HOMEM-PRO-JETO e LINGUAGEM : UMA LEITURA DO NARRADOR ANDRÉ, DE CRÔNICA DA CASA ASSASSINADA - Manoel Ferreira


POST-SCRIPTUM: Joaquim Lúcio Cardoso nasceu em Curvelo, Minas Gerais, onde também eu nasci. Muito cedo, Lúcio Cardoso veio para o Rio de Janeiro, onde se eternizou como escritor. Anos mais tarde, retornou a Curvelo. Lá, fora a um Baile no Clube Social "CURVELO CLUBE", tendo sido proibida a sua entrada por ser homossexual. Jurou jamais retornar a Curvelo. E realmente não o fez. Curvelo jamais dera valor aos merecedores de valor, só àqueles que valor algum tem.



Sou o que não sou e não sou o que sou.
Sartre



A obra é a origem do artista e o artista é a origem do artista.
Martins Heidegger



Através de uma leitura da narrativa de André, um dos protagonistas do romance Crônica da casa assassinada, de Lúcio Cardoso, nossa sine qua non intenção é in-vestigar a noção existencialista de “pro-jeto”, tomada como processo de superação da existência. Nesse sentido, concebemos André como imagem da idéia contemporânea de homem presente na filosofia de Jean-Paul Sartre e Martin Heidegger.
Em seu mais célebre romance, Crônica da casa assassinada, de 1959, Lúcio Cardoso empreende uma transição da questão da trans-cendência em sentido trágico-cristão e do problema da existência de Deus, que constituem o “eidos” de seu pensamento romanesco, para a noção de homem como pro-jeto. A partir da relativização da existência de Deus, verificada no pensamento expresso por Lúcio Cardoso tanto nos seus diários quanto através da personagem André, de Crônica da casa assassinada, procuramos ”in-vestigar” como se realiza o processo de descoberta do novo homem empreendido pelo autor em sua obra-prima. Assim, tomamos André como re-presentação concreta dessa idéia contemporânea de homem, toda ela ligada a uma concepção existencialista. Nesse sentido, a noção de trans-cendência será vista a partir de um diálogo com o existencialismo antimetafísico de Jean-Paul Sartre e Martin Heidegger, respectivamente.
Crônica da casa assassinada narra a decadência dos Meneses, uma tradicional família mineira que vive numa chácara nos arredores de Vila Velha. O fato propulsor de todo o enredo é a chegada da bela Nina à velha casa da família. Nina, uma carioca com quem se casara Valdo, o filho mais novo dos Meneses, provoca, ao chegar à chácara, grande comoção em seus habitantes. Sua extraordinária beleza causa profunda inveja em Ana, mulher de Demétrio, o irmão mais velho de Valdo, e uma forte agitação em Timóteo, que há anos se trancara no próprio quarto. Sem falar no amor que levaria o jovem Alberto à morte por causa da patroa; no fascínio por parte da governanta Betty, para quem Nina se distinguia dos outros seres humanos especialmente por sua beleza singular; e mesmo na dorida e sufocada paixão que Demétrio converteu em ódio pela cunhada. Com um escândalo em torno do suposto adultério entre Nina e Alberto, o jardineiro da chácara dos Meneses, ela se separa de Valdo e, grávida, volta para o Rio de Janeiro, onde tem seu filho, André, que ainda recém-nascido é levado para viver com a família do pai. Contudo, quinze anos após ter deixado Vila Velha, Nina volta à casa dos Meneses, ao descobrir que sofre de uma doença muito grave. É nesse período que ela manterá uma relação incestuosa com André, ao mesmo tempo em que será levada à morte pela doença. Sendo simultaneamente mãe e amante de André, Nina é responsável pela imersão desse rapaz no plano da existência autêntica, marcada pelos perigos que envolvem a condição do homem no mundo.
Neste ensaio, concebemos André como imagem literária das idéias filosóficas que compõem a crítica ao humanismo tradicional. No romance de Lúcio Cardoso, André vem a ser o novo homem nascido em meio aos destroços de um velho mundo composto por valores condenados. Jovem e apaixonado, rebelar-se-á contra os ditames da tradição familiar, distinguindo-se dos demais habitantes da casa dos Meneses.
A filosofia existencialista apresenta como um de seus aspectos o questionamento do humanismo tradicional. Em Sartre, há a crítica ao humanismo clássico, enquanto teoria que entende o homem como fim ou como valor superior. De acordo com esse filósofo, à medida que o homem “está sempre por se fazer” (SARTRE, 1973, p. 27), não se pode emitir juízo de conjunto acerca do que seria a sua natureza. Para Sartre (1973, p. 31), não há natureza humana.
O homem apresenta-se como uma escolha, decisão, a fazer, que comprometerá sua existência para sempre, seja responsável ou irresponsável. Antes do mais ele é a sua existência no momento presente, e está fora do determinismo natural; o homem não se define previamente a si próprio, só engajado, mas em função do seu presente individual. Não há natureza humana que se lhe anteponha, mas é-lhe dada uma existência específica num dado momento.
No humanismo existencialista formulado por Sartre (1973), a noção histórica de condição humana substitui a de natureza humana. É o mundo histórico que faz e condiciona os indivíduos, ao mesmo tempo em que é condicionado por eles. Portanto, assim como não há uma natureza humana abstrata, ou seja, uma essência do homem independente ou anterior à sua existência histórica, também não há uma condição humana em geral. Ela é sempre específica, sempre histórica.
Conforme a perspectiva sartreana, o homem é aquilo que ele faz, sendo, portanto, responsável por aquilo que é. Nesse sentido, mais que um prêmio ou uma graça, a total liberdade do homem é uma condenação provocada pelo total abandono que ele sofre em um mundo destituído de Deus (SARTRE, 1973). Para Sartre, o ponto de partida do existencialismo é a famosa frase de Dostoiévski: “Se Deus não existisse, tudo seria permitido”. Desta idéia dostoievskiana, desdobram-se os elementos principais do humanismo existencialista do filósofo, que diz:
Com efeito, tudo é permitido se Deus não existe, fica o homem, por conseguinte, abandonado, já que não encontra em si, nem fora de si, uma possibilidade a que se apegue. Antes de mais nada, não há desculpas para ele. Se, com efeito, “a existência precede a essência” {aspas nossas”, não será nunca possível referir uma explicação a uma natureza humana dada e imutável; por outras palavras, não há determinismo, o homem é livre, o homem é liberdade. Se, por outro lado, Deus não existe, não encontramos diante de nós valores ou imposições que nos legitimem o comportamento. Assim, não temos nem atrás de nós, nem diante de nós, no domínio luminoso dos valores, justificações ou desculpas. Estamos sós e sem desculpas. É o que traduzirei dizendo que o homem está condenado a ser livre. Condenado porque não se criou a si próprio; e, no entanto, livre porque, uma vez lançado ao mundo, é responsável por tudo quanto fizer. (SARTRE, 1973, p. 15)



