**SEMANA //Blog **BO-TEKO DE POESIAS** - 18-24 DE NOVEMBRO DE 2016** - Manoel Ferreira


FLÂNEUR: A PROPOSITO DE “O HOMEM DA MULTIDÃO”, DE EDGAR ALLAN POE

Na Inglaterra, berço da Revolução Industrial, aconteceram profundas transformações na vida econômica, social e política a partir da segunda metade do século XVIII, que, ao lado de inegáveis benefícios (principalmente para a burguesia ascendente), trouxeram problemas sociais gravíssimos, aos quais os escritores desse período não ficarão indiferentes. Numa época em que a filosofia, letras e artes se guiavam pela Razão – sublinhe-se e ressalte-se - alguns pensadores viam as mazelas dessa nova ordem como resultados de uma visão de mundo cerebral da vida e do próprio ser humano. Isto é muito visível em Blake quando condena a incipiente indústria do século XVIII como “dark satanic mills”, tingindo as cidades inglesas com o cinza de sua fuligem.
A Londres vista por Blake, com suas ruas comoditizadas pela presença do primeiro avanço do capitalismo, onde perambulam, cobertos de cinzas e famintos, os limpadores de chaminé, é um esboço daquela Londres metrópole, super-povoada e injusta, descrita, com certa repugnância, por Friederich Engels, devido à condição de seus habitantes. “Uma cidade como Londres, onde se pode caminhar horas a fio sem se chegar sequer ao início de um fim” impunha aos seus 2,5 milhões de habitantes, segundo ele, para erigir-se em principal capital comercial e industrial, o sacrifício da “melhor parte de sua humanidade” (Engels 1985: 68).
Em The condition of the working class in England, Engels ressalta a indiferença entre todos. A única convenção entre as pessoas na cidade era o acordo tácito segundo o qual cada um mantinha a sua direita na calçada, a fim de que as duas correntes de multidão que se cruzavam não se empatassem mutuamente. Em Londres, dizia ele, ninguém atentava para o outro. Transitando pelas ruas, os habitantes da capital mostravam uma “indiferença brutal” para com o que se passava ao seu arredor, cultivando apenas os interesses pessoais voltados para um desavergonhado “egoísmo mesquinho”, lembrando a descrição da sociedade feita há muito tempo por Hobbes – a de que a sociedade nada mais era do que o produto de uma guerra social, “a guerra de todos contra todos” (Engels 1985: 36). E acrescentava que o que valia para Londres, valia para todas as grandes cidades da Europa.
Em nosso ensaio anterior, analisamos a obra As flores do mal, de Baudelaire, vista à luz do pensamento benjaminiano, pautando-nos no “flâneur” e “flâneurie”. Vimos o panorama da França no século XIX. Continuaremos nesse ensaio sobre O homem da multidão, de Edgar Allan Poe, servindo-nos do pensamento de Walter Benjamin. Veremos o panorama da Inglaterra na segunda metade do século XIX.
Em seus ensaios sobre a obra do poeta francês Charles Baudelaire, Benjamin chama a atenção para a figura do flâneur que, com um prazer quase voyeurístico, comprazia-se em observar refletidamente os moradores da cidade em suas atividades diárias. Dessa paixão do flâneur pela cidade e a multidão, decorre a flâneurie como ato de apreensão e representação do panorama urbano.
A expansão sem precedência da economia industrial e a conseqüente explosão demográfica das cidades, em especial Londres e Paris, acarretaram no surgimento do ambiente urbano moderno, possibilitando novas formas de experimentar e perceber. Isso, por sua vez, requeria novo modo de olhar para o mundo e novas propostas estéticas.
Benjamin procura explicitar essas transformações, ao investigar como tais mudanças foram registradas na literatura daquela época. Baudelaire torna-se a figura central em suas investigações. Para ele, os textos de Baudelaire constituem os fragrantes mais precisos e intensos da vida social parisiense do século XIX, revelando as mais finas e sutis articulações do indivíduo moderno com o cenário urbano.
