**ATEISMO, ABSOLUTIZAÇÃO E NIILISMO** - Manoel Ferreira


DEUS ESTÁ MORTO

O problema de Deus, como podemos analisar, desde a Filosofia Antiga, com os pré-socráticos, é perene, permeia desde épocas remotas e não cessa de movimentar nossa consciência hoje, não cessará de fazê-lo por toda eternidade. Dizia Kant que o conceito de Deus é o mais complicado de compreender; todavia, ele é inevitável para a razão especulativa humana.
Pretendemos, assim, apresentar a “morte de Deus” proclamada solenemente por Nietzsche há pouco mais de um século. “Deus está morto” .
Esta afirmação desencadeia um esboroamento de toda estrutura montada e sustentada pelo homem desde a Antigüidade. Com ela, temos um desfacelamento da metafísica tradicional erguida desde Platão, com a concepção dualista do mundo, visão esta que serviu de sustentáculo para toda a estrutura do cristianismo que, para Nietzsche, representa o platonismo para o povo.
A primeira parte de nosso estudo está dedicada, em linhas gerais, à crítica nietzscheana ao sistema moral vigorante na sociedade, bem como os delineamentos gerais das conseqüências advindas de toda essa estrutura.
Em princípio, apresentaremos a religião através do olhar clínico de Nietzsche - “Olhemo-nos nos olhos” - que, tomado, sobretudo, pelas leituras de Feuerbach, que define a religião como uma projeção humana, acaba por defini-la como estado doentio do homem, principal responsável pela sua existência.
O cristianismo necessita da doença, mais ou menos como a cultura grega necessita de uma abundância de saúde – tornar doente é a genuína intenção oculta de todo o sistema de procedimentos de salvação da Igreja .
A crítica de Nietzsche à concepção cristã revela-nos que, no cristianismo, nem a moral nem a religião estão em contato com a realidade e que, fundamentalmente, só possui em causas e feitos imaginários tais como: alma, espírito, livre-arbítrio, pecado, salvação, castigo, graça e remissão dos pecados. Ou seja, nos dizeres do filósofo, “um comércio entre seres imaginários ´Deus`, ´espíritos´, ´almas´(Nietzsche, 2000, p. 48). Para Nietzsche, o cristianismo é uma religião fictícia na qual sua moral se utiliza de uma linguagem figurada da idiossincrasia religiosa, tendo como pano de fundo uma teologia imaginária (o reino de Deus, o juízo final e a vida eterna) e ao mesmo tempo negadora da realidade. Sendo que todo esse mundo de ficções tem a sua origem no ódio contra o natural, ou seja, contra a realidade.
Para Nietzsche, o significado da morte de Jesus na cruz re-presentava de fato o término de todo o esforço completamente original para um movimento rumo à felicidade; aqui sobre a Terra e não apenas prometida, baseada na superação do pecado, na negação do abismo criado entre Deus e o homem, na vida, no ensinamento e no sentido do direito de todo evangélico. A concepção de que Deus deu o seu filho em sacrifício para remissão dos pecados da humanidade seria a resposta encontrada para justificar que nada havia terminado e que o evangelho não se acabaria assim tão facilmente. Desde então, foi introduzida pouco a pouco, como uma vertente real na tipologia do Salvador a doutrina do “juízo final”, “da última vinda”, “a doutrina da morte como sacrifício” e a absurda idéia da “ressurreição” pela qual toda a idéia de salvação se vê completamente escamoteada em favor de um estado depois da morte.
Por que nossa civilização é um prolongamento natural do cristianismo, mister sempre levar em conta o princípio hermenêutico que norteia as análises de Nietzsche, e que ele enuncia em alguns fragmentos póstumos: é preciso identificar o ideal cristão mesmo ali onde se eliminou completamente a “forma dogmática’ do cristianismo – como na música, no romantismo, na natureza de Rosseau ou no socialismo.
É antes de tudo essa separação entre os ideais cristãos e a forma dogmática da religião que permitirá a Nietzsche reconhecer o cristianismo até mesmo entre seus supostos opositores, como naquele livre pensador que repudia a Igreja, mas não o seu veneno. O “cristianismo” que entra em cena a partir de agora é constituído por um conjunto de ideais civilizadores, evangelizadores (como é o caso da literatura dostoiévskiana), um repertório de valores que se mantêm vivos, aquém ou além do dogma religioso.
Partindo da religião, propõe atacar o cristianismo que não tem semelhança alguma com as atitudes de Cristo. Na verdade, é um modo formulado pelos apóstolos, sobretudo Paulo, para vingar a morte d´Ele e expressar a sua hostilidade com a Vida. Sendo assim, nas raízes do cristianismo, pretende criticar a moral estabelecida, acusando o mesmo de subjugar o homem a uma potência desconhecida e superior, princípio causador de tudo, levando o mesmo a posicionar-se diante deste suposto senhor, como escravo, criatura pobre e medíocre. E, nesta crítica, pretende acabar com a dicotomia existente desde Platão, descartando, agora, a possibilidade ou existência de um além-mundo e, conseqüentemente, de uma vida eterna.
Ver como honesto um Paulo que tinha seu lar no principal centro do iluminismo estóico, quando ele faz de uma alucinação a prova de que o Redentor ainda vive, ou mesmo dar crédito ao relato de que teve essa alucinação, seria uma autêntica niaiserie (tolice) por parte de um psicólogo: Paulo quis os fins, portanto quis também os meios...