Chegamos a essa concepção ateísta da condição humana em Sartre com o fim de propormos uma reflexão acerca dos elementos que, a nosso ver, consumam, em Crônica da casa assassinada, a destruição dos fundamentos com que tradicionalmente sustentavam-se a existência e a permanência do sujeito humano no mundo criado pela cultura metafísica-moral e pelos valores por ela fundados. Cremos, nesse sentido, que esse processo consiste, sobretudo, na superação do problema da existência de Deus, que é apontado como uma das mais importantes preocupações da prosa de Lúcio Cardoso.
Efetivamente, o problema fundamental do homem é descobrir e realizar o significado da própria existência, por meio da realidade concreta da vida. Este aspecto faz Freud conceber o homem como uma existência orientada, sempre e em toda situação, para o significado da sua vida. A existência está relacionada aos significados segundo a expressão de Tillich , o que quer dizer que, se para o homem não existe um significado, a existência então desemboca no absurdo.
Se diante de Deus, o escritor está nu , diante do homem, Deus está naquela situação de Quem escreveu, na Tábua dos Dez Mandamentos, apenas Nove; o homem diante de si mesmo escreveria o Décimo, tudo diante da escolha tomada, o destino que foi criado, o homem tem de colocar em mãos próprias o quotidiano, a história, tem de assumir o resultado da liberdade, responsabilidade-liberdade, a opção, a escolha, procedente da “escolha-original”, procedente de tal liberdade, responsabilidade , o “olhar-que-manda-o-outro-à-merda”. O requestionar as constituições.
Uma metáfora muito expressiva, quando se trata de comunicar, numa “descrição-dos-acontecimentos-dia-a-dia”, numa linguagem e estilo, a dialética de torniquetes, tanto o que separa, a ausência que se sente do sentido da existência, a busca da alma que fundamente a existência, tanto o que aproxima do sentido que se deseja, para dizer “faço o que desejo, desejo o que faço”, o que fundamenta a existência.
A primeira instância com relação à qual o homem se sente responsável é a própria consciência. Mas é preciso assinalar que a responsabilidade da liberdade não se esgota diante da própria consciência. A consciência, por sua vez, remete a uma realidade que a transcende. É neste momento que a problemática da liberdade de ética se torna religiosa.
Se a existência humana se caracteriza pela autotranscendência, também a consciência se manifesta assim. A consciência se orienta para algo ou alguém que está além dela mesma. Realmente, o homem não pode responsabilizar-se somente perante si mesmo.
Além de a consciência existencial ser fenômeno essencialmente intuitivo, irracional, alógico e personalizante, a consciência se apresenta ao exame fenomenológico como realidade transcendente.
Na intenção de explicar a origem da moral, Freud se serviu de um ponto de vista biológico. Do mesmo modo que fez derivar o Ego do Id, explica a consciência partindo da impulsividade. Mas a verdadeira consciência, a consciência existencial ou espiritual, nada tem a ver com a “pseudomoralidade superegoística”.
De fato, o fenômeno da consciência não é definitivamente inteligível no âmbito ôntico. Seu significado específico se resolve somente no terreno ontológico. Por isso, afirma Viktor Frankl, para entender a consciência é absolutamente necessário partir de seu caráter de transcendência.
Em que sentido?



