**SEMANA //Blog **BO-TEKO DE POESIAS** - 18-24 DE NOVEMBRO DE 2016** - Manoel Ferreira


PREGUIÇA E COVARDIA – QUE DUPLA ESPLENDOROSA!



Num contexto histórico em que a burguesia possuía poder econômico e reivindicava para si o poder político que se encontrava nas mãos da nobreza e do clero; em que os argumentos fundamentados nas crenças religiosas não eram aceites para justificar o poder ou a organização das sociedades ou o modo de vida dos seres humanos; num período em que a ciência começou a ocupar um lugar significativo na construção do conhecimento, surgiu o movimento denominado Iluminismo. Luzes, razão, esclarecimento são palavras relacionadas a ele.
Em 05 de dezembro de 1783, é publicado o artigo de Kant intitulado Beantwortung der Frage: Was ist Aufkläurung? [Resposta à pergunta: Que é “Esclarecimento”?]. Ao responder a questão, Kant define esclarecimento como a saída do homem de sua menoridade, ou seja, da incapacidade de usar o próprio entendimento. Ser esclarecido, para ele, é fazer uso do próprio entendimento. Acompanhemos o percurso de Kant neste artigo, tentando pensar sobre nossos posicionamentos na atualidade.
Neste artigo, ele aponta a preguiça e a covardia como fatores que mantêm a maior parte dos seres humanos na menoridade. É mais fácil agir segundo as ordens do outro, segundo os preceitos de um livro, segundo as regras impostas por uma cultura, segundo alguém que nos guie. “Não tenho necessidade de pensar, quando posso simplesmente pagar; outros se encarregarão em meu lugar dos negócios desagradáveis”, afirma-se ele como exemplo de fala que denota esta preguiça.
Além de ser muito mais tranqüilo, fácil deixar o outro decidir e encaminhar nossa vida, é em demasia “perigoso” tentar andar por si mesmo. Sair dos trilhos traçados pelo outro, tentar novo caminho, tentar sair do “carrinho” no qual somos “carregados” pode provocar grandes acidentes. “Ora este perigo na verdade não é tão grande, pois aprenderiam muito bem andar finalmente, depois de algumas quedas”, afirma Kant.
Temos medo de “sair dos trilhos”? De pensar diferente? De sermos nós mesmos? Às vezes, é tão mais fácil ser como o outro, não precisar posicionar-se, perder-se diante de uma “massa de idéias”, dissolver-se em uma “forma preestabelecida” ou optar por “ser o que todo mundo é”. Assim não corremos riscos os mais variados. Se errarmos, “todo mundo erra”, “tinha que ser assim”. Aliás, existe uma fala popular que diz: “quem anda na linha o trem pega”.
Apontando a utilização do próprio entendimento, Kant não se refere à utilização de uma razão instituída por uma sociedade, ou ao cumprimento de regras e deveres. Isso seria o mesmo que agir condicionado por uma agente externo: a norma social, a lei, formas de pensamento reproduzidas, crenças e fórmulas estabelecidas por outros. Ainda que se use a razão nestes momentos, trata-se de uma razão mecânica, um modelo artificial reproduzido socialmente, guiado pelo outro, e não do uso do próprio entendimento, não condicionado a qualquer outro elemento que não ele mesmo.
O movimento de pensar por si próprio não é fácil, pois exige a troca de um caminho já trilhado por novo percurso, desaprender o aprendido, aprender de novo com as próprias experiências e vivências, sem saber ao certo onde tal percurso nos levará. O quanto confiamos em nosso próprio pensamento? Quando pensamos diferente da maioria das pessoas, o que fazemos? Julgamos, imediatamente, estarmos errados e buscamos nos adaptar ao pensamento já estabelecido por convenção ou averiguamos se nossa maneira de pensar possui fundamento?
Não se trata, também, de substituir um esquema, fórmula de pensamento por outra. Seria apenas trocar o guia. Segundo Kant, todo ser humano possui a capacidade de pensar por si mesmo. Somos dotados de uma razão, que consiste numa forma lógica, universal e incondicionada, ou seja, trata-se da mesma forma para todo e qualquer ser humano. Quando utilizamos adequadamente nosso entendimento, organizando os elementos que nos chegam através de nossas experiências, vivências, construímos conhecimento. Qualquer outro ser humano, diante das mesmas experiências, utilizando corretamente seu entendimento, chegaria ás mesmas conclusões. Mas isso não nos exime de avaliar o conhecimento que nos chega pronto. Ainda que todos tenhamos as mesmas capacidades lógicas, podemos utilizá-las equivocadamente, chegando a resultados também equivocados.
