**ETERNIDADE DE SENTIMENTOS E ESPERANÇAS** - Manoel Ferreira


“As reflexões”, diz-nos Antônio Nilzo Duarte, “que antecedem cada capítulo deste livro [A esperança do reencontro, 2º volume] são todas elas encaminhadas de uma forma especial a você, minha querida e amada Neusa...”. Tais reflexões, epígrafes que pré-cedem cada capítulo, irão perpassar toda a obra. A partir delas o autor poderá manifestar o inestimável amor que na alma e espírito traz dentro por sua amada esposa.
As reflexões, epígrafes, são re-presentações do vestígio – assim mergulhamos numa outra leitura desta obra que se tornou, para nós, pedra de toque de nossas buscas da espiritualidade e sublimidade. Vestígio é anúncio. Indica o que não se mostra em si mesmo, mas se faz re-presentar pelas re-ferências que dá de si com a presença do outro. O que não se mostra nítido, encontra-se latente, é a possibilidade, vivência, experiência do reencontro, e, portanto, faz-se necessário viajar por dentro do vestígio, uma viagem acompanhada da esperança, o eidos, se se quiser, o núcleo da busca, do desejo. Com as re-ferências, que são as memórias do vivido, vivenciado, experimentado, ao longo de quase cinqüenta anos de vida conjugal, eivada de amor, carinho, ternura, respeito, solidariedade, compaixão, a viagem aos vestígios através das reflexões, constrói uma via de acesso para o que se a-nuncia nos a-núncios do vestígio. Neste tangente, pertencem sempre ao início de uma in-vestigação exigências preliminares: antes de viajar, deve-se de-finir com suficiente exatidão o ponto de partida e o ponto de chegada, o caminho e o movimento de passar de um ponto a outro.
Na epígrafe do Capítulo I, Antônio Nilzo Duarte confessa não ter como “considerar a minha vida de amores como uma aventura, nem como um objeto de sonho”. O ponto de partida permanece no seu coração, eivado de tristeza, dores e sofrimentos, “atormentado pela perda inesquecível”, o ponto de chegada é o reencontro, é a espiritualidade, estar comungado ao espírito de sua amada e querida esposa, o caminho e o movimento de passar dos sentimentos de desolação, desamparo à alegria, felicidade, do desencontro ao reencontro, da contingência à espiritualidade se tornarão possíveis e reais com a esperança de real-ização, do sonho que trans-forma o real, a vida vivida, em realidade, o reencontro, a comunhão entre a contingência e a espiritualidade, o “espírito cristalino inspirado no ser do pensamento”, da memória
Era necessário ao escritor ter bem transparente o objetivo do fazer especifico que era a partir de suas memórias restabelecer os seus estados de alma e espírito, reencontrar-se, reencontrar contingente-espiritual a vida, a esposa, o amor sentido, era necessário perpetuar o amor vivenciado para viver inda mais intensamente os sentimentos que habitaram seu coração e espírito ao longo de cinqüenta anos de relações sensíveis.
O objetivo estabelecido para o fazer memorialístico da obra determina as intenções, desejos e vontades esperados, tendo como resultado o “pleno contentamento no frágil coração do homem” (Cf. epígrafe do Capítulo 2). O conjunto das decisões sobre o caminho a seguir, o nível e registro a tomar, os recursos e meios a empregar, o grau e o como fazer se faz, em primeira instância, a partir das epígrafes, que são a-núncios, são envios do espírito que, aliás, sem elas tornariam difíceis, complexos os resultados almejados. O espírito vai-se manifestando, re-velando-se passo a passo nas imagens das epígrafes, são miríades de imagens que se tornarão inteiras, absolutas na consumação da obra. Desta viagem ao vestígio depende tudo: quem in-vestiga, um viúvo atormentado pelas dores de uma ausência, para que, reencontrar-se, reencontrar espiritualmente a amada esposa, como e onde in-vestigar, através de uma obra, de uma escritura, através da memória de tempo vivido, vivenciado, experienciado.
No Capítulo IV, diz-nos Antônio Nilzo Duarte que não recusa “retornar ao passado”. O mistério sem nome da memória não tem onde estar. Não se acha em parte alguma, nem no sujeito nem no objeto, nem nas lembranças e recordações, nem dentro nem fora. Ao contrário, é nele que estão todas as coisas, é dele que tudo tem o espaço de seus lugares e o tempo de sua hora e vez, é dele que tudo recebe o sentido de sua essência. Não recusa retornar ao passado, contando que ele possa sentir a mesma sensibilidade, “recordando com saudades, passagens de nossa vida que ontem eu vivi com você” . O mistério da memória não pode ser visto pelos olhos subjetivos da objetividade nem com a visão objetiva da subjetividade. O real e o irreal, o possível e impossível se instalam no fulgor visível, no lusco-fusco bruxuleante e a na ausência invisível de ser e não ser.



