**DOSTOIÉVSKI - O ESCRITOR DA ALMA HUMANA** - Manoel Ferreira


De-monstrar toda a importância humana-existencial e das idéias de Fyodor Mikhailovitch Dostoïévski para a nossa vida interior, nossos desejos, vontades, liberdade, fé, esperança, amor, solidariedade, compaixão, é tarefa árdua e temerária, esforço sobrenatural e perigoso. Além disso, são inúmeras as perspectivas e prismas sobre os quais essa de-monstração pode ser efetuada, por isso ser obra-prima eivada de todos os valores cont-ingentes e trans-cendentais; a obra lega-nos variedade de recursos, métodos, ângulos de análises e interpretações; faz-se mister escolher quais são os fundamentais, isto é, os que iluminem a profundidade que na vida e obra habita, revelando trilhas e caminhos de espiritualização, evangelização e cristianização.
Não havendo criatividade – “criatividade” aqui significando o ato de tecer as situações e circunstâncias vivenciadas e os desejos, vontades de trans-cendência, trans-formação, fundamentados na Arte, na literatura, na busca da espiritualidade - para abordar tudo isso em sua obra e vida, isto é, buscarmos a totalidade, não somos capazes de re-colher e a-colher as mensagens que nelas habitam, o mergulho jamais será tão profundo como realmente merece, os frutos terão sido comidos apenas com os olhos, cumpre saboreá-los.
Perguntamos, então, o que é “criar-se” no universo dostoievskiano, tendo uma fresta por onde olharmos é a intenção dessa pergunta. “Criar-se” para Dostoiévski significa matar o homem velho, prisioneiro das formas estéticas, psicológicas e espirituais que estreitam seu horizonte de homem e de escritor.
Dostoiévski e sua obra são exemplares, não no sentido em que uma obra e uma existência sem falhas o seriam, mas em um sentido exatamente oposto. Vendo este artista viver e escrever, aprendemos, talvez, que a paz da alma é a mais árdua de todas as conquistas e que o gênio não é fenômeno natural.
A envergadura e a elevação de sua individualidade, personalidade, caráter e genialidade escapam a qualquer processo atual de apreciação, análise e interpretação, de busca de saciarmos nossa sede e fome de conhecimento, redenção, felicidade, diante da obra e autor somos sempre pobres e miseráveis, humilhados e ofendidos – resta-nos contemplá-la , fundando-nos na KOINONIA: DESEJO E BUSCA DA CONSCIÊNCIA-ESTÉTICA-ETICA, tema deste ensaio que ora intencionamos fundamentar, buscando realizar a experiência de fundir biografia, crítica literária-filosófica-teológica e história sócio-cultural.
Reconhecer-lhe a singularidade não é o suficiente. Faz-se mister encontrar as diferenças específicas de cada obra, signos de uma busca que atinge ou não um objetivo. Em Dostoiévski a busca do absoluto não é vã; iniciada na angústia, na dúvida e na mentira, termina na certeza e na alegria. Não é através de uma essência imóvel que se define o escritor, mas por esse itinerário exaltante que talvez seja a maior de suas obras-primas. Para encontrar suas etapas, é preciso opor as obras particulares umas às outras e destacar as “visões” sucessivas de Dostoiévski.