Benjamim afirma que “a cidade é o autêntico chão sagrado da flânerie” (1994: 191), e que o “fenômeno da banalização do espaço” constitui-se em experiência fundamental para o flâneur (1994: 188). Baudelaire achava a cidade sedutora, principalmente em seus “mauvais lieux”, por onde se deixava levar em suas andanças erráticas. As ruas labirínticas da cidade constituem, para o “perfeito divagador”, “observador apaixonado”, o fascínio da multiplicidade e do efêmero, o gosto pelo movimento ondulante da multidão. Segundo o poeta francês, o flâneur é inebriado, extasiado pelo prazer de se achar em uma multidão, o que, para Benjamin, seria “uma expressão misteriosa do gozo pela multiplicação do número” (1994: 54).
Para Baudelaire, há a beleza duradoura nos fenômenos, que permanecem através de diferentes épocas, e há a beleza do acidental, do instantâneo. Essa última beleza, a da modernidade, para ser digna de se tornar antiguidade, deve ser extraída pelo artista com todo o mistério “que a vida humana coloca nela involuntariamente” (Baudelaire 2001: 110). Esse trabalho, o de dar forma estética ao moderno, cabe aos artistas como Constantin Guys.
Um desses é, sem dúvida, Edgar Allan Poe, que, antes de Baudelaire, seu primeiro tradutor para o francês, já havia explorado, em seu conto “O Homem da Multidão”, o tema da paisagem e da massa urbana. Nesse conto, Poe “revela alguns traços notáveis, e basta apenas segui-los para encontrar instâncias sociais tão poderosas, tão ocultas, que poderiam ser incluídas entre as únicas capazes de exercer, por meios inúmeros, uma influência tão profunda quanto sutil sobre a criação artística” (Baudelaire 2001: 119).
A cidade é o templo do flâneur, o espaço sagrado de suas perambulações. Nela, ele se depara com sua contradição: unidade na multiplicidade, tensão na indiferença, sentir-se sozinho em meio a seus semelhantes. Ao errar entre as galerias e bulevares, ao passear pelos mercados, o flâneur é o ser que vê o mundo de uma maneira particular, sem a pretensão de explicar, mas com a intenção de mostrar, levando a vida para cada lugar que vê. Sua paixão é a interioridade, na rua encontra o seu refúgio, desvincula-se da esfera privada, buscando sua identificação com a sociedade na qual convive. Ocorre, porém, que essa identificação resulta em grande parte complicada pela natureza complexa da sociedade moderna. Nas ruas das metrópoles, o flâneur constata que o homem moderno é vitimado pelas agressões das mercadorias e anulado pela multidão, estando condenado a vagar pela cidade como um embriagado em estado de abandono. É essa angústia que o flâneur representou no século XIX.
O flâneur aparece como a figura de um burguês que tem tempo à disposição e que pode dar-se ao luxo de desperdiçá-lo, para horror da sociedade capitalista de sua época.  É um burguês que leva uma vida sem objetivos definidos a não ser buscar no complexo urbano rusgas, vãos, becos por onde entrar em busca de algum espetáculo para os seus olhos sobre pernas. Olhos e pernas são a essência do flâneur e da flâneurie. Para isso, há que existir um ambiente propício ao seu flanar. Esse ambiente é Paris, uma cidade feita para ser vista “pelo caminhante solitário, pois somente a um passo ocioso pode-se apreender toda a riqueza de seus ricos (mesmo velados) detalhes” (White 1992: 43). Louis Sebastien Mercier, após escrever o Tableau de Paris, escreveu: “Eu andei tanto para escrever o Tableau de Paris que posso dizer que o fiz com minhas pernas, aprendendo a ser ágil, ávido e vivaz no palmilhar o chão da capital. Esse é o segredo para conseguir ver tudo” (White 1992: 44)
Outra característica do flâneur, que o distingue de um filósofo ou de um sociólogo, é que ele procura por experiência e não por conhecimento. Para estes, grande parte da experiência acaba sendo interpretada como – e transformada em – conhecimento. Já para aquele, a experiência permanece em certa medida pura, inútil, em estado bruto, fruto do olhar ingênuo, como o de uma criança, do tipo que Baudelaire atribui a Constantin Guys. Assim, forma-se um retrato dessa figura que, ao que parece, foi uma pessoa de carne e osso, como mostra esta descrição de Paris, feita por volta de 1808, retirada e resumida de um artigo de Elizabeth Wilson: o flâneur é um gentleman que passa a maior parte de seu dia a vagar pelas ruas, observando o espetáculo urbano – as modas, as lojas, as construções, as novidades e as atrações. Seus meios de vida são invisíveis, ficando a sugestão de uma riqueza particular, porém sem a presença da responsabilidade familiar ou gerencial dessa riqueza. Seus interesses são primordialmente estéticos e freqüentam cafés e restaurantes onde atores, escritores e artistas se encontram. Entretanto, parte do espetáculo urbano lhe é oferecido pelo comportamento das classes baixas (vendedores, soldados, gente da rua). Ele é uma figura marginal e tende a ser descrito como alguém isolado daqueles a quem observa (Wilson 1992: 94-95).