Foi Paulo quem introduziu o culto com sacrifícios e a salvação pela fé, quem falseou a vida e o caráter de Jesus e quem preparou o terreno para o pleno desenvolvimento do clero e da Igreja, fazendo uma espantosa amálgama de filosofia grega e judaísmo. Tudo isto era contrário ao verdadeiro espírito de Jesus.



A crítica religiosa de Nietzsche está intimamente ligada à concepção de vida e religião. Considerava a vida um valor máximo, por outro lado, tinha a religião como destruidora da vida, como uma aberração à mesma. A figura de Cristo em toda a obra dostoiévskiana é o símbolo, arquétipo, imagem, signo, significante e significado, da construção da vida, a busca da espiritualidade, a Vida, e Dostoiévski tinha Cristo como o Amor, Compaixão, Solidariedade Supremos, a redenção e ressurreição é quando o homem vive na carne e nos ossos, na alma e no espírito a mensagem de Cristo. Nietzsche desenvolve com crueldade a crítica religiosa. Em dizendo que a religião é tratada com crueldade, segundo Nietzsche, significa que a religião jamais conteve uma verdade. A religião não deve vestir-se de ciência, e a ciência não deve usar de linguagem religiosa onde não mais puder argumentar.



A vida mesma é, para mim, instinto de crescimento, de duração, de acumulação de forças, de poder, onde falta a vontade de poder, há declínio. Meu argumento é que a todos os supremos valores da humanidade falta essa vontade – que valores de declínio, valores niilistas preponderam sob os nomes mais sagrados .



Conforme Jung, o significado ou o objetivo do instinto não é inequívoco, porque o instinto pode ocultar um sentido da direção diferente do biológico, que só se manifesta à medida que se processa o desenvolvimento. Na esfera psíquica, a vontade influi na função, em virtude de ela própria ser uma forma de energia que pode dominar ou pelo menos influenciar outra forma. Nesta esfera, que Jung define como psíquica, a vontade é motivada pelos instintos – não, porém, de modo absoluto, pois do contrário nem seria vontade, que, por definição, deve ter certa liberdade de escolha.



A vontade implica uma certa quantidade de energia que fica livremente à disposição da consciência .



Segundo Nietzsche, a religião não tange uma necessidade básica no homem, mas é fruto da própria causalidade humana. Surge em nós decorrente das diferentes tentativas em busca de explicações para as diversas questões que tocam a existência. Aqui, não nos remetemos tão-só à questão existencial do homem enquanto tal, mas incluímos todo o mundo fenomênico.
Essa idéia de religiosidade que o próprio Marx definia como sendo um “soluço da criatura oprimida, coração de mundo sem coração, o espírito de uma situação carente de espírito. O ópio do povo” , em Nietzsche, ganha um estatuto não muito distinto. A religião surge no homem à medida que transmite sentimentos inexplicáveis como fruto de uma potencialidade extra-humana, pois “os estados da alma que lhe pareciam estranhos, arrebatadores, apaixonantes, considerava-os obsessões, encantamentos provocados pelo poder de alguém” , resultante da percepção de uma potência estranha que se manifestava nas diversas realizações da vida humana, tida como força causadora.
Desta forma, atribuímos os estados de alma existentes em nós a esta suposta força que se encontra num além-mundo, num supra-sensível, chegando ser ela responsável por estas manifestações arrebatadoras; criamos uma divindade sobrenatural que regula toda a atividade aqui na terra, personificando-a.
Este sentimento de potência quando envolve o homem, deixando-o dependente e subjugando-o, leva-o a desacreditar e conformar que tais sentimentos não são causados por ele, mas por “uma personalidade mais forte, uma divindade que o substitui” , reguladora de toda a sua atividade no mundo.
É enraizado nestes pressupostos que começa a despertar no humano a gênesis religiosa; “nos extremos sentimentos de potências que surpreendem o homem por seu caráter estranho...” .
Mas, afinal, o que é religião?