A cada oportunidade que surge, o meu desejo de recordar é imensurável; é fazer voltar à minha memória as felizes lembranças das coisas que nos aconteceram, e, com saudades, recordar o tempo que estivemos juntos, sempre um ao lado do outro, de prazer pleno e tendo em volta a nossa alegria jovial. Todas essas lembranças me causam uma felicidade nostálgica e interminável, a qual nós vivemos. E nestas horas a minha imaginação precipita a toda pressa, correndo descomedidamente pelos desvãos da minha memória (Cf. correspondência endereçada a D. Neusa neste Capítulo IV).



Na desolação de uma perda, da ausência do ser amado, o homem mostra toda a re-flexão de sua essência, apresentando-se tal como é em si mesmo. Pois ele não se dá como coisa feita, já pronta e acabada para o uso. Desolado, mas acompanhado da esperança de re-fazer-se, restabelecer-se, abre caminho por e para uma caminhada: “É necessário que tenhamos um sentimento de nobreza, a fim de defrontarmos com otimismo e ética tudo aquilo que nos satisfaz, e também o que nos aflige e atormenta o nosso ser” (idem, idem). O homem se dá como o dom de uma conquista. A conquista de Antônio Nilzo Duarte, nos interstícios de que se dis-ponibilizou, dis-pôs-se, a empreender a viagem nos vestígios de seu passado, de sua memória, a busca que estava empreendendo, era o reencontro de si mesmo, o reencontro com sua amada D. Neusa. Esta conquista, a consumação dos desejos e vontades, como ele próprio neste excerto diz-nos com propriedade, exige sentimento de nobreza, exige otimismo e ética, exige esperança e fé; além disso, que ele elenca, exige também a pobreza da liberdade ao mesmo tempo em que se esquiva ás pretensões de poder e controle de nosso querer reencontrar-nos, restabelecer-nos da desolação, dos tormentos. No dom de uma busca de reencontro, de re-fazimento, a memória abre caminho por e para uma caminhada.
O que isso, abrir caminho por e para uma caminhada? Caminhar é um meio para um fim e uma atividade do homem. Viajar no vestígio do passado, nas re-flexões, através da memória, do vivido, vivenciado, experimentado. Ambas as determinações são solidárias uma da outra. Pois estabelecer fins, construir e usar meios para alcançá-los são atividades humanas, são exercícios de esperança e fé. A partir da correlação destes três momentos, atividade, meio e fim, costumamos re-presentar o ser do caminho e o sentido da caminhada: “Nós vivemos uma vida de um realismo tornando real os sonhos que antes sonhávamos” (Cf. epígrafe do Capítulo 6). Embora seja o último a ser alcançado, o fim é o primeiro a ser fixado. O objetivo de uma caminhada é a primeira coisa que se estabelece de antemão. Pois, como objetivo, o fim pré-determina o sentido, as dimensões e o nível do caminho e decide pré-viamente o por quê e o para quê da caminhada.
Se o Ser se faz continuamente, a continuidade é também o Ser, como muitíssimo bem de-fine o escritor e doutor Paulo César Lopes, também os caminhos da memória se fazem continuamente; assim, Antônio Nilzo Duarte continuaria sua trajetória em busca dos sentimentos vividos, da espiritualidade, do reencontro, sempre acompanhado da esperança, da fé – esta obra que analisamos é o segundo volume, mais um viria a seguir, a respeito de suas relações íntimas e espirituais com a esposa, motivados pela ausência dela, e outro, o quarto volume, as correspondências mantidas por eles durante um ano e meio, ainda namorados e noivos. Do sentimento de desolação a viagem desemboca na gênese, no sonho de uma vida, no desejo de eternidade construída de amor e entrega absolutos, nas Cartas inesquecíveis de amor.
Com flores nos encontramos por toda parte. Nas sebes e nos jardins à beira das estradas e ao longo de caminhos silvestres, nas casas, nos mercados e praças se dão flores de todas as cores e feitios, para todos os gestos e tipos: “A cada momento de vivência, realizávamos os nossos sonhos, o desejo de nos tornarmos agradáveis um ao outro”. Esse modo de caminhar, de busca, de espiritualização e espiritualidade, pela memória do amor, dos sentimentos, das emoções, da poesia da vida partilhada com o outro, é desconhecido da ciência e ausente na consciência de nosso tempo. O caminhar moderno da memória, da escritura do vivido e do vivenciado, não é um caminhar essencial, é um caminhar funcional. Esquecido da essência do caminho quem mergulha nisto de um reencontro, de um restabelecimento dos tormentos e dores, pretende caminhar sempre para um fim na escravidão de um objetivo.
Antônio Nilzo Duarte, nas suas memórias, caminha sempre para um fim na espiritualidade de seus sentimentos de amor. Nessa caminhada das memórias, vai surgindo a cada passo o caminho essencial – “Os sentimentos do ser humano somente se manifestam quando se tem conhecimento daquilo que nos sensibilizou” (Cf. epígrafe do Capítulo XX). E, ao surgir o caminho essencial, vai-nos revelando que, nas caminhadas diárias pelos atalhos, veredas do passado, nenhum de nós havia realmente caminhado. Caminhar, buscar o reencontro, desejar a comunhão do espírito com o íntimo ausente, a espiritualidade, desejar a vida transcenda o meramente contingencial, como a obra inteira re-vela, é ser homem, é estar dis-posto a conhecer a essência dos sentimentos, do amor, no sentido originário de nascer e crescer com o mistério de sua realização. “Somente o amor pode nos trazer uma felicidade completa” (Cf. correspondência endereçada a D. Neusa neste Capítulo XX).