O flâneur, portanto, é o leitor da cidade, bem como de seus habitantes, através de cujas faces tenta decifrar os sentidos da vida urbana. De fato, através de suas andanças, ele transforma a cidade em um espaço para ser lido, um objeto de investigação, uma floresta de signos a serem decodificados – em suma, um texto. Ao semiotizar a cidade, o flâneur, esse “botânico do asfalto” (Benjamin 1994: 34), cria uma distinção entre o observador e o observado. Mas, ao contrário de criar, desse modo, uma posição privilegiada, estabelece com o seu objeto uma relação bastante problemática, uma vez que ele não apenas observa a multidão a partir de um “standing point”, mas se imiscui nela. Assim, sua leitura da cidade ocorre através de olhares fragmentários e momentâneos, não lhe sendo permitido o olhar contemplativo e eqüidistante, capaz de lhe oferecer a totalidade de seu objeto.
O flâneur, protótipo do sujeito moderno, por estar no meio do que tenta descrever e não ter neutralidade e distanciamento na sua observação (se é que isso alguma vez foi possível), limita-se a apontar as transformações do cenário urbano  e a re-velar sua historicidade. Além disso, o olhar do flâneur se caracteriza por uma peculiaridade: trata-se de um olhar distraído. Ao passar, o flâneur captura a paisagem em um estado de distração, caracterizado por sucessivos e cambiantes pontos de vista. Nessa distração, ou melhor, nessa “embriaguez anamnéstica” em que vagueia, não importam apenas os fenômenos que, sensorialmente lhe atingem o olhar. Nesse estado, ele também se apossa do “simples saber”, cuja transmissão se dá, sobretudo, por notícias orais, que, para Benjamim, se compõe de dados mortos, como de algo experimentado e vivido. (1994: 186).
O narrador de Poe pode ser considerado uma versão londrina do flâneur parisiense de Baudelaire. Londres e Paris eram duas grandes capitais, mas Londres, já por volta de 1844, quando o conto é escrito, encontra-se mais marcada pela industrialização e por todas as conseqüências da revolução taylorista nas formas de produção do capital. Nesse ambiente, é de se esperar que o flâneur não existisse ou já nascesse fadado a desaparecer. Como diz Benjamin, citando Georges Friedmann, “A obsessão de Taylor, de seus colaboradores e sucessores, é a guerra à flâneurie” (Friedmann 1936: 76)
Em comparação, a Paris de Baudelaire ainda guardava traços dos velhos bons tempos. Na Paris de Baudelaire, a situação era diferente, “ainda se apreciavam as galerias, onde o flâneur se subtraía da vista dos veículos... Havia o transeunte, que se enfia na multidão... Mas havia também o flâneur, que precisa de espaço livre e não quer perder sua privacidade.” Ao contrário do homem da multidão, do conto de Poe, o flâneur é um “ocioso”, a caminhar como uma “personalidade” que rejeita a divisão de trabalho e a industriosidade da sociedade de então. Benjamim diz que “era de bom-tom levar tartarugas para passear pelas galerias”, como uma forma de protestar contra o ritmo imposto pelo capital (1994: 50-51). Poe descreve Londres como possuindo algo de bárbaro que a disciplina mal consegue sujeitar. A industrialização e suas “benesses” isolam os seus beneficiários e os aproxima da mecanização. Segundo Benjamin, “O texto de Poe torna inteligível a verdadeira relação entre selvageria e disciplina. Seus transeuntes se comportam como se, adaptados à automatização, só conseguissem se expressar de forma automática. Seu comportamento é uma reação a choques” (1994: 126). É a visão desses autômatos em suas marés humanas no anoitecer que enche o narrador de Poe com “uma emoção demasiadamente nova” e o faz desinteressar-se pelo que passava no salão do Café onde se encontra, para se absorver na “contemplação da cena lá de  fora” (1990: 164) Há no observador de Poe aquela mesma atenção que  encontramos na descrição de Constantin Guys feita por Baudelaire, aquela sensação de estar “sempre, espiritualmente, no estado de convalescença” (2001: 196). Depreendemos, contudo, segundo o próprio narrador do conto, que esse estado não lhe ocorria “sempre”; antes, entendemos tratar-se de um estado raro, incomum. Assim ele descreve seu estado naquela tarde:

Há não muito tempo, ao fim de uma tarde de outono, eu estava sentado ante a grande janela do Café D. . . em Londres. Por vários meses andara enfermo, mas já me encontrava em franca convalescença e, com a volta da saúde, sentiame num daqueles felizes estados de espírito que são exatamente o oposto do ennui; estado de espírito da mais aguda apetência, no qual os olhos da mente se desanuviam e o intelecto, eletrificado, ultrapassa sua condição diária tanto quanto a vívida, posto que cândida, razão de Leibniz ultrapassa a doida e débil retórica de Górgias. (Poe 1990: 164)

É nesse estado de percepção aguçada, com o intelecto “eletrificado”, que o narrador de Poe, esse flâneur em meio a um turbilhão de choques, vai encontrar na multidão o mistério do anonimato e o milagre da “multiplicação do número”. É esse espírito que ele aplica às coisas, descreve-as. Com sensação de prazer no simples ato de respirar, capaz inclusive de extrair inegável bem-estar de muitas das mais legítimas fontes de aflição e com um calmo, mas inquisitivo, interesse por tudo. Assim que o anônimo narrador de O homem da multidão começa a descrever sua experiência pessoal em um café de Londres, ele mostra total confiança em sua habilidade de ler a multidão com base em sinais exteriores. É interessante notar que Poe, ao alternar as ações de seu narrador entre ler o jornal e contemplar a multidão, estabelece um paralelo entre as duas atividades e sugere suas similaridades: “Com o charuto entre os lábios e o jornal sobre os joelhos, divertira-me durante grande parte da tarde, ora a meditar os anúncios, ora observando a companhia promíscua reunidas na sala, ou ainda a espreitar a rua através das vidraças enfumaçadas” (Poe 1990: 164)
É nesse estado de percepção aguçada, com o intelecto “eletrificado”, que o narrador de Poe, esse flâneur em meio a um turbilhão de choques, vai encontrar na multidão o mistério do anonimato e o milagre da “multiplicação do número”. É esse espírito que ele aplica às coisas. Com sensação de prazer no simples ato de respirar, capaz inclusive de extrair inegável bem-estar de muitas das mais legítimas fontes de aflição e com um calmo, mas inquisitivo, interesse por tudo. Assim que o anônimo narrador de O Homem da Multidão começa a descrever sua experiência pessoal em um café de Londres, ele mostra total confiança em sua habilidade de ler a multidão com base em sinais exteriores. É interessante notar que Poe, ao alternar as ações de seu narrador entre ler o jornal e contemplar a multidão, estabelece um paralelo entre as duas atividades e sugere suas similaridades: “Com o charuto entre os lábios e o jornal sobre os joelhos, divertira-me durante grande parte da tarde, ora a meditar os anúncios, ora observando a companhia promíscua reunidas na sala, ou ainda a espreitar a rua através das vidraças enfumaçadas” (Poe 1990: 164)
Conforme essa passagem, há um deslocamento oscilante entre os anúncios do jornal, a sala e a rua, que fica explicitado pelas conjunções “ora” e “ou”. Trata-se de um flanar entre diferentes espaços, desde o mais privado e recolhido da leitura do jornal até o espaço público da rua. Essa dialética espacial entre o privado e o público, encontrada na base da flâneurie, revela um aspecto interessante em relação à atitude do flâneur: o reconhecimento de que o coletivo, como diz Benjamim, é um ser irrequieto e agitado que, nos espaços do labirinto urbano, “reconhece e inventa tanto quanto o indivíduo trancafiado em seu quarto. E a rua é a morada do coletivo. ” (1994: 194).