[...] é um caso de alteração da personalidade, espécie de sentimento de terror e de medo diante de si mesmo... Mas, ao mesmo tempo, extraordinária sensação de felicidade e superioridade...



A religião percebe a presença de Deus nos diversos acontecimentos; inicialmente como potência criadora, também como causa intermediária entre o homem e os resultados daquilo que ele almeja atingir, daquilo que busca realizar, para, enfim, tornar-se o para quê fora vocacionado desde toda a eternidade. É um Deus que interfere na natureza. Agora, estamos mergulhados num mundo onde o homem independe da causa, o homem não cria nada, Deus é o autor de tudo; simplesmente sofremos a ação de uma potência causadora.
A partir deste espírito, o homem foi se definindo em relação a Deus como criatura, rebaixando todas as suas potencialidades, tornando-se insignificante frente a esta nova idéia regulativa. Definiu tudo aquilo que é forte e surpreendente como sendo atributos de Deus; em contrapartida, o homem é tudo aquilo de fraco e desprezível.



A religião tornou o homem criatura insignificante; rebaixando-o às mais baixas categorias existentes, substituindo-o por um sobrenatural que é bom e verdadeiro e que só poderemos chegar até ele pelo que chamamos de graça .



Pensemos nos conquistadores da Renascença abandonando a cristandade em busca de um novo mundo; mas também, simbolicamente, no belíssimo frontispício do Novum organum, de Francis Bacon: nos limites do mundo então conhecido, além das colunas de Hércules, algumas caravelas se lançam a um mar encapelado, ao encontro de terras ainda ignoradas. Esta imagem, que serviu em todo sentido, Nietzsche conseguiu renová-la, ao impor-nos a absoluta prioridade de sua navegação além das colunas de Hércules da moral, num mar que não é mais o do amor-próprio, mas da vontade de poder em pérpetuo devir.
O Deus cristão é apenas uma de suas máscaras e a “morte de Deus” deve ser compreendendida, antes de tudo, como o fim do “verdadeiro mundo” instituído por Platão. Em vários de seus textos, Nietzsche define sua filosofia a partir da idéia de uma “inversão do platonismo”. Desde então, é daqui que se precisa partir para compreender a relação entre a morte de Deus e a desvalorização dos valores.
Que é isto – “inverter” o platonismo? Não significa colocar o platonismo “sobre os seus pés”, como um famoso ortopedista alemão pensou em fazer com a dialética hegeliana. Sendo apenas assim, o ganho seria bem magro: enquanto Platão valorizava o supra-sensível e desvalorizava o mundo sensível, Nietzsche faria apenas uma mudança de sinal, mantendo uma hierarquia que já é platônica.



A oposição – diz Nietzsche - entre o mundo aparência e o mundo-verdade se reduz à oposição entre o mundo e o nada .



Nesse sentido, “inverter” o platonismo não é inverter a hierarquia platônica e declarar amor ao mundo sensível. Mas, então, inverter o platonismo seria recusar o dualismo ontológico? Se decapitamos o “verdadeiro mundo”, sobre o mundo-aparência, e talvez permaneçamos platônicos desgostosos, por não termos mais o mundo ideal.
Augusto Comte, depois de uma célebre refutação da psicologia do espiritualismo eclético, acrescenta enfim às seis ciências fundamentais uma sétima ciência do indivíduo humano, que ele denomina significativamente de “moral”. Desenredemos aqui a extraordinária complexidade das expressões que cercam uma psicologia que se pretende radicalmente nova: o título de “rainha das ciências”, que lhe foi atribuído, pertence tradicionalmente à filosofia; as ciências são suas servas como a filosofia medieval pretendia ser a serva da teologia. Mas ela não implica nenhum “sacrifício” da inteligência à fé, nenhum rebaixamento pascaliano da razão diante do “coração”.