Tem sido uma poesia e um romance sem fim, e neste caso, abre neste mesmo coração uma nítida clarividência, tão empolgante como as espumas brancas das águas do oceano que se espalham, como estou vendo ao vivo, margeando a orla atlântica (Cf. Capítulo XXI).



Na liberdade desta caminhada nos encaminham os caminhos silvestres, enquanto nos levam a pensar a essência do real na radicalidade das diferenças de ser e não ser. Antônio Nilzo Duarte vive a liberdade de seus tormentos, dores, sofrimentos, sentimentos de desolação, desamparo, angústia, tédio, preparando-se, através da escritura de sua memórias ao lado de sua amada D. Neusa, para caminhar por caminhos silvestres, por con-templar a orla marítima. Nos caminhos silvestres, o verde se abisma em si mesmo e neste abismar-se gera um coração que, desaparecendo no mistério do verdor, deixa aparecer todas as cores da realidade. Na con-templação da orla marítima, o azul do mar mergulha em si mesmo e neste mergulho gera o espírito que, desaparecendo no mistério das águas cristalinas, deixa a-nunciar toda a espiritualidade do homem Antônio Nilzo Duarte.
Passar da contingência à espiritualidade, do amor contingente ao amor espiritual, do eu solitário e atormentado ao “nós” da contingência-espírito, a comunhão absoluta, ajudou Antônio Nilzo Duarte a pensar, sentir, sensibilizar-se, o percurso em que se constitui, até tornar-se óbvia, a esperança e a fé, a espiritualidade que é feita de buscas nobres, de desejos éticos, o passado que é feito de vivências e experiências. Somente através da fé e da esperança, “o amor terá condição de perpetuar-se, revelando como um acontecimento insuperável, de pleno prazer, na mente de todos aqueles que sobrevivem uns após os outros” (Cf. Capítulo 23).
E nesta caminhada nos vestígios de sua memória, nos sentimentos vividos e vivenciados, na busca do reencontro, acompanhado pela esperança, Antônio Nilzo Duarte des-cobre, e se reencontra, espiritualiza-se, perpetualiza-se e perpetualiza sua amada esposa, que o amor: “é a sublimidade, a beleza, a magnificência da vida, é o oferecimento de maior insigne de DEUS ao homem.” (Cf. epígrafe do Capítulo 24).



Manoel Ferreira Neto
(*RIO DE JANEIRO*, 28 de novembro de 2016)


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