Tarefa árdua porque a exigência de comunhão entre o homem e a obra, na sua especificidade literária, social, filosófica e teológica, sempre resultando em mal-entendidos mais ou menos felizes, é de fundamental importância para a compreensão e entendimento do universo e horizonte de suas idéias e pensamentos que contribuíram e contribuem para a abertura de outros tempos e esperanças, utopias e sonhos da humanidade e dos homens. De primordial importância o conhecimento das idéias filosóficas e sociológicas que habitam a obra desse genial russo, bem como a compreensão dos autores que influenciaram a sua obra.
A exigência da “totalidade” é caminho de sinuosidades que necessita de seriedade e arte na sua elaboração e abordagem, pesquisa e conhecimento para a estruturação das situações e circunstâncias do homem e artista, suas experiências e vivências ao longo de sua existência, a busca da verdade, nada mais que a verdade: mas é a verdade sagrada.
O que, todavia, fica da leitura atenta de tanta coisa de Dostoïévski e de tanta que se escreveu a seu respeito, é que foi, quem sabe?, a dureza da alma do pai que o marcou. Dureza boa, firme, de diamante, que vinha de longe, de que o pai não tinha culpa, pois ninguém se endurece por si, mas é temperado pela vida – ficam, contudo, o desejo e vontade, determinação e cor-agem de superação, de transcendência, de mudança em Dostoiévski; a dureza de seu coração ocasionou-lhe o assassinato, em 1839, pelos seus camponeses.
Hospital, cemitério, furna, pátio de milagres, serão comburido de secas, com o gado estorricando e a sede imensa, campos de concentração com privações inomináveis, isto seria nada sem a malvadez do homem, e esta malvadez não é só o fruto exterior do quotidiano, mas lhe habita o interior, habita-lhe o espírito.
Criança é planta que só necessita de amor, carinho, ternura – numa metáfora reveladora: necessita das águas da fraternidade e eternidade, da compaixão e solidariedade, da fé e da esperança. Ela encontrará na devastação, na sombra, no horror, na carnificina, uma nesga do céu, uma flor, um caco de vidro que brilha, um diamante que risca o éter, um bichinho de asas coloridas, e se a alma de um Dostoïévski não se libertou na sua sombra, e não cresceu em toda a plenitude, é que ela foi varrida pelos maus ventos das tormentas humanas.
Sério erro ler livros da Literatura Russa, Francesa, Alemã, e de outros países, com o espírito leve de quem busca apenas distrair o pensamento das preocupações e trabalhos de todo o dia, dores e sofrimentos da alma – livros que se encontram neste ângulo de “distração” para os leitores estão intimamente ligados aos interesses e ideologias do mercado editorial e imprensa, não é literatura.