A consciência como fato psicológico imanente nos remete, por si mesma, à transcendência; vale dizer que ela pode ser entendida somente a partir da transcendência, unicamente como fenômeno de alguma maneira transcendente. Do mesmo modo que o umbigo humano considerado por si mesmo não pareceria ter sentido, porque deve ser entendido somente a partir da ´pré-história´ do homem ou, melhor ainda, de sua história anterior ao nascimento, e considerar-se como ´resto´ no homem que transcende a este último e o remete a sua procedência do organismo materno em que foi formado, assim também a consciência somente pode ser entendida em seu sentido pleno quando a concebemos, remetendo-a a uma origem transcendente .
Por conseguinte:
[...] A consciência é somente o lado imanente de um todo transcendental, que, como tal, transborda o plano da imanência psicológica, ou seja, precisamente transcende esse plano. Daí se segue logicamente que a consciência nunca pode se projetar sem violência do âmbito do espiritual ao plano do psíquico, como procuram fazer, em vão, todas as explicações do psicologismo .
Conforme Sartre, o psicologismo chegara a separar radicalmente o modo que tem a consciência de visar a seu objeto das imagens ditas psíquicas, embora no fundo tivesse reduzido as imagens psíquicas a imagens materiais em nós. Segundo essa doutrina não se pode mesmo interpretar um quadro ou uma fotografia a não ser reportando-se à imagem mental que ele evocava por associação.
Por detrás da existência humana há realidade transcendente, perante a qual o homem, mesmo se não se dá conta, é responsável.
Em O Existencialismo é um humanismo, Sartre se expressa com relação ao princípio revolucionário da liberdade. A partir da Revolução Americana e da Revolução Francesa, o princípio revolucionário da liberdade passou a ser a base ideológica do mundo burguês. A sociedade de estados da Europa antiga, clerical e feudal, foi destruída, cedendo o lugar a uma sociedade competitiva igualitária. O que determina o valor de uma pessoa já não é o nascimento, mas sim as realizações.
O princípio revolucionário da liberdade e o princípio autoritário, na verdade, inúmeras vezes dividiram também igrejas cristãs e levaram a conflitos internos, como ainda hoje se pode ver nas relações das igrejas estabelecidas com o movimento pacifista na Europa e nos EUA ou nas relações da hierarquia com a igreja popular na América Latina. A popularidade do povo já é desde sempre abertura para a poesia e o mistério, para o religioso e o divino. Em nome da tríade autoritária “deus, pátria e família”, ditaduras militares recebem o apoio da religião contra o próprio povo e contra seu desejo de liberdade .
A liberdade e suas múltiplas facetas exigem uma reflexão mais séria. O nascer das escolhas e sua proliferação colocam ao mesmo tempo uma forte pergunta sobre a questão da verdade. A pergunta ainda ressoa como na dúvida de Pilatos frente a Jesus: (quid veritas est?), “o que é a verdade?”.
Para que a doutrina cristã sobre a possibilidade de culpa radical na existência do homem seja realmente compreendida, devemos também levar em conta que o homem enquanto sujeito livre, e não meramente além disso, é um ser inserido no mundo, na história e na trama das relações interpessoais.
Ora, isso quer dizer que, sempre e inevitavelmente, ele realiza sua ação livre pessoal – pela qual é responsável e que lhe é própria – numa situação que já encontra feita e criada, que se lhe impõe e que, em última análise, é o pressuposto de sua liberdade, quer dizer que ele se realiza em situação que sempre é determinada pela história e pelas ações dos outros.
O homem compreende a sua liberdade, mas ele a compreende enquanto é histórico , inserido em sua historicidade , enquanto a História, de certo modo, determina a essência da liberdade humana.
Há dois pensadores que, na segunda metade do século XX, vão ao extremo do ateísmo . Há dois grandes escritores que, fortalecidos por uma verdadeira reflexão sobre o sagrado, encaram de frente essa tradição bem francesa que, de Valéry e Bérgson aos surrealistas, encontra-se na vontade de idealizar o mundo, de enfeitá-lo, de encantá-lo. Georges Bataille – apóstolo de uma “ateologia”, que nos revela (é Breton quem fala, mas parece fazer a caveira de Sartre!) um mundo “enodoado, senil, rançoso, sórdido, libertino, gagá”. Jean Paul Sartre, o Sartre de A náusea e de Entre quatro paredes – apóstolo (são palavras de Julien Green, mas que se poderiam aplicar a Bataille) de um ateísmo “bem suspeito”, de que um católico poderia, “sem mudar muita coisa”, ratificar a maior parte dos dogmas: humanidade desossada , mas sofredora, desamparada, mas nostálgica, abandonada por Deus e só pensando no Céu. Bataille e Sartre: duas máquinas, duas tentações antitotalitárias.
De acordo com Octavio de Faria (1996), no último ciclo romanesco cardosiano, do qual faz parte Crônica da casa assassinada, essa superação do problema da existência de Deus é, de certa forma, anunciada. Faria reconhece que, nessa parte da obra cardosiana, Deus não mais representa uma negação às possibilidades do homem. Nesse sentido, a superação de Deus realiza-se através de um resgate do homem em sua totalidade. Em seu Diário completo, Lúcio faz a seguinte afirmação:
Se me perguntassem hoje qual é o fim extremo da minha obra, diria que é o Homem, ou melhor, a reintegração na sua forma decisiva e total, sem amputações, com seus lados de sombra, de conflito e de pecado – de tal modo total que, mesmo se Deus permanecesse não nele, mas à parte dele, ainda assim lhe sobrasse uma parte de grandeza e só ou abandonado, ele ainda fosse no universo como uma obra inteira e sem dilaceramentos. Deus, sem dúvida, seria uma questão de dialética, mas o homem não seria uma forma sem conteúdo, uma sombra sem consistência, e sim uma Criação perfeita e segura, respondendo ao seu Criador (CARDOSO, 1970, p. 244).



O trecho acima foi escrito em abril de 1958, um ano após a conclusão de Crônica da casa assassinada e um ano antes de sua publicação pela José Olympio. Nessa declaração de Lúcio, há uma relativização fundamental de seu ponto de vista inicial acerca do problema da existência de Deus. Em agosto de 1949, numa provável réplica àquela frase de Dostoievski tão cara ao pensamento de Sartre, Lúcio faz o seguinte comentário:



Se Deus não existisse, não chegaríamos apenas à conclusão de que tudo seria permitido. A vida seria simplesmente IMPOSSÍVEL, o peso do nada nos esmagaria com sua existência de ferro. Tudo pode desaparecer, desde que seja possível continuar numa outra vida – mas saber que todo esforço é vão, que o jogo não tem maior razão de ser, tira-nos não só o gosto de brincar, como o de realizar qualquer coisa que valha a pena. A existência de Deus, mesmo mantida no subconsciente ou apenas pressentida, é o que garante a chama da vida no coração de quase todos os homens. (CARDOSO, 1970, p. 10)