O caminho para o pensar por si mesmo não se dá por imposição, nem por uma revolução. A possibilidade deste caminho encontra-se na liberdade, com liberdade, esse caminho torna-se inevitável. Quando Kant aponta a liberdade como caminho, entende a liberdade como “fazer uso público de sua razão em todas as questões”. Os leitores poderiam perguntar-nos: de que adianta pensar por si mesmo se há regras estabelecidas? Se não nos pediram para pensar? Como falar em liberdade, em fazer uso público da razão quando vivemos em uma sociedade onde somos “obrigados” a aceitar as normas estabelecidas? Todos temos nossos autores literatos, nossos autores filósofos preferidos, mas pautarmos nossa vida conforme o pensamento, idéia deles, não leva a qualquer lugar, torna-nos alienados. Estudante de filosofia, queríamos seguir esta trilha, escolhemos Sartre, tínhamos prazeres inusitados em nos denominar “existencialista”. O doutor e diretor de Razão In-versa chamou-nos atenção diversas vezes quanto a isso: “O dia que você deixar de querer seguir a trilha de Sartre será um grande escritor”, “Você não é outra coisa senão o que construir por si mesmo”. A chamada de atenção teve seus resultados benéficos, com as experiências e vivências intelectuais levaram-nos para outros caminhos, levaram-nos para a nossa autenticidade, estilo e linguagem próprios, sem negarmos as influências.
Kant aborda esta questão no artigo, citando a diferença entre uso público e uso privado da razão. O uso privado ocorre quando estamos desempenhando uma determinada função que exige, mediante “unanimidade artificial”, uma passividade. Como exemplo, ele se refere a um soldado que discorda de determinada ordem. Em seu serviço militar, deve cumpri-la (e isso se refere ao uso privado da razão), mas como ser humano, deve questioná-la. O uso público da razão diz respeito, está relacionado “qualidade de sábio” que nos permite pensar por nós mesmos, discordar, e expor nossos pensamentos, provocando também o pensamento de outros.
Dentre outros exemplos, Kant, para exemplificar essa questão, encontramos o caso do cidadão que discorda do valor dos impostos que deve pagar. Em seu uso privado da razão, deve cumprir seu dever e pagar seus impostos, caso contrário, será punido de acordo com as regras de sua sociedade. Contudo, no que tange ao uso público da razão, deve expor publicamente seu desacordo com relação à injustiça ou ao abuso que tais impostos representam. Discutir a questão, expor suas idéias, argumentar nas instâncias adequadas. Mas como isso se relaciona à questão do que é pensar por si mesmo?
Há quem confunde, troca as bolas, pensar por si mesmo com fazer o que tiver vontade, seguir seus desejos, desobedecer a toda e qualquer regra, ou ainda com um tipo de interpretação onde o que vale é o que cada um pensa e, portanto, pode-se fazer o que bem entender, o que bem aprouver, independente das conseqüências das ações. É justamente contra essas posturas que se manifesta o nosso filósofo. No texto Crítica da razão prática, ele expõe os perigos da sociedade exacerbadamente egóica de seu tempo.
Sua proposta opõe-se ao solipsismo, considerado por ele como uma “mania do eu”, uma “patologia social”, que trans-forma a noção de respeito em um equívoco fundado no sentimento interno de cada indivíduo. O ser humano solipsista, na acepção kantiana, é um sujeito individual, e ao mesmo tempo egoísta, que se considera o centro do universo e, por isso, pensa que pode fazer o que bem entender, independentemente das implicações de suas ações sobre a sociedade ou o outro.
Pensar por si mesmo é, para Kant, seguir os princípios da razão, razão esta, incondicionada. Isto equivale a não permitir que fatores externos à razão a condicionem. Entre esses fatores, Kant elenca as necessidades fisiológicas, os instintos, as pressões sociais, as leis, as emoções, os contextos. Ou seja, nada deve interferir no funcionamento da razão.