Numa época em que os valores éticos e morais sofreram transformações, vivemos num vazio ininteligível, indecisos e frágeis diante da realidade, precisamos ainda mais das palavras, de escritores sensíveis às dores e sofrimentos, medos e angústias, com as suas palavras elevar-nos, mostrar-nos haver esperança, ela se solidifica ao longo de nossas atitudes e ações. Ainda é tempo de modificar a nossa vida, tornarmos seres humanos e homens, vivermos a nossa verdadeira vocação, a felicidade .



Os romances de Dostoïévski são verdadeiros depoimentos do estado de espírito de uma nação que, por muitos séculos, vive tiranizada por toda sorte de fatores: políticos, sociais, econômicos, morais, religiosos, etc. Por isso mesmo, há alguma coisa de simbólico na vida das grandes personagens com que o imortal romancista russo entretém o enredo e maneja os cenários.
Dostoievski se vê por toda parte. Os dramas, traumas, conflitos, dores, sofrimentos, distúrbios psíquicos retornam-lhe a imagem; mesmo como outros, se distingue e, ao mesmo tempo, revela seu mais profundo segredo. O tema inquietante do duplo, da imagem, do sósia, do assassino, do canalha, dos marginalizados, idiotas e imbecis, assassinos e suicidas, seres angelicais e demoníacos, tudo isso é encontrado em suas obras. Cada uma delas tem a estranha propriedade de ser e refletir a si mesma. Dostoievski faz surgir uma multidão fervilhante e volumosa que nos intriga, nos transporta, e se modifica em Dostoievski sob o olhar de Dostoievski.
A partir de O Espírito Subterrâneo, Dostoiévski já não se contenta em “repetir suas experiências” e em justificar-se ou explicar-se a seus próprios olhos, voltando sempre ao mesmo ponto de vista sobre os homens e sobre si mesmo. Ele exorciza, um a um, seus demônios, encarnando-os em sua obra romanesca. Todo o livro marca então nova conversão, e esta impõe nova perspectiva sobre os problemas de sempre.
Consideramos Dostoïévski o maior romancista de todos os tempos. Por quê? As razões do amor só o amor pode explicar, parodiando Pascal. Gostamos ou não gostamos de alguém, de algo. Desejamos mais ou desejamos menos. Esperamos mais ou esperamos menos. Tudo é mistério, e o mais excitante, esplendoroso, é a busca que dele, de sua vasta e profunda obra, se revela, e desejamos torná-la carne, a imagem e o símbolo das realizações que se manifestam no tempo.
Leitor algum será o mesmo, após ler qualquer um de seus romances, contos, novelas, mesmo o Diário de um escritor; apesar de conservar estilo e linguagem, renova-se a cada situação e circunstância, vivências e expressões, é onde o escritor se revela mais íntimo.
Tem Dostoievski o dom e o talento de mexer na alma humana, abri-la através de sua “pena de dois gumes”, eivada de sonhos e utopias espirituais; e o leitor, mesmo não sentindo conscientemente isso – tem ele o dom de fazer despertar a nossa sensibilidade, envelada pelos problemas, dores, conflitos, o encontro dela e isto torna-se conflituoso, é necessário aderi-las, comungá-las e isso só é possível a partir da fé, da esperança verdadeiras, o desejo da espiritualidade -, começa a sua longa jornada alma adentro, claro tomado de relutância, angústias e medos, sofrimentos e dores, pois nada sabe de si, não tem qualquer garantia do que irá encontrar pela frente.
Se nos debruçamos sobre as razões dessa inclinação, é-se possível explicá-las pela inteligência – acreditando que, sentindo pela inteligência e pelo espírito, a comunhão de ambos, aquela nos con-duz ao campo aonde serena e meditativamente vamos saciando, aos poucos, gole a gole, ao longo do tempo, situações e circunstâncias, a nossa sede de sermos quem somos, descobrindo outros horizontes e outros crepúsculos, o sonho nos habitando de modo lúcido e responsável, despertando outros e outros sonhos que nos habitam -, é-se possível revelar as preferências e os amores, os mistérios são pedras angulares do conhecimento. Para nós, os motivos claros dessa obscura e inexplicável preferência pessoal é que todo romance é vida revivida.
Quanto mais completa a vida e mais capaz um gênio humano de revivê-la, de recriá-la, e nestas revivências e recriações des-cobrir o que nos habita a alma e o espírito de desejo e vontade de liberdade e redenção, melhor será o fruto desse encontro providencial, mais delicioso será o gosto, o prazer milagroso, a satisfação divina. E quanto mais pudermos nós seguir as suas trilhas, mergulhando em nós mesmos, desejando o encontro da liberdade e redenção, melhor será a real-ização de nossa Vida.
Diz-nos Jean Genet, Diário de um ladrão, acerca da realização total:



É preciso continuar os atos até a sua realização total. Qualquer que seja o seu ponto de partida, o fim será belo. É pelo fato de não estar acabada que uma ação é infame .



O ato é belo se ele provoca, e em nossa garganta o faz descobrir, o canto. [...] Aplicada aos homens, a palavra beleza me indica a qualidade harmoniosa de um rosto e de um corpo a que se acrescenta às vezes a graça viril. A beleza então se acompanha de movimentos magníficos, dominadores, soberanos .