A liberdade é um fazer, tal fazer é necessariamente histórico, não só porque supõe a historicidade como rasgo essencial do homem, como também porque a determinação histórico-metafísica do que seja o homem determina inclusive a essência da liberdade.
A validade eterna do sujeito livre, que se realiza através de sua liberdade, é a validade de sua própria história-terra e por isso ela é também sempre co-determinada internamente pelos momentos impostos que constituíram a situação temporal do sujeito da liberdade, co-determinada pela história da liberdade de todos os outros que entram no mundo concreto de suas relações pessoais.
A interpretação cristã dessa situação do sujeito da liberdade diz que essa situação determinada pelo mundo das relações sociais é inevitavelmente plasmada também, para o indivíduo em sua livre subjetividade e em sua decisão histórica particular, pela história da liberdade de todos os outros homens.
Busque-se, desde já, compreender e entender. Abraão ouve a voz de Deus e se dispõe a matar o filho; depois um anjo de Deus lhe segura a mão, impedindo o assassinato. No entanto, a decisão, em última instância, foi dele. Como ter certeza de que a voz que nos fala de Deus, de um “espírito maligno” ou de nossa própria mente? Sartre, pensando o drama do patriarca hebreu, comentava: “não há escapatória, o ser humano está condenado à liberdade” .
A escritura não diz que Abraão haja feito algo; somente creu em Deus e por isto foi justificado. Portanto, a justificação em Abraão como em todos os demais homens não é um prêmio ou uma paga, senão um dom gratuito, uma graça, mas requer “a fé”.
A fé de Abrão, segundo Gn 15,6, consistiu na confiança em uma promessa humanamente irrealizável; mas na mente de Paulo há uma consideração mais profunda, a saber: Abraão creu em Deus, e Deus o fez justo, isto é, o filho grato a ele, perdoando-lhe os pecados.
O grego diz literalmente “a fé de Cristo”. Entendemos este genitivo de Cristo como objeto da fé. A fé é a adesão do homem à pessoa de Cristo.
A liberdade é “conteúdo” de uma experiência transcendental (isto é, de uma experiência que fundamenta a possibilidade geral de sentir livre o homem em atos livres concretos), e não um dado isolado de nossa experiência objetiva. Não podemos, por nós mesmos, numa experiência individual, como nos diz Juan Luis Segundo:



[...] indicar com segurança determinado ponto de nossa vida e dizer: exatamente aqui, e em outra parte alguma, produziu-se um sim ou um não realmente radical diante de Deus .
A liberdade tende a decidir sobre o homem como realidade total, o homem é a sua entrega à busca de seu sentido, do que lhe falta. Esta consideração nos coloca, agora, outra questão: até onde é possível ao sujeito, que age livremente, praticar de fato em sua decisão essa tendência em dispor totalmente de si, em toda a amplidão de seu ser?
Haverá sempre, e de maneira essencial, uma tensão entre o que o homem é, como realidade simplesmente dada, e o que o homem quer fazer de si mesmo.



[...] escreverei qualquer coisa, sem humildade. Vê-se aqui a astúcia do orgulho. Muito lúcido para atribuir valor a tudo o que escrevo (tagarelices, falatórios, vaticínios políticos, estados de espírito), passo a passo passo a conferir valor a todas as minhas notas, sem exceção, por um desvio da História .
Nesse pensamento, expresso em 1949, a existência humana está absolutamente condicionada pela existência de Deus. Sem a existência de Deus, o homem não pode criar nada; não pode, de fato, existir, visto que o sentido de sua vida terrena funda-se na crença em outra vida. No comentário de 1958, entretanto, esse pensamento sofre uma reversão. Agora, o homem, como “forma decisiva e total”, pode tornar-se uma “Criação perfeita e segura”, mesmo que venha a ser colocada em xeque a existência de Deus.
Em Crônica da casa assassinada, André é a personagem que encarna a forma do novo homem o qual, livre de Deus, procura ultrapassar-se. No Diário de terror, Lúcio Cardoso anuncia a criação desse novo homem, que se realizará sobre as ruínas do mundo constituído pelas crenças e valores tradicionais:



Minha mais constante vontade deve ser a de um arrasamento contínuo. Meu trabalho é o de desagregar e fazer empunhar armas. Porque aí vem o tempo em que não subsistirá pedra sobre pedra, como diz o Evangelho. E o homem novo que deve surgir me impregna de tal entusiasmo, sua intuição me faz vibrar numa tão impetuosa corrente de vida, que eu muitas vezes hesitante ainda, não posso duvidar mais e caminho no mundo conhecido como entre as formas de um universo desvitalizado e sem arrimo. (CARDOSO, 1996b, p. 747)



A afirmação acima muito nos esclarece acerca do processo estético de Crônica da casa assassinada, tanto no que se refere ao plano conteudístico desse romance quanto no que diz respeito aos seus aspectos formais. Sem dúvida, a decomposição daquele mundo representado pelos Meneses, protagonizada por Nina e concebida na própria forma fragmentada da obra, nada mais é que a maneira encontrada pelo autor para promover a instauração de uma nova existência humana, mais verdadeira e mais autêntica.
André, portanto, é o novo homem nascido em meio aos destroços daquele velho mundo de tradições e valores condenados. É ele a alternativa apresentada pelo autor à vida em decadência daqueles seres abandonados pela Graça. Nos originais de Crônica da casa assassinada, que se encontram no acervo pessoal de Lúcio Cardoso, atualmente conservado no Museu de Literatura Brasileira da Fundação Casa de Rui Barbosa, encontra-se a seguinte anotação sobre essa personagem: “André diferente – pela paixão, pela coragem de ser”. Nessa frase, Lúcio distingue André em relação aos demais habitantes da Chácara, sobretudo daqueles que são representantes dos valores tradicionais defendidos pelos Meneses. Como Nina, André é um antídoto à postura niilista de todos aqueles que pretenderam negar os perigos da existência.
Com a morte de Nina, André abandona a casa, a família, desdenhando dos valores representados pelo seu brasão. No depoimento de Valdo, há uma importante passagem em que, questionando o pai acerca da ressurreição da carne, André se rebela contra Deus e, por conseguinte, contra o gênero humano enquanto criação divina:



Isto, Deus, é o que somos? Tua efígie, como ensinam que representamos, é um disfarce do podre? Somos esta hora marcada, este medo de derreter e não ser nada? Ah, é injusto. Não há piedade, e, sem piedade, como imaginar Deus, o poder de Deus, o respeito de Deus? (CARDOSO, 1999, p. 492).