Quando o poeta e músico, Advado da Conceição Cardoso Filho, em sua crítica a Razão In-versa, diz que Razão In-versa é reformista, subversivo, consideramos em parte isto, não há duvidar na superfície, nas linhas, isto está presente, mas na profundidade a questão é bem outra - aliás, a poetisa Marize Lemos Silva teceu sua idéia com muita propriedade: “Razão In-versa começa no in-verso para atingir o verdadeiro verso”. Chamar Razão In-versa de “reformista”, “subversivo” é estabelecer limites, é condicioná-lo. Razão In-versa não é subversivo, reformista: ele é o desejo de liberdade, atingir o verdadeiro verso significa “atingir a própria liberdade”, “atingir pensamento, idéia autênticos a partir de vivência e experiência não apenas racional, mas sensível e espiritual”. Compreendemos a crítica do poeta por não ter conhecimentos filosóficos aprimorados para fazer leitura percuciente, cabe-nos aos diretores, especialmente eu, elucidar tais questões
A razão kantiana não é o jeito de pensar de cada um. Trata-se de uma razão universal e necessária, isto é, todos os seres humanos a possuem, com os mesmos princípios que regem o funcionamento do entendimento. Para que possamos afirmar que nossa ação é exclusivamente condicionada por nossa razão, podemos nos fazer algumas questões antes de agir. Essas questões são propostas por Kant no livro Fundamentação da metafísica dos costumes. Reflitamos sobre o conteúdo dessas questões.
A primeira delas pergunta se de nossa ação poderia ser derivada uma lei universal, ou seja, se todos devemos fazer aquilo que pretendemos fazer. Imaginem-se, leitores, perguntando isso para suas ações. Que respostas vocês encontrariam? Vocês, leitores, concordariam comigo que se respondesse que os outros não devem agir como você, isso poderia denotar um problema em suas ações?
A segunda questão está relacionada á finalidade de nossa ação: Nossa ação é um fim em si mesma ou um meio para atingir um outro objetivo? Com a resposta a essa questão podemos avaliar se agimos porque pensamos da maneira como pretendemos agir ou se agimos para atender a outros interesses. Agir devido a outros interesses não é, para Kant, agir por determinação da razão, mas condicionar nosso pensamento a algo externo à razão, ou seja, não se trata de “pensar por si mesmo”.
Por fim, a última e mais importante questão: o ser humano – seja ele vocês leitores mesmos ou outra pessoa – em sua ação, é considerado um fim em si mesmo ou um meio para se atingir algo? Para Kant, o ser humano é sempre um fim em si mesmo, ou seja, nossas ações devem ter em vista o ser humano e não o que se pode alcançar a partir dele. É interessante observar que ele nos lembra que nós mesmos, em nossas próprias ações, somos seres humanos e devemos nos considerar como tais.
O ser humano, noutros termos, não é um objeto que possa ser utilizado como um meio para se atingir um objetivo, seja ele econômico, político social ou de qualquer outra natureza. Assim, pensar por si mesmo significa ser movido pelos princípios da razão, não permitir o condicionamento da razão a fatores externos a ela. Emoções, instintos, desejos, leis, idéias de outras pessoas, pressões familiares, pressões sociais, interesses, ideologias, nada disso deve retirar de nós a capacidade de autonomia de pensamento.
Em 1783 Kant nos fez esta observação: “Se for feita então a pergunta: “vivemos agora em uma época esclarecida [aufgeklärten]”?, a resposta será: “não, vivemos em uma época de esclarecimento [“Aufklärung”]. Falta ainda muito para que os homens, nas condições atuais, tomados em conjunto, estejam já numa situação , ou possa ser colocados nela, na qual em matéria religiosa sejam capazes de fazer uso seguro e bom de seu próprio entendimento sem serem dirigidos por outrem. Somente temos claros indícios de que agora lhes foi aberto o campo no qual podem lançar-se livremente a trabalhar e tornarem progressivamente menores os obstáculos ao esclarecimento geral ou à saída deles, homens, de sua menoridade, da qual somos culpados” (KANT).
O foco na matéria religião estava relacionado ao contexto histórico do surgimento do Iluminismo, ou seja, à necessidade de uma razão capaz de responder às questões humanas. Trazendo o foco para nossas condições de vida na atualidade, para as relações pessoais, para o mundo do trabalho, como responderíamos à pergunta: vivemos agora uma época esclarecida? Como vocês, leitores, respondem a esta questão?



Manoel Ferreira Neto
(*RIO DE JANEIRO*, 22 de novembro de 2016)


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