**EVENTO DO ETERNO - III PARTE** - Manoel Ferreira



O que de perto interessa nessas páginas, o que torna a sua leitura a um só tempo desnorteante e apaixonante, é que se vêem luzir, na proximidade, sim, dessa nova inspiração “judaica”, de um lado e de outro desse fio judaico esticado acima do abismo criado por seu próprio pensamento arruinado, outras teses, outros conceitos.
Dentro de um quadro conceitual em que liberdade e escolha, projeto e meta, situação e ser são definidos da forma como vimos, os conceitos de “causalidade”, “movimento” e “tempo” devem ser igualmente definidos de tal modo que o discurso existencialista não seja desintegrado, mas, ao contrário, se intensifique. A linguagem do determinismo é enfaticamente rejeitada e temos uma definição de causalidade como: “a apreensão do “aparecido” antes que apareça, como ser já ali em sua própria nadidade, assim como preparar seu aparecimento”.
A partir desse ponto, vai apenas um passo para dizer que
o tempo universal como vacilação presente; já no passado ele nada mais é do que uma linha evanescente, como a esteira de um navio, que gradualmente desaparece; no futuro, ele não é absolutamente nada, pois é incapaz de ser seu próprio projeto.



A ambigüidade fundamental de “é e não é”, de “em toda parte e em parte alguma”, de “presença imediata e distância infinita”, de “significado e ausência de sentido”, e assim por diante, é central na mensagem existencialista, na obra sartreana, lembrando de mais uma de suas frases, “sou o que não sou e não sou o que sou” . Essa ambigüidade, em todas as suas manifestações particulares, é a ambigüidade existencial de liberdade e contingência; do caráter absoluto da liberdade e da necessidade férrea de sua incorporação na situação concreta da realidade humana.
Sartre pensa que nós estamos sempre na passagem, sempre em vias de desagregar produzindo, e de produzir desagregando; que o homem está permanentemente defasado em relação às estruturas que o condicionam, porque ele é outra coisa do que aquilo que o faz ser o que é.
Manter a autenticidade angustiante do discurso existencialista diametralmente oposta ao determinismo e sua “má-fé”, enquanto reconhece todo o peso da contingência e da facticidade, significa um ato de equilíbrio imensamente difícil sobre um fio de arame, sob o perigo constante de se precipitar e romper em dois, metade do lado do determinismo mecanicista, a outra do lado da “pura indeterminação”.
Ora, A esperança agora rompe . E rompe por tomar emprestada uma palavra do judaísmo e, atrás da palavra, um conceito que ele nunca tinha, diz, “estudado” em suas “obras de filosofia” e que é o conceito de “obrigação”.
Jean-Paul Sartre crê, de fato, cada um tem em si, em seu corpo, em sua pessoa, em sua consciência, algo para ser, se não um gênio, pelo menos um homem real, um homem com qualidades de homem; mas a maioria das pessoas não deseja isso, ela pára, pára num nível qualquer, e finalmente é quase sempre responsável pelo nível no qual ficou.
Considera que, em teoria, todo homem é o igual de todo homem e relações de amizade poderiam existir. Mas, em verdade, esta igualdade é desfeita pelas pessoas em função de impressões estúpidas, de buscas estúpidas, de ambições, de veleidades estúpidas; então, lidamos com homens que seriam iguais se quisessem mudar um pouco sua atitude, mas, que, na verdade, tais como são, são contra-homens, são pessoas que se fizeram homens em situações quase inumanas.
Deve-se lembrar que a queda de braço com Hegel foi o grande caso filosófico da vida de Sartre. Deve-se lembrar sua melancolia, quando acreditou ter tudo tentado, ter envidado todas as forças, todas absolutamente, na batalha, mas que Hegel era o mais forte e que era preciso entregar as armas.
Restava uma realidade de que o hegelianismo nunca soube dar conta e que se ele, Sartre, tivesse levado em consideração, bastaria para desregular o sistema, pô-lo em xeque. Esse impensado para qualquer filosofia que não concebesse a História senão sob a forma de uma história dos “Estados”, com sua “realidade política soberana”, sua “terra” ainda, suas “relações com os outros Estados”, esse povo sem Estado, que foi por tanto tempo o povo judeu.
A fim de que se possa compreender essa questão “história dos Estados”, com sua “realidade política soberana”, sua “terra”, suas “relações com os outros Estados”, tomando em conta a “esperança”, faz-se mister considerar a idade média judaica, os judeus na Alemanha medieval, o iluminismo judaico.
A esperança messiânica estava ligada à estrita obediência à lei, com seus 613 mandamentos, com isso perdendo o vigor. Uma religião nacional de orientação messiânica transformou-se inteiramente em uma religião da Torá. A nacionalidade passa para segundo plano, em benefício da pureza ritual e moral frente às nações, das quais os judeus mais do que nunca se isolam.
Desde o início, os judeus estão presentes em toda a parte: na fundação da moderna economia colonial, no desenvolvimento de um moderno sistema econômico e financeiro na Europa, na criação do estado moderno e também no estabelecimento de uma moderna filosofia racional .
Só no século XVIII é que aparece em Berlim um homem que podemos dizer judeu e moderno ao mesmo tempo: o filósofo, escritor e crítico Moses Mendelssohn. Ele se torna o iniciador, o símbolo e o ídolo da forma especificamente judaica do iluminismo. Defende ele o judaísmo e a religião da razão, que ele busca unir a uma fiel observação dos tradicionais deveres e ritos judeus.
Por sua esclarecida filosofia da religião e pelo uso da língua alemã, Moses Mendelssohn prepara a integração dos judeus à sociedade alemã, uma e outra encarnadas em sua própria pessoa. Promove a abertura do judaísmo à cultura ocidental e ao mesmo tempo uma formação geral para a juventude nas escolas.
Na Literatura, no que concerne aos subliteratos do século XVIII francês, não poderíamos esquecer-nos de La Senne. Usou tantos nomes que não se pode ter certeza. Escrevera por volta de uma dúzia ou mais de obras, embora nenhuma possa ser encontrada.
Dedicou-a à causa do Iluminismo, sua vida tornou-se uma fraude. Simples subliterato. Um “pobre diabo” (como gente de sua espécie era costumeiramente designada na França do século XVIII) tão puro, tão irredimível que merece ser resgatado do esquecimento.
Não fora um mero espalhador de literatura. Foi a própria matéria da Literatura. Parecia a encarnação dos temas desenvolvidos por Voltaire em “le pauvre diable”. Le Senne compilou, condensou, popularizou e escroqueou o Iluminismo como se sua vida disso dependesse – e dependia mesmo, pois o Iluminismo foi seu ganha-pão. O iluminismo também era um programa para a difusão das Luzes (Lumières) – isto é, uma tentativa de propagar idéias entre o público em geral, e não apenas refiná-las entre os filósofos.
Le Senne foi a personificação da moral atribuída por Voltaire a “Le pauvre diable”:



Estamos informados de que o autor divertiu-se compondo esta obra em 1758 para dissuadir um jovem, que tomava sua paixão de rabiscar versos por talento, de seguir a perigosa carreira das letras. A quantidade de gente que se arruína por essa infeliz paixão é prodigiosa... Vivem de rimas e esperanças e morrem na miséria .



A Revolução Francesa confere aos judeus irrestritos direitos civis. Os judeus são incluídos na Declaração Americana dos Direitos Humanos em 1776, da mesma forma que na francesa de 1789. Não obstante, os direitos civis ilimitados, concedidos por decreto parlamentar, não se aplicam aos judeus como grupo religioso, mas sim aos cidadãos individuais.
Desde o século XIX, os judeus ficam totalmente expostos ao espírito da modernidade. O iluminismo racional criou as condições para uma reforma religiosa do judaísmo. Formou-se uma ciência histórica crítica judaica, e estudantes judeus insistiram nas profissões que agora lhes estavam abertas, como a de advogado e a de médico: mas para eles os postos de funcionários continuavam fechados.
Estabelecendo um itinerário da razão moderna do ponto de vista teórico, a questão foi posta no campo da conceitualização filosófica, por se tratar de um problema eminentemente filosófico e que, na sua própria formulação, está implícito na emergência de uma forma de razão que se tornaria paradigmática: a razão filosófica.
O aparecimento da razão filosófica, evento inaugural da história da Razão no Ocidente, é assinalado pela aporia inicial em que se envolve a própria razão nos seus primeiros passos, ao buscar no terreno do mito o problema do começo (arque) e ao tematizar assim a questão sobre o seu próprio começo.
Problema metafísico e gnoseológico tanto quanto histórico, no qual se entrelaçam, formando o nós inicial do longo fio do destino da Razão no tempo lógico da sua autodiferenciação e no tempo histórico das suas formas sucessivas, as três grandes questões: a identidade dialética da Razão e do Ser, a identidade reflexiva da Razão consigo mesma e a unidade da Razão na pluralidade das suas formas e dos seus usos.
O holocausto foi o fundo do poço e o ponto final da modernidade. O ressurgimento do judaísmo, e, sobretudo, do Estado de Israel, representa o ponto de partida para uma nova época pós-moderna.
Fundado em 1948, o Estado de Israel teve um enorme desenvolvimento – econômico, político e cultural – em todas estas décadas. Para os judeus do mundo inteiro, depois de dois mil anos o Estado de Israel cria um centro espiritual e uma pátria verdadeira.
O Estado, que tem como emblema a menorá, o candelabro de sete braços, é uma democracia parlamentarista como moderna administração, como moderno exército, polícia, ciência, economia e sindicalismo. É verdade que hoje pouquíssimos israelenses ainda falam de um estado judeu como “modelo” moral.
Nas décadas de 1930 e de 1940, os judeus que combatiam pela liberdade, então chamados de “terroristas”, tentaram impor suas legítimas exigências de autodeterminação, mesmo com o emprego de métodos violentos. Nas décadas de 1980 e de 1990, também os combatentes da libertação da Palestina fizeram o mesmo, e também eles foram chamados de “terroristas”.
Em Os comunistas e a paz, Sartre opõe a “democracia de massa” à “democracia burguesa”? O que a caracteriza? Em que diferem? A “unanimidade”. A necessária “unanimidade”. É uma unanimidade que, diz ele, “se refaz sem parar pela liquidação dos oponentes”. Se resistirem? Sartre não hesita. “Vai-se até a violência”. Pois “aos olhos do “grupo”, escreve, “o dissidente é um criminoso”. Sartre que acaba de escrever, no prefácio a Les Damnés de la terre, que essa animalização é um dos piores traços do colonialismo e um dos sinais indisfarçáveis que permitem reconhecê-lo, e mesmo assim é impelido a tratar de cães seus adversários anticomunistas.
Deve-se pensar haver, de novo, um duplo Sartre. Deve-se pensar haver dois Sartre, sim, em debate, um contra o outro, quase em guerra. Deve-se pensar haver um, dentre os dois, que não teme falar como Lênin (tendo em vista, já logo após a Tomada do Palácio de Inverno, “exterminar os insetos nocivos”, ou os “escorpiões”, ou os “sanguessugas”, da burguesia) ou como Gorki (“é inteiramente natural que o partido operário e camponês extermine seus inimigos como piolhos”).
No sentido de compreendermos a objetividade não é “a simples apreciação da situação presente; e também e sobretudo uma previsão” parte da idéia do sábio:



Basta que o sábio declare que um verdadeiro sábio não se pode enganar para que fique envolvido numa série de disparates que lhe fazem perder a cabeça: um verdadeiro sábio não pode enganar-se, portanto destas precisões em relação às lebres são verdadeiras; ou as pretensas lebres não as justificam, e portanto são lebres falsas que o sábio julgou serem verdadeiras, portanto o sábio enganou-se, portanto é um falso sábio; mas um falso sábio não diz a verdade, portanto enganou-se quando disse que o verdadeiro sábio é infalível, portanto um sábio verdadeiro pode enganar-se, portanto o sábio é talvez um verdadeiro sábio que se engana, portanto a falsa lebre é talvez uma verdadeira lebre



O realismo socialista deve ter em conta os fatores subjectivos. Deve resolver esta antinomia nova; tese: o subjetivo é uma estrutura secundária da objetividade – antítese: a objetividade depende de uma subjectividade que aprecia e prevê os fenômenos e que os modifica em função das suas apreciações .



Um texto publicado em La Cause du Peuple, no dia seguinte ao massacre, pela OLP, em plenos Jogos Olímpicos, dos onze atletas israelenses em Munique. “Acho “perfeitamente escandaloso”, escreve, “que o atentado de Munique seja julgado pela imprensa francesa, e por uma parte da opinião pública, como um escândalo intolerável” .
Vivendo Israel e os palestinos em “estado de guerra”, não dispondo os palestinos “nessa guerra senão da arma do terrorismo”, só podendo esse povo “abandonado, traído, exilado”



(...) mostrar sua coragem e a força de seu ódio, organizando atentados mortais”, tais próprios franceses, só podem aprovar, por sua vez, a ação terrorista dos atentados são legítimos e “os franceses que aprovaram o terrorismo da FLN da Argélia, contra os palestinos.
O terrorismo é “uma arma terrível”, admite. Mas “os oprimidos pobres não têm outra”. E como o atentado teve o mérito, ademais, de “acontecer durante competições internacionais que reuniam centenas de jornalistas de todos os paises”, “revestiu-se de uma importância mundial”, “colocou a questão palestina diante dos povos”, “revelou historicamente para todo o desespero dos combatentes palestinos e a horrível coragem que tal desespero lhes dá...” .
A idéia profunda de Sartre era que em qualquer momento da história, qualquer que fosse o contexto social e político, continuava a ser essencial compreender os homens e que, para isso, seu ensaio sobre Flaubert poderia ajudar.
Sartre prometera escrever várias obras, dar continuidade a esta ou aquela obra literária, filosófica, mas a que mais é questionada não haver escrito é As palavras. Não dera continuação a esta obra por temor de entristecer a Sra. Mancy e porque outros trabalhos o haviam absorvido. Em várias entrevistas que tivera para o filme que Contat lhe proporcionara, ele contou o novo casamento de sua mãe, sua ruptura interna com ela, suas relações com seu padrasto, sua vida em La Rochelle onde, considerado parisiense e mais ou menos rejeitado por seus condiscípulos, fizera o aprendizado da violência e da solidão.
São suas situações no mundo, a responsabilidade do homem com o projeto que construíra com suas mãos. Sob quaisquer análises, interpretações, a liberdade sartreana é indiscutível; com ela construiu sua vida, com ela estabeleceu o “evento do eterno”.



Manoel Ferreira Neto
(*RIO DE JANEIRO*, 30 de novembro de 2016)


Comentários