser. Deus esteja! (GS:V, p. 166).



Fazendo-se nesse vazio, a enunciação de Riobaldo se inventa como alienação mantida de um idêntico irrecuperável: quanto mais se afirma em sua fala o projeto reminiscente, mais se consolida em ausência o corpo fantasmático do objeto que foge e mais, sob sua supervisão, mais se petrifica ele em sua alienação memorante.
A alegorização opera, pois a fala mesma de Riobaldo é memória de um saber que se ausentou: faz recordar esse vazio, figurando-o. Valorizando a anterioridade do que é verdadeiro sobre o que é dito, quando fala ele está escrevendo sem letras. Sua fala inscreve o que diz no movimento mesmo daquilo que pensa – daí a forte importância conferida por ele à memória (e por Rosa, em toda a sua produção) como reminiscência platônica:



Diz-se que tem saudade de idéia e saudade de coração... (GS:V, p. 24).



A alegorização se dá como prática hermenêutica da personagem – ou como allegoria in factis, decifração de significações secretas em coisas, tema do livro do mundo, ou como allegoria in verbis, pesquisa das significações nos nomes para captar um sentido aquém/além dos signos.
O discurso alegórico contém a proliferação das imagens do sensível na unidade de uma significação. Como esta é onipresente, prolifera em outra multiplicidade de palavras. Assim, o discurso se dá como contração e descontração do sentido, como alternância em que ora se recolhem os vários objetos da designação numa significação tomada como primeira, ora se espalha tal significação por várias designações e estados de coisas correspondentes, em operação que muito lembra a “disseminação e coleta” do Barroco.



Manoel Ferreira Neto
(*RIO DE JANEIRO*, 29 de novembro de 2016)


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