Quantas ações não terminamos em nossa vida por inúmeras razões, sentindo-nos infames, fracos, fracassados, causando-nos angústias e medos de não nos realizarmos, de nossa vida ter sido inútil – nada é mais deprimente e angustiante do que descobrir que a vida vivida fora em absoluto inútil, imprestável. Uma das razões primordiais dessas ações não terminadas são a falta de conhecimento e autoconhecimento, isto na modernidade, melhor dizendo, na atualidade, tornou-se urgente, visto a nossa alienação.
Genet nos diz acerca do ponto de partida, de onde vamos começar a longa jornada do conhecimento e autoconhecimento, o fim será belo, o que fizemos de nós nesta jornada realiza-nos, faz-nos sentir “criadores” de nós mesmos, de nossos sonhos e esperanças, estabelece a nossa essência a partir do que construímos .
A obra desse russo imortal, Dostoievski, foi sempre, sem a mínima preocupação apologética ou edificante, a expressão romanesca de um vitalismo do Absoluto, tanto na ordem natural como na transcendente, na dimensão ética quanto na estética, moral e espiritual. Comungou sempre os extremos em sua criação estética.
Dostoïévski é múltiplo. Ele deveria ser trezentos e sessenta, como esclareceu de si mesmo o nosso Mário de Andrade. Longo, longo seria o seu caminho até chegar a um. Trezentos e sessenta era também a sua obra, num outro sentido. Além do problema de Deus, tratava de psicologia criminal e de influência do ambiente.
Da multiplicidade de aspectos encontráveis na mesma obra do grande russo, dizia Pierre Pascal: “No melhor Dostoievski sempre os planos se superpõem: a psicologia ou a psicopatologia embaixo e o ontológico por cima” ( Os caminhos de Dostoievski, Coleção Universidade, pág. 19).
Nossa trilha, estando a de-monstrar a obra e vida de Dostoviéski, inicia-se nessa dimensão, “ontológico”, em primeira instância, buscando aprofundá-la a partir da vida e obra do romancista. A pedra angular de toda essa de-monstração é a vivência, a experiência, o homem Dostoievski, buscando, obviamente, a transformação, mudança, a superação através da liberdade e redenção, a totalidade.
Andar na trilha da comunhão, Koinonia, do desejo e busca da consciência-estética-ética, são experiências e vivências de desejo de transcendência, comungarmo-nos com o espírito e sermos quem somos.
Os caminhos de Dostoïévski levam-nos ao genuíno pomo do espírito e da espiritualidade.
Não foi nenhum de seus personagens, mas todos eles foram ele próprio. No extremo oposto a certa concepção moderna do romance, como negação da personagem, foi Dostoïévski, antes e acima de tudo, um procriador de criaturas mentais, monstruosas ou angélicas. Essa capacidade de se desdobrar, de sair de si, de fazer concorrência ao registro civil, como Balzac, é que o levou a ser um concorrente de Deus, no plano da criatividade romanesca.
Dostoievski narra sua vida, miséria, glória, seus amores, faz história de suas idéias, de suas dúvidas, de suas crenças, de seus comportamentos e atitudes, podemos acreditar, e com veemência, que ele tem, como Montaigne, o projeto ingênuo e simples de se representar. Sua autobiografia não é uma autobiografia, ela é mais que aparência: ela é sagrada pela fé e pela esperança que ensinou Jesus Cristo aos homens. Suas histórias não são histórias: são lendas, fábulas, paródias, mitos, ritos que nos apaixonam e fascinam, que nos despertam para a busca do Paraíso Perdido, que, obviamente, só se realiza ao longo do tempo, isto é, “para frente”, mas que cremos que ele expõe fatos e, subitamente, percebe que ele descreve a humanidade sofredora, espoliada, rechaçada em toda a história.
Sartre diz de Jean Genet, mas que poderia ser dito de Dostoievski: “[...] ele fala de sua vida como um evangelista, um testemunho maravilhado... Se, no entanto, você souber ver, na articulação, a fina linha que separa o mito envolvente do mito envolvido (negrito nosso), descobrirá a verdade, que é terrível” . Quem sabe seja esta a razão por que as pessoas têm relutâncias variadas em ler a obra dele, descobrirá o terrível da verdade, as dores e sofrimentos que habitam a alma e o espírito, e, se deseja realmente superá-los, é preciso de um mergulho profundo?!
Palavras encomiásticas, mas ao longo da leitura das obras e da vida de Dostoïévski, descobrimos não estarmos nada enganados com ele, ele nos dá as mãos e nos chama para um mergulho profundo em nossas almas em busca de nós mesmos, de nossa autenticidade e responsabilidade com a humanidade.



Manoel Ferreira Neto
(*RIO DE JANEIRO*, 28 de novembro de 2016)


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