André profere essa fala diante do caixão de Nina, minutos antes de partir definitivamente da casa dos Meneses. Dirigindo-se a Deus dessa forma, ele expressa seu satanismo diante daquele trágico acontecimento responsável por consumar a destruição do mundo no qual ele fora concebido, e completa esse gesto satânico cuspindo várias vezes sobre o cadáver da mãe (CARDOSO, 1999, p. 492).
De fato, André nunca acreditou em Deus. Mesmo antes da morte de Nina, sempre que ele se refere à existência de Deus, a condiciona por um “se” (Cf. CARDOSO, 1999, p. 404 e 432). Além disso, em sua narrativa, Deus não assume a natureza do Deus cristão. Na verdade, o Deus a que ele se refere sequer possui natureza definida, como sugere o seu comentário acerca do entusiasmo que a chegada de Nina lhe despertara: “[...] cheguei mesmo a pensar em ajoelhar-me, e agradecer a Deus, qualquer que Ele fosse” (CARDOSO, 1999, p. 254).
No seu Diário de terror, Lúcio Cardoso (1996b, p. 747) descreve o novo homem como aquele que prescinde da fé e dos demais fundamentos que vigoravam no mundo condenado.
O mundo novo não exige fé, nem confiança e nem entusiasmo, e nem nenhuma das celebrações que faziam e fazem os atributos do mundo condenado; o que ele exige é uma tal soma de idéias e sentimentos violentos, o que impõe é uma ressurreição de qualidades durante tanto tempo soterradas e tidas por secundárias ou aviltantes, que se pode dizer que realmente um outro homem surge, e nele se confundem as noções do bem e do mal, não para situá-lo “além”, o que pressupõe o “outro”, mas para fazer do “mesmo”, o ser exato que ele é, o homem das medidas equilibradas e não o das medidas alteradas para mais ou para menos.
O pensamento expresso por Lúcio no fragmento acima remete-nos àquilo que a filosofia heideggeriana define como a mundanidade do homem. O novo homem cardosiano assemelha-se ao ser-no-mundo, aquele ente cuja essência constitui-se pelo seu morar na proximidade do ser, pelo seu ser-jogado no mundo (HEIDEGGER, 1973c), e não por fundamentos metafísicos.
Representante dessa mundanidade, André é aquele homem cujas bases estão na própria existência terrena, e espera resolver as questões que envolvem sua vida através de “um testemunho palpável” (CARDOSO, 1999, p. 492). Assim, por mais que ele não negue totalmente a existência de Deus, coloca-a em questão, ou seja, relativiza-a.
À medida que André se rebela contra o fundamento divino do gênero humano, ele instaura uma noção de anti-humanismo bastante similar àquela defendida por Heidegger na carta Sobre o “humanismo”, de 1946. Neste escrito, Heidegger (1973c) coloca em xeque a concepção humanística ocidental pelo fato de ela se sustentar na tradição metafísica. Segundo o filósofo, o humanismo nada mais é que um desenvolvimento da metafísica, na medida em que a metafísica caracteriza-se por reduzir tudo ao homem e por sustentá-lo, como sujeito, no centro da realidade. De acordo com Gianni Vattimo (1996), a consciência heideggeriana da crise do humanismo é, sobretudo, uma crítica à noção de subjetividade, que é a característica principal do humanismo metafísico. O sujeito é a concepção do homem como centro da realidade e do conhecimento, e sua centralidade, segundo Vattimo (1996), só é possível à medida que ele se mascara nos semblantes “imaginários” do fundamento.
No narrador André, de Crônica da casa assassinada, a noção de transcendência ganha um sentido antimetafísico, visto que é representada como a superação do homem por ele próprio. Em termos heideggerianos, transcendência significa ultrapassagem (HEIDEGGER, 1973b). Segundo Heidegger, em Sobre a essência do fundamento (1973b, p. 302), “[a] transcendência [...] refere-se àquilo que é próprio do ser-aí humano e isto não [...] como um modo de comportamento entre outros possíveis de vez em quando posto em exercício, mas como constituição fundamental deste ente, que acontece antes de qualquer comportamento”.
A existência do homem, portanto, constitui-se pela transcendência, ou seja, por esse ultrapassamento que, em Heidegger, é determinado como um caminhar em direção ao ser. Em Crônica da casa assassinada, André é aquele que existe perseguindo a possibilidade inatingida e absoluta de si mesmo, como nos indica o seguinte trecho de seu diário:



[...] que é o para sempre senão a última imagem deste mundo – não exclusivamente deste, mas de qualquer mundo que se enovele numa arquitetura de sonho e de permanência – a figuração de nossos jogos e prazeres, de nossos achaques e medos, de nossos amores e de nossas traições – força enfim que modela não esse que somos diariamente, mas o possível, o constantemente inatingido, que perseguimos como se acompanha o rastro de um amor que não se consegue, e ao absoluto, ao perfeito de que tanto carecemos (CARDOSO, 1999, p. 19-20).