Nessa época,  com efeito, a população das grandes cidades estava se tornando alfabetizada e os sinais urbanos começavam invadir as ruas, tanto os verbais como os não-verbais. O narrador de Poe deixa-nos ver que, ao observar as ruas tanto literalmente como figurativamente, a cidade estava-se tornando um texto e, para expressá-la, a linguagem escrita deveria assumir as qualidades da imagem. Para tanto o observador deveria ter uma sensibilidade excitada, apta a captar os fragrantes de um mundo em rápida mutação. Como o pintor da vida moderna, o narrador de Poe busca flagrar na vida trivial das ruas aquele “movimento rápido que impõe ao artista uma igual velocidade de execução” (Baudelaire 2001: 105).
Se cada século tem sua feição, sua graça pessoal, impressa pela passagem do tempo, o mesmo se aplica a traços menores da história; aliás, podemos pensar que quanto mais particular é o evento, mais a marca do tempo deixará nele o seu carimbo, como a moda, campo sobre o qual refletiu Baudelaire. Ainda, segundo ele, essa mesma observação se aplica às profissões, porque “cada uma extrai sua beleza interior das leis morais a que está submetida. Em algumas essa beleza será marcada pela energia; em outras carregará os sinais visíveis da ociosidade. É como o emblema do caráter, é a estampilha da fatalidade” (Baudelaire 2001: 114).
É inegável que, no conto de Poe, apesar das diferenças existentes entre esses dois  pólos, podemos dizer que tanto o narrador, como o misterioso personagem, compartilham características do flâneur. O velho demônio encarna, num extremo, a erraticidade, a voracidade voyeurística, a solidão urbana. Vemos, porém, tratar-se de uma personalidade amortecida pela recepção de choque, um embasbacado, uma marionete agitada pelo ritmo da produção capitalista e pelo frenesi do consumo.  Parodiando Baudelaire, assemelha-se a um “caleidoscópio desprovido de consciência”. Já o narrador tem a fome da experiência, somada à perplexidade e ao assombro. Sua perambulação acompanha os fluxos da cidade e os passos do homem da multidão, buscando, entretanto, fixar, como fantasmagoria, suas impressões. Essa intenção do registro é aguçada pela consciência do mistério que envolve os fenômenos urbanos, mesmo os mais triviais. Esse senso do mistério é aquele de estar o tempo todo no equívoco, nos aspectos duplos, ambíguos, múltiplos, na suspeição do aspecto (imagens dentro de imagens), formas do devir que “serão”, segundo o espírito do observador.