A moral de senhores nasce de uma consideração de si mesmo, de um sim que o senhor dirige a si mesmo. Seu modo de valoração “age e cresce espontaneamente, busca seu oposto apenas para dizer sim a si mesmo ainda com maior júbilo e gratidão – seu conceito negativo, o “baixo”, o “comum”, “ruim”, é apenas uma imagem de contraste, pálida e posterior, em relação ao conceito básico positivo, inteiramente perpassado de vida e paixão, “nós, os nobres, nós, os bons, os belos, os felizes” .



Nesse nível de análise nietzscheana, a oposição entre senhor e escravo não se resume a uma diferença de valores, mas se traduz também por dois momentos distintos de reconhecimento: o senhor reconhece a si mesmo, enquanto o escravo, para reconhecer-se, precisa passar antes pela mediação de seu oposto, o senhor.
A relação que Nietzsche estabelece entre senhor e escravo nunca se confundirá com sua homônima hegeliana, ali na Fenomenologia do espírito. O senhor hegeliano traz as marcas do escravo de Nietzsche, enquanto ele é uma consciência que está em relação consigo mesmo apenas pela mediação de seu outro. A dialética do senhor e do escravo consistira essencialmente em mostrar que o senhor se revela em sua verdade como o escravo do escravo, o escravo como o senhor do senhor. Como nota Hyppolyte, através disso a desigualdade presente na forma unilateral do reconhecimento é ultrapassada, e a igualdade é restabelecida. Se na dialética, como sempre, a oposição se revela aparente, o senhor e o escravo de Nietzsche permanecem opostos tanto no modo de reconhecimento quanto nos valores morais.
Como nota Hannah Arendt, o livre-arbítrio era uma faculdade virtualmente desconhecida para a Antiguidade clássica e foi somente com o cristianismo, com Agostinho, que a liberdade desprendeu-se de seu domínio original, a vida política, para transformar-se em um fenômeno da vontade .
Nietzsche não nutria nenhuma simpatia pelo “livre-arbítrio e o apresentava como um artifício, inventado pelos teólogos, para tornar a humanidade “responsável” pelos seus atos. O sacerdote busca responsabilidades para poder castigar e julgar, a teoria da vontade livre foi inventada tendo em vista o castigo, por uma vontade de encontrar culpados. Para que os homens pudessem ser culpáveis, era preciso imaginar que toda ação é querida, que a origem de toda ação se encontra na consciência, no livre-arbítrio.
Seja qual for a lucidez terrível de um La Rochefoucauld ou de um Pascal, ela permanece tributária dos valores morais e religiosos, e Nietzsche evoca “a fé de pascal que se assemelha de modo terrível a um contínuo suicídio da razão” . Convém notar o protesto de Nietzsche antes de tachar, como se fez muitas vezes, seu pensamento de irracionalismo!
O homem ainda não se deu conta de que possui um sistema neurológico, aliás, poucos detêm tal conhecimento. Nietzsche não admite no homem a existência de uma alma, mas tão somente um sistema nervoso que integra todo o aspecto fisiológico.
Este mesmo homem acredita que os maus estados da alma, como doença, enfraquecimento, pobreza são decorrentes de hesitação, pecados, autocríticas. Para que o sofrimento oculto, não descoberto, não testemunhado, pudesse ser abolido do mundo e honestamente negado, o homem se viu então praticamente obrigado a inventar deuses e seres intermediários para todos os céus e abismos, algo, em suma, que, também, vagueia no oculto, que, também, vê no escuro, e que não dispensa facilmente um espetáculo interessante de dor.
É do procedimento contrário que se origina a moral de escravo, que nasce de uma consideração do outro, de um não dirigido ao outro.
Enquanto toda moral nobre nasce de um triunfante Sim a si mesmo, já de início a moral escrava diz Não a um ´fora´, a um ´outro´, um ´não eu´- e este Não é seu ato criador. Esta inversão do olhar que estabelece valores – este necessário dirigir-se para fora, ao invés de voltar-se para si – é algo próprio do ressentimento: a moral escrava sempre requer, para nascer, um mundo oposto exterior, falando fisiologicamente, requer estímulos exteriores para poder agir em absoluto – sua ação é no fundo reação.
Todavia, nem sempre permanecemos em um dado estado por toda a vida, após a tempestade vem sempre a bonança e, após muito sofrimento e esgotamento, o homem se reergue, como uma fênix , e pergunta a/em si mesmo: “como é possível que eu seja tão livre, tão libertado? É um milagre. Só Deus podia fazê-lo por mim” .
Colocamos o nosso corpo em estado doentio e atribuímos tal aparato aos próprios erros cometidos e, quando superamos esta enfermidade, apontamos Deus como força interventora que agiu de maneira a libertar-nos, perdoar-nos. Então, o homem se redime diante desta potência estranha e passa a viver não por si, mas em conformidade com ela. A humanidade viveu, até então, de práticas puramente psicológicas e religiosas, todavia “não se cura um doente com preces e conjurações de maus espíritos” , eles não inspiram confiança alguma.
Não se curar um doente com preces e conjurações de maus espíritos é ironia sem precedentes – e Nietzsche, quando queria, sabia ser irônico -, mas procurar servir-se da doença, como de mais um meio para agarrar a vida, aí é sarcasmo dos mais geniais possíveis. É de se conservar sério, caindo na gargalhada.