Essas palavras de André estão em conformidade com o que diz Lúcio Cardoso, no Diário de terror. Com a palavra “terror”, Lúcio define a sua nova atitude como homem e como romancista, tão em conformidade com o arranjo formal de Crônica da casa assassinada e com a atitude representada por André:



Chamo terror à época em que é possível o pleno conhecimento do ser, não de suas condições psicológicas, mas de suas prerrogativas abissais e estranhas. Terror é a época do conúbio com o abismo, não porque conquistemos uma fictícia liberdade, mas porque a liberdade nos conquista, somos ela própria, voltados para o segredo que é o nosso verdadeiro clima.
O terror é uma época de ultrapassamento. É um impulso único e violento de todo o ser para regiões de intempéries e de insegurança; é uma dilatação anormal para zonas inabitadas e desumanas, onde somos o único guia, único farol, além de fronteiras que não nos seria permitido atravessar em épocas comuns, e onde encontramos finalmente a essência esquiva, ambiciosa e cheia de espanto que nos governa. (CARDOSO, 1996b, p. 744)
No fragmento acima, as palavras de Lúcio apresentam impressionante similaridade com a descrição heideggeriana acerca do destino historial do homem, que, na época contemporânea, deve encaminhar-se em direção à verdade do ser. De acordo com Heidegger (1973c), em Sobre o “humanismo”, a essência do homem constitui-se pelo seu morar na verdade do ser, sendo o ser uma instância primordial em relação ao ente propriamente humano. O ser é aquilo que permite que a essência do homem seja experimentada mais originariamente. O ser é a origem e o destino da existência humana, esse caminhar. Partindo, portanto, desse ponto de vista, acreditamos que o pensamento de Lúcio em Diário de terror, essa “dilatação anormal para zonas inabitadas e desumanas” onde finalmente ele encontra a sua própria essência, se conforma com o que diz Heidegger sobre a essência ec-sistente do homem.
Sobre o Humanismo é de uma composição muito bem estudada. Das questões propostas por Beaufret escolhe Heidegger, para tema de sua resposta, a mais fundamental, relativa ao humanismo: Comment redonner um sens au mot “Humanisme”?
A discussão de seus pressupostos abre toda uma outra dimensão do pensamento: a dimensão do Pensamento Essencial, que, re-conduzindo a vigência histórica do humanismo às suas raízes na metafísica, redimensiona a própria questão. Impõe a necessidade de questioná-la em seus fundamentos. O humanismo deixa de ser um valor indiscutível e, portanto, um trauma para o pensamento. Transforma-se na maior provocação para pensar na medida que força o esforço pelo homem na direção das vicissitudes históricas da Verdade do Ser. Redimensionar o humanismo significa então superar-lhe as raízes num pensamento que é essencial por pensar a proveniência da Essência do homem. Por não des-cobrir e sim, antes, en-cobrir essa proveniência, o humanismo, não só como designação, mas principalmente como visão e esforço, é um lucus a non lucendo.
Todo humanismo, em suas diversas modalidades – desde o humanismo romano, passando pelo humanismo cristão e renascentista até o humanismo socialista e existencialista – se funda sempre na interpretação metafísica do homem. Articulado no binômio de essência e existência, determina o ser do homem como a realização (existência) das possibilidades (essência) de animalidade e racionalidade, quer confira o primado à essência, quer faça prevalecer a existência em suas várias dimensões. Uma determinação que não surgiu e se impôs por acaso. Vigora, ao contrário, na forma de uma de-cisão do Sentido do Ser, como tal.
Em Heidegger (1973c), defende-se o humanismo que pensa a humanidade do homem desde a proximidade do ser. De acordo com o pensamento heideggeriano, não é o homem que está em jogo, mas a sua essência historial, em sua origem desde a verdade do ser. A essência do homem, portanto, mora nesse lugar mais originário que é a verdade do ser. É escutando o apelo do ser que o homem, ser de linguagem, pode devolver à palavra o valor da essência humana.
A nosso ver, em Crônica da casa assassinada, André é a personagem que vive o apelo do terror descrito por Lúcio, à medida que é aquele que salta no abismo do ser, através de seu contato com Nina; contato esse, marcado pelo amor e pela morte. André é o homem que caminha na obscuridade, nas sombras do ser, assumindo os perigos do existir. Em seu diário, predominam as cenas marcadas pela escuridão noturna e pelos espaços sombrios dos quartos da velha casa, do Pavilhão externo e da natureza. Há uma passagem em que ele diz: “Afinal avancei na obscuridade, tateando” (CARDOSO, 1999, p. 399). André é aquele que tateia, que beija o mistério, à medida que progride no seu envolvimento com Nina:



Amei. Amei como nunca, sem saber ao certo o que amava – o que possuía. Não era um interior, nem uma mulher, nem coisa alguma identificável – era uma monstruosa absorção a que me entregava, uma queda, um esfacelamento. Sobre minha cabeça sentia girar a própria força do escuro e, como se estivesse no vórtice de uma vertiginosa água, meu ser ameaçava fender-se no embate contra um poder que me fazia rodar sem descanso, sem no entanto atingir qualquer coisa que em mim permanecia imune ao frenesi dessa espantosa viagem. (CARDOSO, 1999, p. 403)