Se Deus imprimiu “o destino de cada homem na sua fisionomia”, como disse Balzac (Benjamin 1994: 212), basta, então, observá-lo cuidadosamente, para ler, em seus sinais exteriores, a sua profissão, vícios e tudo o mais que marca cada dobra de sua pele. Ou então, basta escutar uma palavra de alguém que passa para, através do tom de sua voz, ligar o nome de um pecado a ele. A índole detetivesca do narrador de Poe limita com o espírito curioso do flâneur, à medida que ambos buscam estudar a aparência fisionômica das pessoas, para ler-lhes a nacionalidade e a posição, caráter e destino, através de sinais aparentes, tais como seu modo de andar, sua constituição corporal, sua mímica facial, como podemos notar nos excertos abaixo:

A subdivisão dos funcionários categorizados de firmas respeitáveis era inconfundível. Fazia-se logo reconhecer pelas casacas e calças pretas ou castanhas, confortáveis e práticas, pelas gravatas brancas, pelos coletes, pelos sapatos sólidos, pelas meias grossas e pelas polainas. Tinham todos a cabeça ligeiramente calva e a orelha direita afastada devido ao hábito de ali prenderem a caneta. Observei que usavam sempre ambas as mãos para pôr ou tirar o chapéu e que traziam relógios com curtas correntes de ouro maciço, de modelo antigo. A deles era a afetação da respeitabilidade, se é que existe, verdadeiramente, afetação tão respeitável. (Poe 1990: 168-169)
É inegável que, no conto de Poe, apesar das diferenças existentes entre esses dois  pólos, podemos dizer que tanto o narrador, como o misterioso personagem, compartilham características do flanêur. O velho demônio encarna, num extremo, a erraticidade, a voracidade voyeurística, a solidão urbana. Vemos, porém, tratar-se de uma personalidade amortecida pela recepção de choque, um embasbacado, uma marionete agitada pelo ritmo da produção capitalista e pelo frenesi do consumo.  Parodiando Baudelaire, assemelha-se a um “caleidoscópio desprovido de consciência”. Já o narrador tem a fome da experiência, somada à perplexidade e ao assombro. Sua perambulação acompanha os fluxos da cidade e os passos do homem da multidão, buscando, entretanto, fixar, como fantasmagoria, suas impressões. Essa intenção do registro é aguçada pela consciência do mistério que envolve os fenômenos urbanos, mesmo os mais triviais. Esse senso do mistério é aquele de estar o tempo todo no equívoco, nos aspectos duplos, múltiplos, na suspeição do aspecto (imagens dentro de imagens), formas do devir que “serão”, segundo o espírito do observador.
O surpreendente e magnífico no conto de Poe é o jogo de adivinhação: o narrador, ao se concentrar na figura enigmática do velho, com quem se depara a certa altura no labirinto londrino, não chega a uma solução. Assim é descrito o encontro com a estranha figura que captura sua imaginação:
Com a testa encostada ao vidro, estava eu destarte ocupado em examinar a turba quando, subitamente, deparei com um semblante (o de um velho decrépito, de uns sessenta e cinco anos de idade), um semblante que de imediato se impôs fortemente à minha atenção, dada a absoluta idiossincrasia de sua expressão. Nunca vira coisa alguma que se lhe assemelhasse, nem de longe. Lembro-me bem de que meu primeiro pensamento, ao vê-lo, foi o de que, tivesse-o conhecido Retzsch, e não haveria de querer outro modelo para as suas encarnações pictóricas do Demônio.... Senti-me singularmente exaltado, surpreso, fascinado. “Que extraordinária história”, disse a mim mesmo, “não estará escrita naquele peito!” Veio-me então o imperioso desejo de manter o homem sob minhas vistas... de saber mais sobre ele. Vesti apressadamente o sobretudo e, agarrando o chapéu e a bengala, saí para a rua e abri caminho por entre a turba em direção ao local em que o havia visto desaparecer, pois, a essa altura, ele já sumira de vista. Ao cabo de algumas pequenas dificuldades, consegui por fim divisá-lo, aproximar-me dele e segui-lo de perto, embora com cautela, de modo a não lhe atrair a atenção. (Poe 1990: 177-178)