Se é normal a condição doentia do homem – e não há como contestar essa normalidade -, tanto mais deveriam ser reverenciados os casos raros de pujança da alma e do corpo, os acasos felizes do homem, tanto mais deveriam ser os bem logrados protegidos do ar ruim, do ar de doentes. Isso é feito?... Os doentes são o maior perigo para os sãos; não é dos mais fortes que vem o infortúnio dos fortes, e sim dos mais fracos .



A inveja, por exemplo... Ninguém irá sentir inveja de alguém vencido, fracassado, frustrado, traumatizado, inútil; sente do vencedor, do realizado, do consciente e lúcido, do útil. O invejoso não sente inveja do invejoso, eles são absolutamente iguais? Cremos só haver um modo de um vencido, fracassado, traumatizado, inútil, sentir inveja de outro nas mesmas circunstâncias: quando o fracasso de um for mais pujante, total. O próprio Nietzsche diz que não se deve desejar filhos para um invejoso. Ele sempre terá inveja do filho por não mais poder ser criança. Seguindo esta linha de raciocínio, a criança também terá inveja, fruto da influência advinda da convivência, do pai por não poder ser adulto, e adulto, terá inveja do pai por ele ser velho, e velho terá ainda inveja dele por já haver morrido. Seria o caso de o invejoso correr? De qualquer forma, os que lhe desejam estarão atrás dele, pois que corre à frente, assim são os “animais de rebanho”.
Nessa expressão “animal de rebanho” Nietzsche visa atacar o igualitarismo, o elogio à supressão das particularidades e à perfeita absorção do indivíduo naquele “ser genérico” que povoa o imaginário socialista.
O enfraquecimento e a supressão do individuo está entre as últimas “ressonâncias” do cristianismo na moral. Esta “correnteza moral básica” de nossa época é expressamente censurada por Nietzsche. Exigir que o Ego se renegue? Desde as Considerações extemporâneas, ele protestava contra o culto democrático da espécie. E pior que o culto da espécie, a ladainha secular contra o egoísmo, em benefício dos instintos gregários do homem, terminou por fazer mal a esse sentimento, principalmente por tê-lo despojado de sua boa consciência, ordenando-lhe que buscasse, em si mesmo, a verdadeira fonte de todos os valores. Para Nietzsche, o egoísmo é parte integrante da alma aristocrática, que o aceita sem problemas e acha natural precisar que outros lhe sejam submetidos e se sacrifiquem por ela.
Tais práticas simplesmente modificavam os sintomas, pois se considerava restabelecido aquele que admitia a cruz de Cristo e propunha ser bom a partir daquele momento, arrependendo-se das faltas passadas.
O que mais o cristianismo ensinou à modernidade? Nada mais, nada menos que a ´igualdade das almas´ ante Deus. Nela, encontramos o protótipo de todas as teorias da ´igualdade de direitos´; primeiro se ensinou à humanidade o princípio de igualdade de uma maneira religiosa, depois se construiu uma moral sobre essa idéia. Desde então, não é surpreendente se, sob a influência do cristianismo, as pessoas tenham terminado por levar a sério essa idéia, querendo torná-la efetiva através das vertentes do “pessimismo por indignação”.
Nietzsche sempre insistirá nessa tese: a idéia de igualdade entre os homens, não tenho fundamento natural algum, é apenas “interpretação” metafísica, que remonta ao cristianismo e tem neste a sua única garantia. Por isso, a “Declaração dos Direitos do Homem”, ao proclamar a liberdade e a igualdade, repousa inteiramente na idéia cristã de que todos os homens, sendo criaturas de Deus, nasceram iguais e não têm privilégios uns sobre os outros. É por esse caminho que a Revolução Francesa prolonga o cristianismo: agora a cidade de Deus sobre a terra torna-se contrato social, o cristianismo torna-se humanismo, a criatura de Deus torna-se homem natural, a liberdade devida a cada cristão torna-se liberdade cívica no Estado.
Nietzsche considerava o arrependimento como espécie de covardia para com o próprio ato, como que abandono de si mesmo. Jamais conseguiremos anular uma ação cometida; cometida, cometida está; mesmo que seja perdoado, jamais se desvanecerá. Não há potência que desfaça a culpa, aliás, não existe culpa. As ações não são distintas umas das outras, possuem o mesmo valor.
Precipitam-nos, às vezes, perturbações intelectuais, tidas como espécie de hipnotização; todavia, é preciso combatê-las, pois dizia Nietzsche:



[...] um simples ato, seja ele qual for, colocado em paralelo com tudo o que se tem feito, é igual a zero, e pode ser deduzido sem que a conta geral esteja errada .



Todas as nossas ações são acompanhadas de conseqüências boas ou más que a sociedade, fazendo um juízo, determina-as como certas ou erradas atribuindo uma série de perturbações cerebrais, causando esse complexo de culpa.



O advento do Deus cristão, o deus máximo até agora alcançado, trouxe também ao mundo o máximo de sentimento de culpa. Supondo que tenhamos embarcado na direção contrária, com uma certa probabilidade se poderia deduzir, considerando o irresistível declínio da fé no Deus cristão, que já agora se verifica um considerável declínio da consciência de culpa no homem; não devemos inclusive rejeitar a perspectiva de que a vitória total e definitiva do ateísmo possa livrar a humanidade desse sentimento de estar em dívida com seu começo, sua causa prima [causa primeira] .



A Igreja acredita que o mau ato praticado pode ser resgatado e o perdão pode anular a pena. Todavia, isso não passa de mera superstição, pois o que já foi feito é irrevogável, já está feito.



Uma ação extrai suas conseqüências do homem e fora do homem, pouco importa que passe por punida, expiada, perdoada, anulada, ou ainda que a Igreja tenha promovido o culpado a santo .
.
A partir desse preceito, Nietzsche afirma que a Igreja se encontrou mergulhada numa ilusão; fixa em coisas inexistentes, em sinais exteriores, divindades eternas, efeitos improduzíveis, que, na realidade, não passam de idéias fictícias que nos conduzem ao erro.
Coloca o cristianismo como uma das principais fontes que levam o homem a renunciar sua condição de senhor, tornando-se enfraquecido, inofensivo, abatido na humanidade, digno de dó, pena, comiseração. Este cristianismo eleva o sacerdote à classe mais digna entre os homens, um Deus humanizado, este ser que detém o conhecimento do verdadeiro, o escolhido para guiar o rebanho de homens.



O sacerdote ascético é a encarnação do desejo de ser outro, de ser-estar em outro lugar, é o mais alto grau desse desejo, sua verdadeira febre e paixão: mais precisamente o poder do seu desejo é o grilhão que o prende aqui; precisamente por isso ele se torna o instrumento que deve trabalhar para a criação de condições mais propícias para o ser-aqui e o ser-homem – precisamente com este poder ele mantém apegado à vida todo o rebanho de malogrados, desgraçados, frustrados, deformados, sofredores de toda espécie, ao colocar-se instintivamente à sua frente como pastor .



Manoel Ferreira Neto
(*RIO DE JANEIRO*, 28 de novembro de 2016)


Comentários