Na narrativa de André, a morte, como o amor, representa o mergulho nas águas do ser. No beijo descrito acima, André frui a morte de Nina, transpondo, na sua ânsia de completude, de totalidade, os limites de seu próprio ser. Nesse processo, ele é absorvido pelo “escuro”, ou seja, pelo mistério daquilo que a filosofia heideggeriana chama o ser. Como foi dito há pouco, o ser não é o homem, mas é o destino para o qual o homem, como ente ec-sistente, deve se encaminhar. É ousando esse caminho para o ser que o homem descobre a sua própria essência (HEIDEGGER, 1973c).
Em Crônica da casa assassinada, a morte é uma das formas de exercer o destinar-se para a verdade do ser. A nosso ver, isso não ocorre apenas em André, mas em todas as personagens que vivenciam tragicamente o drama da morte ou do amor, que, na obra cardosiana, são sinônimos. Acreditamos que o que, nesse sentido, distingue André das demais personagens do romance é o fato de que, nele, o desvendamento da verdade do ser é encarado ou conscientizado como um “pro-jeto”, qual seja, o de sua própria constituição como homem.
O pro-jeto empreendido pelo homem envolve perigos e fracassos; envolve, como nos diz André, “pequenas mortes”. Pro-jetar-se significa tornar-se homem, des-cobrir-se. Ser humano é realizar o pro-jeto em busca da própria essência. E a essência do homem, diz Heidegger (1973c), está em sua ec-sistência. Em Crônica da casa assassinada, André é uma espécie de concretização literária desse projeto existencialista, à medida que toda a narrativa do seu diário está centrada na descoberta constitutiva do homem, bem como no processo de conscientização dessa descoberta.
Nos termos da mentalidade contemporânea, descobrir-se como homem significa reconhecer a condição de abandono que constitui a existência humana nos nossos dias. Nesse sentido, André representa o homem condenado à liberdade, que, de acordo com a reflexão sartreana, está em total desamparo no mundo. É também aquele que, segundo o pensamento heideggeriano, conquista a liberdade a partir da decisão para a morte. Aliás, o próprio Sartre diz que não se pode ser homem, enquanto não se está dis-posto a morrer por alguma coisa. Através da experiência da morte de Nina, André vive a pro-jeção temporal do ser, a qual constitui a sua própria existência no mundo (Cf. CARDOSO, 1999, p. 19). Acerca de sua liberdade, ele nos diz:



O meu sentimento é o de uma extraordinária liberdade: ruíram os muros que aprisionavam meu antigo modo de ser. Como um homem adormecido durante muito tempo no fundo de um poço, acordei e agora posso contemplar face a face a luz do sol. (CARDOSO, 1999, p. 253).



Conforme o comentário de André, a liberdade consiste no permitir-se experimentar “todas as possibilidades” de ser, ou seja, consiste no alvedrio para escolher-se como homem, para construir-se através das próprias ações. Em sentido existencialista, André é o homem por excelência. É aquele que tem coragem e desprendimento para enfrentar o amor e a morte. É o homem que enfrenta o ser e o nada que a ele pertence. Em André, a angústia, que, segundo Sartre (1997), é a origem do nada, consiste no impulso para a ação.
De acordo com Sartre (1973, p. 18), o desespero do homem abandonado significa “agir sem esperança”, ou seja, consiste no fato de nos limitarmos “a contar com o que depende da nossa vontade, ou com o conjunto das probabilidades que tornam a nossa ação possível”. Como define Lúcio Cardoso (1996b, p. 743), o ser, que para nós significa tornar-se homem, é o porvir. O homem, portanto, é o que é livre para se fazer e refazer. Segundo o autor, em seu Diário completo, “[a] liberdade, a única liberdade autêntica, é a de ser homem, mas totalmente, com as nossas faces conjuntas do bem e do mal” (CARDOSO, 1970, p. 245).
Outro aspecto da liberdade de André é a mutabilidade do seu pensamento, que se mantém sempre aberto a reformulações. Na “inquietação”, no caminhar “de um lugar a outro” está a essência do conhecimento que André constrói sobre sua existência. Aqui, conhecer e pensar são análogos a viver. O nomadismo que caracteriza André é o mesmo que assinala, no Diário de terror, o pensamento de Lúcio Cardoso, para quem, “[o] homem de maior espírito não é o de uma única resposta, nem o da resposta mais constante, mas o de várias respostas ao mesmo tempo, e o mais mutável quanto à certeza delas” (CARDOSO, 1996b, p. 744).
Resta-nos acrescentar que tanto o processo de descoberta do homem por ele mesmo quanto a conscientização desse processo são realizados através da linguagem. De acordo com Heidegger (1973c), a linguagem é a casa do ser e a habitação do homem. É através da linguagem que o ser vem ao pensar.
Falar a partir da Linguagem da poesia não é indicar uma outra linguagem dentro ou fora da estrutura de língua e discurso. Pois assim operando, já de-finimos a Linguagem como um objeto dentro ou fora de outro objeto, já de-finimos o dentro e o fora juntamente com sua indicação, como uma função de um objeto para com outro objeto. Ora, de-finir como objeto ou de-finir como função entre objetos, é a objetivação própria da representação. Sem dúvida desta mecânica não podemos prescindir. Mesmo quando falamos do mistério do homem, sempre operamos com signos e funções tais que vida e vital, pessoa e pessoa, vivência e vivencial, existência e existencial, estrutura e estrutural, etc.
A linguagem opera o desvelamento das significações concretas do mundo. Não há dois planos: o do percebido e do conhecido e o do falado e do expresso. A palavra não introduz um sentido num conteúdo. É, pelo contrário, o conteúdo que se revela significante na linguagem. Forçoso é, pois, destruir a perspectiva metafísica: a linguagem não se torna significante a partir dos objetos compreendidos pelo pensamento e significados, em seguida, pelas palavras: são, antes, os objetos que adquirem a sua plena capacidade de significação a partir da linguagem falada.
O sentido do discurso nunca é construído, mas sempre descoberto. O mundo mostra-se investido de significações utilitárias e poéticas. Daqui que a linguagem seja uma leitura hermenêutica da experiência. O homem compreende sempre o mundo no interior de um pro-jeto interpretativo cuja linguagem é a única justificação. Sem dúvida, o sendo bruto existe fora do gesto falado. Mas o mundo, este horizonte inteligível que abre o acesso ao sendo, só existe na interpretação efetuada pela linguagem. Devemos, pois, corrigir a célebre fórmula de Schopenhauer: “O mundo é a minha representação”, e dizer “O mundo é a minha interpretação”
Na narrativa de André, essa vinda heideggeriana do ser à linguagem é realizada através do relato memorialístico com que esse narrador reconstitui os momentos passados ao lado de Nina. De acordo com Carelli (1988, p. 189), o diário de André é uma verdadeira “crônica complacente de sua paixão por Nina”, consistindo numa espécie de “monumento de palavras em honra dessa mulher”. Nesse sentido, destacamos o caráter poético do relato de André, conforme aquele sentido heideggeriano de poesia como abertura impactante do ser através da linguagem. Dessa abertura poética da verdade, faz parte a constituição da própria essência do homem que penetra as fendas do ser. Portanto, em André, sendo a memória a forma como o ser vem à linguagem, é também por ela que o homem chega a si mesmo.
Ademais, a linguagem memorialística, marcada pela oscilação entre luz e sombra, caracteriza-se como aquele pensamento fracassado, que, segundo Heidegger (1973c), consiste em chegar à linguagem para a qual a verdade do ser se encaminha, o que se daria através da tarefa da escrita e por meio de uma tentativa de pensar familiarizada com o silêncio. No relato de André, também essa experiência é descrita através do contato com Nina:



De todos os lados, como um rio invisível que fosse crescendo, e esbatesse suas ondas de fúria contra os limites opostos que representávamos, o sentimento do fracasso se interpunha entre nós; passo a passo fui recuando, recuando, até o fundo da parede, como se deixasse espaço para que aquele mar fervesse, e subisse até nossos peitos impotentes, e nos atordoasse com seu cheiro de sal e de sacrifício. [...] Literalmente nada mais me importava. Um vácuo fez-se em mim, tão duro como se fosse pedra. Senti-me sorvendo o ar, caminhando, existindo, como se a matéria que me constituísse houvesse repentinamente se oxidado. E nunca soubera com tanta certeza como naquele instante que, enquanto existisse, proclamaria de pé que o gênero humano é desgraçado, e que a única coisa que se concede a ele, em qualquer terreno que seja, é a porta fechada. O resto, ai de nós, é quimera, é delírio, é fraqueza. Tudo o que eu representava, como uma ilha cercada pelas encapeladas ondas daquele mar de morte, admitia que a raça era desgraçada, condenada para todo o sempre a uma clamorosa e opressiva solidão. (CARDOSO, 1999, p. 404).



Há muito de satanismo nessas palavras de André, à medida que elas indicam a sua extrema rebeldia contra tudo aquilo que, pertencendo a um plano superior, é inatingível ao ser humano. Sua sensação de impotência é provocada pela morte inexorável de Nina, que ele tentara inutilmente salvar com um ardente beijo de amor. Através desse fracasso, André chega a uma profunda consciência dos limites da condição humana. Assim, como não se pode dissociar a existência do homem de sua experiência com a linguagem, o fracasso humano nada mais é que as falhas admitidas dentro dessa experiência. A concepção contemporânea de linguagem aponta, sobretudo, para a impotência do conhecimento humano. Segundo essa concepção, o conhecimento deve se desligar de todo tipo de crença na peremptoriedade do ser, admitindo os vazios e as falhas que a linguagem comporta. Em Crônica da casa assassinada, a concepção contemporânea da linguagem permite uma importante reflexão acerca do papel da obra de arte, que, a partir do século XX, vem a ser o principal caminho para o resgate da essência do humano.



REFERÊNCIAS
CARDOSO, Lúcio. Crônica da casa assassinada. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1999.
______. Diário completo. Rio de Janeiro: José Olympio, 1970.
______. “Diário de terror”. In ______. Crônica da casa assassinada. Edição crítica de Mario Carelli. 2. ed. Madri: Allca XX/ Scipione Cultural, 1996. p. 743-749.
CARELLI, Mario. Corcel de fogo: vida e obra de Lúcio Cardoso (1912-1968). Trad. de Julio Castañon Guimarães. Rio de Janeiro: Guanabara, 1988.
FARIA, Octavio de. “Lúcio Cardoso”. In CARDOSO, Lúcio. Crônica da casa assassinada. Edição crítica de Mario Carelli (coord.). 2.ed. Madrid; Paris; México; Buenos Aires; São Paulo; Rio de Janeiro; Lima: ALLCA XX / Fondo de Cultura Económica, 1996 (Arquivos, 18). p. 659-680.
FUNDAÇÃO CASA DE RUI BARBOSA. Inventário do Arquivo Lúcio Cardoso. RANGEL, Rosângela Florido & LEITÃO, Eliane Vasconcellos, Rio de Janeiro: Centro de Literatura Brasileira, 1989.
HEIDEGGER, Martin. A origem da obra de arte. Trad. de Maria da Conceição Costa. Lisboa: Edições 70, 1992.
______. “O que é metafísica?”. In ______. Os pensadores. Lisboa: Guimarães Editores, 1973a.
______. Ser e tempo. Trad. de Márcia de Sá Cavalcante. 2 ed. Petrópolis: Vozes, 1990.
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SARTRE, Jean-Paul. “O existencialismo é um humanismo”. In ______. Os pensadores. Trad. Vergílio Ferreira. Lisboa: Editorial Presença, 1973.
______. O ser e o nada: ensaio de ontologia fenomenológica. Trad. de Paulo Perdigão. 6. ed. Petrópolis: Vozes, 1997.
VATTIMO, Gianni. O fim da modernidade: niilismo e hermenêutica na cultura pós-moderna. Trad. de Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 1996.
RESWEBER, Jean-Paul. O pensamento de Martin Heidegger. Trad. João Agostinho A. Santos. Coimbra. Livraria Almedina. 1979
Leão, Emmanuel Carneiro. Aprendendo a pensar. Vol. 1. Eº edição. Petrópolis. Editora Vozes. 2000.



Manoel Ferreira Neto
(*RIO DE JANEIRO*, 23 de outubro de 2016)


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