Essa perseguição ocupará quase o conto todo. A in-vestigação, com o fim de ler a “extraordinária história” que o narrador imaginou estar “escrita naquele peito”, encerrar- se-á ao cabo de um dia inteiro de andança errática. Nas palavras do narrador-personagem, ao cabo de um dia completo, exausto diante da infindável caminhada em ziguezague, sobreveio-lhe um aborrecimento mortal. Nesse momento pára em frente do velho, olha-o fixamente no rosto, como se a mirada frontal lhe pudesse revelar o que de maneira obliqua não conseguira. O velho simplesmente o ignora, como se fosse um autômato, e prossegue em sua promenade folle et sans fin, como um “lobisomem irrequieto a vagar na selva social” (Benjamin 1994: 187):

Quando se aproximaram as trevas da segunda noite, aborreci-me mortalmente e, detendo-me bem em frente do velho, olhei-lhe fixamente o rosto. Ele não deu conta de mim, mas continuou a andar, enquanto eu, desistindo da perseguição, fiquei absorvido vendo-o afastar-se. “Este velho”, disse comigo, por fim, “é o tipo e o gênio do crime profundo. Recusa-se a estar só. É o homem da multidão. Será escusado segui-lo: nada mais saberei a seu respeito ou a respeito dos seus atos. O mais cruel coração do mundo é livro mais grosso que o Hortulus animae, e talvez seja uma das mercês de Deus que ‘ es lässt sich nich lesn’ “.( Poe, 1990, p.189-190)

Assim, o conto se fecha, com a frase em alemão que, no primeiro parágrafo do conto, é utilizada para introduzir a tese de que há coisas que não se deixam ler. Em outras palavras, há segredos que não podem ser ditos porque não se deixam ler. Assim, o conto se fecha dentro de uma estrutura circular, conferindo-lhe certo hermetismo que lhe acentua a atmosfera de mistério. O hermetismo identifica o mistério. A estrutura circular nos diz ser necessário a releitura para encontrá-lo, mas ele nunca se revela. Não obstante essa atmosfera de mistério que deixa no ar ao final, o conto se relaciona claramente com a crítica de Benjamin à tese convencional, mas insensata, que racionaliza a conduta do flâneur e que é a base inconteste de muita literatura a seu respeito. Muito mais do que ler na fisionomia dos transeuntes o seu caráter ou a sua profissão, o flâneur busca perder-se (ou encontrar-se?) na anonimia da vida na grande cidade. A City é “a realização do antigo sonho do labirinto” e, segundo Benjamin, o flâneur, sem o saber, persegue essa realidade. Busca inútil, essa do narrador de Poe? O saber que o flâneur procura seria “vizinho à ciência oculta da conjuntura”? (Benjamin 1994: 199). Talvez... afinal, essa irresolução pode ser entendida como o resultado do desenvolvimento de um processo que nasce da euforia e de uma grande apetência no início da narrativa (daquele estado de convalescença) e termina no aborrecimento mortal da dúvida. Assim, da mesma maneira que “a espera parece ser o estado próprio do observador impassível” (Benjamin 1994: 197), a dúvida seria a condição final do processo investigativo do flâneur.
O que podemos observar é que o conto de Poe antecipa uma questão básica que está na essência da Modernité. Seu narrador representa o protótipo do escritor moderno, ocupado em capturar a beleza do efêmero e do transitório, e, para consegui-lo, ele deve emergir na experiência de sua condição enquanto elemento integrante dessa nova sociedade. Na “flâneurie”, isto é, “no deambular desprovido de propósitos”, o flâneur nos oferece a imagem movente, resultado da apreensão de uma fugidia profusão de imagens instantâneas, cuja essência reside nas fantasmagorias de um cotidiano vivido nos subsolos do consciente. Na psicologia do flâneur opera a memória ressurreicionista, que faz com que “as cenas impagáveis que todos nós podemos rever fechando os olhos”, não sejam aquelas que “contemplamos com um guia nas mãos”, ou seja, aquelas para as quais dirigimos nossa atenção segundo propósitos ou interesses despertos; antes, são “aquelas a que não prestamos atenção, que atravessamos pensando noutra coisa, num pecado, num namorico ou num dissabor pueril” (Benjamin 1994: 213-214).
Essa é a psicologia do flâneur, que encontra seu correspondente, hoje, em uma forma de percepção representada pela experiência pós-moderna do indivíduo que, seja no shopping, seja encapsulado em seu carro, ou defronte a uma tela de TV ou computador, depara-se com a velocidade e a fragmentação dos fenômenos num nível de semi-ficção, semelhante à “experiência da multidão”, que o flâneur urbano vivenciava nas ruas, avenidas, nas passagens, nos palácios de cristal de fins do séc. XIX e início do séc. XX.

Manoel Ferreira Neto

(*RIO DE JANEIRO*, 23 de novembro de 2016)

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